Sábado, 2 de Outubro de 2010
publicado por JN em 2/10/10



Poucas coisas me divertem tanto como assistir a um português negociando a bica que, em momento de qualidade de vida, bebe depois do almoço. Do outro lado do balcão, o empregado vai respondendo com acenos, contorcendo-se de ansiedade, como quem espera a oportunidade de exercer o seu cunho piadético – e, no entanto, o nosso homem já vai por aí fora, em imparável monólogo. “Era uma bica. Italiana. Bem curtinha, se faz favor. Não, não, não! Não a tire a meias com outra: tire-a sozinha, de uma vez só, que fica mais forte. Isso. Boa. Chávena aquecida, está bem? Hã? O que é isso, ir de repente atender o cliente? Agora é a minha vez, meu senhor! Ah, assim sim. Obrigado. Ora, vamos lá... Hum, que cheirinho… Oh, mas que diabo é isto? Eu pedi curtíssima! Que gaita… Vá, dê-me lá o açúcar, pá. Há dias em que um homem não pode sair de casa.”


A snobeira, já aqui o disse, é coisa de pobre – e esta que se exerce a pretexto de uma coisa como uma bica é, naturalmente, a dos mais pobres de todos. Acontece que a snobeira, em certas sociedades (e seguramente nesta em que passo grande parte do meu ano: a de uma grande cidade portuguesa, incluindo os seus pobres), pode ser uma ferramenta de enorme utilidade. Em Lisboa, pelo menos, é assim: uma pessoa pode ser modesta, ignorante e frágil, mas se puser um ar de superioridade ganha logo ascendente na relação com a pessoa em frente. Os pobres gostam de ser snobes porque também eles respeitam mais os snobes. Vêem um pobre igual a eles, mas exacerbando maneirismos, e logo pensam de si para si: “Este tipo, afinal, é selecto.” Os pobres aprendem depressa a palavra “selecto”. É outra das suas ferramentas para serem selectos. Ou snobes.


No fundo, o que estou para aqui a dizer não passa de uma variação do velho clássico da sabedoria popular: “Quanto mais um tipo se abaixa, mais se lhe vê o rabo” (acho que é assim). Os pobres, na ausência de outra sabedoria, estão cheios de sabedoria popular. E negoceiam a bica assim. E pedem o livro de reclamações aos gritos, embora depois raramente tenham retórica (ou sequer paciência) para o preencherem. E destratam o tipo que segue cheirando a álcool no autocarro, embora ele não esteja a fazer mal a ninguém. E deixam com as pontinhas dos dedos uma moeda de vinte cêntimos no boné do cego que toca concertina na rua. E falam ao telemóvel demoradamente e olhando em volta, para que todos se dêem conta de como são tão importantes que até acontece alguém, do outro lado, dignar-se a gastar um euro e meio de chamada só para ouvi-los durante aquele tempo todo.


Os pobres são sombrios e desinteressantes e maus e egoístas. Não perdem a oportunidade de colocar a pata em cima do pescoço do pobre ao lado – e, embora barafustando, o pobre ao lado acaba por respeitá-lo por isso. É triste ser pobre.


E, todavia, o que é teatro nos pobres é vida em surdina nos ricos. Todos os dias os vejo, nas praias finas e nos restaurantes da moda e à porta do cinema. Tratando os filhos por você, sim. Mas, sobretudo, falando muito alto. Dando instruções aos filhos muito alto. Fazendo perguntas sobre a ementa muito alto. Comentando o filme muito alto – e em nenhum momento pretendendo, com isso, que os outros percebam como verdadeiramente se exerce a autoridade sobre uma criança, que os outros encaixem que nem toda a gente vai ali para dividir uma calzone ou que os outros decifrem a intriga do filme.


O outros simplesmente não estão lá. Ninguém mais está lá. É como se o mundo fosse apenas do tamanho de uma cabina telefónica – e em nenhum momento, naturalmente, ali se colocam as angústias da aceitação, do respeito ou da admiração do outro (que, repito, simplesmente não existe). É o triunfo da falta de curiosidade – e isso é bem mais deprimente e bem mais sombrio do que a snobeira dos pobres. Não há nada mais triste do que a falta de curiosidade. Nem mais pobre. Nem mais cómico. Aliás: das poucas coisas que me divertem mais do que assistir a um português negociando a bica que, em momento de qualidade de vida, bebe depois do almoço, uma delas é ficar a ouvir o monólogo ensurdecedor dos ricos à porta do cinema.



CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 2 de Outubro de 2010


(imagem: © www.hermes-press.com)


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2 comentários:
De Manuel da Silva Carvalho a 3 de Outubro de 2010 às 23:40
A problemática da relação entre pobre e rico sempre foi realidade, ao considerar que a humanidade depois de passar por uma situação de primitivismo, no começo de tudo, prevalecia uma sociedade mais igualitária , se é que existiu. Os seres humanos, dotados de inteligência, já trouxeram as suas distinções, que geraram as outras diferenças mais gritantes, na construção de uma sociedade revoltada, e mais desigual. Os homens com o passar dos tempos, ao aportarem no planeta terra já trouxeram consigo as suas distinções fundamentais, como um ser espiritual que, sem dúvida alguma, é que fomentam as irregularidades que são observadas por todos os lados, onde está habitado o ser humano e os espíritos que participam dessa conjuntura de construção da sublimidade conjuntural. Esse artigo tem justamente a preocupação de tentar melhor direccionar o entendimento do homem quanto os desajustes que ocorrem entre as diversas classes sociais, que a sociologia investiga tanto, indicando a causa de muitas patologias sociais, especificamente entre ricos e pobres, que são os mais estigmatizados pelos seus co-irmãos de sobrevivência.
Eh pá esse gajo da bica italiana, bem curtinha e que não podia ser junta com outra. em chávena aquecida e mais não sê quê com tantos requisitos e exigências punha-o a tirar sua própria bica, com duas lições de ensino acelerado!
Todas as nossas vidas, de pobres ou ricos, são desempenhados no grande Palco da Vida, cujos desempenhos pessoais são muito diversificados e nada tem a ver com a capacidade monetária de cada indivíduo.
De Lídia a 10 de Novembro de 2010 às 21:53
Quando diz pobre refere-se a quê?
Falta de pilim?
É que vejo gente muito pobre cheia de pilim.
E vejo gente sem pilim que é rica.
E o que é um selecto? Nunca entendi esses conceitos.
Eu não rio dessas cenas que fala.
Espantam-me. às vezes sinto vergonha mas não rio.
Porque se ri?

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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