Segunda-feira, 1 de Agosto de 2011
publicado por JN em 1/8/11

À hora a que escrevo, estará quase a terminar mais uma edição do Acampamento Liberdade, que tornou a reunir um monte de “jovens” do Bloco de Esquerda num bonito cenário de província (este ano foi no Bioparque, em São Pedro do Sul). Não sei como a coisa correu, mas imagino que tenha sido mais ou menos o costume: muita poeira, muita ganza e muito pouco banho – enfim, o normal num partido com preocupações ambientalistas e amor à agricultura biológica.

Não é isso que me traz aqui. O que me traz aqui é o programa do acampamento deste ano, a forma como, comparado com os programas de  acampamentos anteriores, ele reflecte a crescente perda de sentido de humor por parte do BE – e ainda, já mesmo a fechar a crónica, uma teoria um tanto mirabolante, bastante discutível, mas talvez um pouquinho divertida sobre a influência que essa perda de sentido de humor tem desempenhado no inexorável declínio eleitoral do partido.

Comparemos o programa deste ano com o de 2008, por exemplo. Há três anos, o período da manhã era ocupado por debates em torno de temas como “Imigração e Racismo”, “Biocombustíveis e Crise Alimentar” e “LGBT, Feminismo e Combate Social” – enfim, as três grandes angústias globais nesse trágico ano em que faliu o Lehman Brothers (daí os cereais), Obama ganhou vantagem na corrida presidencial (daí a conclusão óbvia de que o ocidente está cada vez mais racista) e as malas a tiracolo saíram de moda (daí a preocupação LGBT).

Já este ano, o período da manhã foi dedicado em exclusivo a temas chatíssimos: “Revoluções Árabes”, “Quantos Pobres São Precisos Para Fazer Um Rico?” (não, não se trata de um workshop de plasticina, foi mesmo um debate com Francisco Louçã) e “O Socialismo É Um Desporto de Combate”. Basicamente, tudo parecia gravitar em torno do tema da manhã do segundo dia, “Bloco: De Onde Vimos E Para Onde Vamos?” (ao contrário de mim, o BE escreve os títulos todos em caixas baixas, porque as letras também são todas iguais), destinado a desmontar a actual crise do partido. E era tal a obsessão com a reconstrução do dito que no sábado de manhã, em vez do habitual torneio de futebol, ainda se procedeu a novo colóquio.

De resto, à tarde foi a mesma coisa. Em 2008 houve um debate sobre drogas leves (eu li primeiro “Debate e drogas leves”, mas foi da pressa: o nome era “Debate: Drogas Leves”) e em 2011 um debate sobre o FMI; em 2008 houve um workshop sobre brinquedos sexuais e em 2011 um plenário sobre o ensino superior; em 2008 houve um atelier sobre massagens e em 2011 um workshop sobre economia. No essencial, foi tudo muito menos divertido. E, em vez de pequeninos torneios de futebol todos os fins de tarde – qualificações para as finais de sábado de manhã, quase de certeza –, só houve projecção de filmes e observação de estrelas (juro: “Observação de Estrelas”), coisa que os jovens militantes do BE, como é natural, já fazem todos os dias em casa, ao exercitarem os ensinamentos apreendidos nos debates divertidos de outros anos.

No mais, foi o habitual: muito workshop sobre pintura a stencil, colocação de faixas e mobilização para comícios – e, no fim, uma festa LGBT, o que provavelmente ainda foi o mais divertido de tudo (pudera). Brincadeira: quase nenhuma. Nem sequer os jogos de Twister com que, à noite, a malta costumava fintar o duche. Na verdade, o único apontamento de humor no programa deste ano foi o facto de, em vez do tradicional “Acampamento de Jovens do Bloco de Esquerda”, o encontro ter-se chamado “Acampamento Liberdade”, não tendo os jovens usufruído de nenhuma para improvisar fosse no que fosse, tal a intensidade da agenda. Mas, de qualquer forma, era humor de recorte demasiado fino – estou em crer que, com tanto fumo no ar, muita gente nem percebeu.

E o meu medo é que, no meio disto tudo, o Bloco de Esquerda esteja a pensar tornar-se num partido a sério, com preocupações a sério, e não apenas com aquelas que lhe dão mais sounbdbyte entre (lembram-se do anúncio?) punks e freaks, skaters e góticos, dreads e tigresas, okupas e hippies, ravers, rockabillies e nadistas em geral. Por favor, não deixem morrer o Bloco de Esquerda – o verdadeiro, cheio de revolta, divertidíssimo, inútil. A política portuguesa ficará muito mais pobre e eu perderei uma das minhas mais estimadas vítimas de bullying.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 30 de Julho de 2011

(imagem: © www.psacores.org)

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Domingo, 24 de Julho de 2011
publicado por JN em 24/7/11

É claro: a maior parte do que tenha a ver com o Verão e a sua indumentária é uma pequena tragédia. Um homem põe-se a pensar na economia, decide que vai voltar a dar uma oportunidade aos saldos, onde há dez anos não consegue comprar uma camisa, e arrepende-se logo na primeira loja em que entra. Aparentemente, nos primeiros dois dias houve belíssimas pechinchas: fantásticas camisas de 140 euros vendidas a 130 e gloriosos pares de calças de 160 praticamente oferecidos por 149,99. Ao fim de uma semana apenas, porém, é a desolação. Ainda Agosto vem longe e já está tudo com 60 por cento de desconto. Por outro lado, está também tudo remetido a uma prateleira sombria e mal arrumada, para assegurar que o pelintra em causa se dá conta da sua pelintrice – e, principalmente, o espólio resume-se a calças às riscas com pespontos em vermelho-vivo, camisas com bolas cor-de-laranja combinadas com quadrados roxos (perdão, “xadrez lilás”) e, quanto ao resto, muito pólo, muito calção e um ou outro téni (não vale a pena telefonar, sr. revisor, é “téni” mesmo que eu quero dizer).

No fundo, e a partir do momento em que começam as promoções, já só há lugar a três tipos de homem em Lisboa: o engravatadinho da gestão de produto, o street-wearer do assalto à navalha e o betinho do sapato de vela e crocodilo ao peito. Tudo o resto fica confinado a zonas de fronteira, a limbos, a terras de ninguém – e, como se trata de franjas incaracterísticas, ocupadas por gente desprovida de carisma, os designers não encontram outra solução senão ocupá-las com roupa de brincar. Bem vista as coisas, não há camisa que não tenha uns números, uns dizeres, uns bonequinhos. Não há calças que não tenham uns botões nos sítios mais surpreendentes, uns quase-rasgões nas coxas, umas faixas que parecem cintos, presas às carcelas como se fossem cintos, com fivelas iguaizinhas às fivelas dos cintos, mas que na verdade não abrem nem fecham – são apenas para enfeitar. E não há t-shirt que não tenha uma marca gigante, a silhueta de uma planta de cannabis ou mesmo uma frase de andaime, apesar de tudo preferível a um lema de vida (a não ser nos casos em que os dois coincidem).

Se se trata de uma mulher, nenhum problema: procurando bem, há alternativas. Se for um gay, idem aspas: mais ou menos extravagante, há sempre alguma macaquice enquadrável no largo espectro de combinações que o género autoriza. Já um hetero tem dificuldades. No essencial, e para conseguir comprar duas camisas, um homem tem de sair de sair de casa no dia anterior, disposto a fazer fila à porta do centro comercial e deixando sobre a mesa da sala um bilhete dirigido à mulher e aos filhos: “Não sei quando volto. Se demorar, não se prendam. Contem a minha história.” Ora, eu não tenho tempo para isso – e, se tivesse, não era a isso que o dedicava. Por outro lado, suponho que muitos outros não tenham tempo também, caso contrário não se encontrariam cada vez mais homens de Lisboa passeando na rua com jeans e chinelos, arranjo sobre todos os outros plausível a partir da roupa de brincadeirinha a que os famigerados saldos nos limitam.

Os chinelos. Se me perguntarem qual é, de todas as soluções de indumentária ao alcance de um ser humano, aquela que eu nunca usarei na rua, então cá vai: são os chinelos. Grandalhões ou disfarçadinhos, cor-de-laranja como havaianas ou pretos como os mais sofisticados sapatos italianos, combinados com bermudas às flores ou, o que é o pior de tudo, com calças de ganga – não há um par de chinelos que um homem possa usar na rua sem se transformar de imediato num parolo histérico. Perguntam-me: “Mas estás tonto, ou quê? E se estiverem quarenta graus, continuas a achar isso?” Sim, continuo: até sessenta graus, acho uma parolice histérica. Para mim, é muito simples. Um homem põe uns chinelos para sair à rua e logo deixa de ser um homem para passar a ser outra coisa qualquer: um adolescente em crise de género, um interno do Júlio de Matos em precária ou uma personagem dos Morangos Com Açúcar evadida da telinha. Por favor, não me obriguem a ver pés de homens. O último homem com pés bonitos de que me lembro era o Liedson – e mesmo esse tinha o preocupação de, ao sair para a rua, calçar uns pitons. As nossas escatologias são para exibir em casa.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 23 de Julho de 2011

(imagem: © www.psacores.org)

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Domingo, 17 de Julho de 2011
publicado por JN em 17/7/11

Tenho usado os Açores, neste espaço, como o epítome da terra antiga e decente. Faço-o às vezes por questões racionais, muitas vezes por questões emocionais e uma vez por outra por questões puramente lúdicas, que amiúde são as mais relevantes de todas. O facto é que, enquanto por aqui, no continente, vamos discutindo os solavancos próprios de uma bancarrota evitada in extremis,  nos Açores começam a reunir-se as condições ideais para uma golpada política de dimensões latino-americanas. E, como nem sempre a decência geral se tem revelado suficiente para blindar a democracia açoriana dos seus velhos inimigos, é importante que António José Seguro e Francisco Assis, agora que se preparam para discutir o futuro do partido que esteve no poder em Portugal nos últimos seis anos e que está no poder nos Açores há quinze, se definam sobre se pretendem ou não permitir a dita golpada.

Curto resumo dos acontecimentos. A Sexta Revisão Constitucional, publicada em 24 de Julho de 2004, impunha aos Açores e à Madeira a aprovação de um novo Estatuto Político-Administrativo. A Madeira, onde os imperativos da República gozam de pouca popularidade, fez uma primeira investida e deixou cair o processo. Os Açores determinaram que respeitariam a Constituição – e de imediato deram início ao debate. Uma das regras a incluir dizia respeito aos mandatos do presidente do Governo Regional, que passavam a estar limitados a três. Problema: Carlos César já estava no terceiro mandato, pelo que conseguiu levar à aprovação uma norma transitória, redigida por ele próprio, em que se previa que, caso a publicação do novo Estatuto em Diário da República ocorresse durante o terceiro mandato do presidente, então este estaria autorizado a um quarto mandato ainda.

As coisas, como se sabe, acabaram por decorrer aos tropeções. Quando o novo Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores foi definitivamente aprovado, já havia sido alvo de vetos prévios do Tribunal Constitucional e do próprio Presidente da República. Pior: no dia em que foi publicado em Diário da República, Carlos César já não estava no seu terceiro mandato, mas no quarto, começado há pouco tempo. E é precisamente com recurso a esse inesperado sobressalto cronológico que alimenta agora o tabu – o qual vem deixando a própria oposição suspensa – sobre se candidata ou nas eleições legislativas regionais de 2012. Afinal, a ausência de letra da lei sobre um quinto mandato pode ou não permitir a César vinte anos de exercício do poder, incluindo uma maior degradação ainda da sociedade civil, há tantos anos habituada a transaccionar o voto por empregos públicos, subsídios à subsistência ou mesmo apenas passeios de barco?

Não pode. É claro que não pode: a letra da lei não o proíbe, mas o espírito da lei impede-o abundantemente. Só que esse impedimento pode apenas vir a ser decretado pelo Tribunal Constitucional – e, nesse caso, depois das eleições, não antes. Donde resulta que Carlos César vai fazendo a sua parte na construção de um cenário que lhe permita ganhar as eleições para o PS – porque de facto ganharia – e, depois, um pouco à maneira das novas dinastias republicanas, ser obrigado a legar o poder a um dos seus putativos sucessores (Vasco Cordeiro, Sérgio Ávila ou José Contente), qualquer um deles, dizem as sondagens, destinado a ser esmagado nas urnas pela líder da oposição, Berta Cabral. Alguma da comunicação social do arquipélago, de resto, já vem fazendo a sua parte também, dando eco à ideia, não por acaso cada vez mais acarinhada pelo presidente, de que, de qualquer maneira, as legislativas são um sufrágio para a Assembleia Regional, não para a Presidência do Governo. E ademais, como todos sabemos, há manigâncias a que a distância geográfica, ainda que por preguiça, traz uma estranha, difusa, mas ainda assim efectiva legitimidade política.

Ouvir da parte de Assis e Seguro a garantia de que não deixarão os Açores caudilhizar-se, como se calhar a Madeira se caudilhizou, seria tranquilizador para os açorianos que persistem ciosos da sua democracia. Mais do que isso: seria uma garantia de que as eleições de 2012 decorreriam em ambiente respirável, sem as chantagens emocionais e as habilidades políticas que começam a insinuar-se no horizonte. Bem basta que no actual programa do Governo da República não conste uma palavra sobre as regiões autónomas, não?

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 16 de Julho de 2011

(imagem: © www.psacores.org)

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"José Mourinho, O Vencedor",
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