Sábado, 2 de Janeiro de 2010
publicado por JN em 2/1/10

Se há coisa que me complica com os nervos, é “um espaço”. Um restaurante que não é bem um restaurante, mas “um espaço” onde se degustam iguarias especialíssimas, entre outros apontamentos gourmet. Uma livraria que não é bem uma livraria, mas “um espaço” de cultura e de troca, ideal para chás exóticos e longas conversas sobre o sentido da vida. Um bar que não é bem um bar, mas “um espaço” onde imperam o design, o bom gosto e a música assim-assim.


Sempre preferi, para dizer a verdade, as pessoas. São as pessoas, para mim, a determinar a atmosfera de um lugar – e, se hoje recordo os velhos botequins, de cujo tempo ainda sou, não é de certeza pelo balcão de mármore ou pelas mesas com tampo de fórmica onde se jogava dominó (as mesmas mesas que os “espaços” foram recuperar às lojas de penhores), mas pelos bêbebos que se acumulavam pelos seus cantos, o Ti Manuel Gatinho e o João Branco, o José Jadeu e o próprio Ti António Nosso, que nem sequer sei se era bêbedo mas parece que se matou.

De forma que, durante todos os anos em que, mais tarde, fui frequentador de cafés, era atrás desses homens que ia: do seu esgar de raiva ao fazer estampar sobre a fórmica um doble de senas, dos seus monossílabos ao mesmo tempo rudes e ternos, das suas histórias que não vinham de lado nenhum nem perseguiam qualquer propósito – até das vezes que cada um deles se acercava do pórtico para escarrar lá para fora, não fosse a tia Chica estar à coca e fazer queixa ao Jorge quando ele chegasse da cidade, que então sim haviam de ser elas.

Nunca mais os encontrei (embora tenha procurado pouco por portos e docas, é verdade). Entretanto, morreram os botequins – e com eles, provavelmente, uma parte da minha curiosidade sobre o que serão as pessoas da sua porta para dentro e o que disso deixam entrever quando estão com os copos, com a ânsia de baralhar o dominó ou apenas com a solidão. Mas houve um tempo, mesmo assim, em que os cafés me deram histórias.

O Café dos Artistas, no Parque Meyer, por onde cirandava o pessoal da Revista e estacionava ao longo de todo o dia uma senhora para quem eu estava a estudar para médico e tinha de diagnosticar-lhe um nó que sentia na garganta. A Pastelaria Primavera, no Casal do Marco, onde bebiam o Vasco e o Redondo e o Nuno (era Nuno?), que perdiam sempre no snooker mas não me davam hipóteses na aguardente. A Leitaria Santa Bárbara, em Angra, onde o Jacinto, a um canto, me cumprimentava com o “Ora fifa!” do costume – e onde eu me condoía com a doença mental, a doença dele e a de quem mais houvesse pirado, assim impotente perante as obrigações e as rotinas e as conversas mais banais do quotidiano.

Pois tudo isso acabou. Em Lisboa e em Angra do Heroísmo, no Porto e em Vila Velha de Ródão – cada café em que eu entre está agora transformado numa de duas coisas: num café que não é bem um café (antes, lá está, “um espaço”) ou numa espécie de discoteca de feira cigana, com a Rádio Comercial ou (mais frequentemente ainda) a RTP aos gritos, os velhos berrando uns com os outros porque querem ouvir o que está a dizer a menina Sónia Araújo e as senhoras de meia idade pousando o saco das compras e de imediato batendo o pé e abanando a cabeça de forma ostensiva, naquela sua maneira muito peculiar de dizerem que ainda são jovens e felizes.

Os cafés e, de resto, as papelarias, as floristas, os cabeleireiros e os talhos: tudo transformado num grande mercado medieval com dolby surround e ecrã plasma, o Pedro Ribeiro a contar anedotas e a Sónia Araújo a fazer rugas de tanto sorrir, os jornais jogados a um canto e a empregada demorando o galão de máquina até o Quim Barreiros acabar a cantoria, os velhos perguntando-se a si próprios se é mesmo melhor aquilo do que a aguardente e as senhoras das compras rogando pragas à prole, que se era apenas por causa da sua provecta idade não teria sido preciso ir procriar a trinta quilómetros de distância, pois, como se vê pelos gostos musicais e pela agilidade do artelho, elas próprias ainda estavam em condições de formar os netos e de prepará-los para a modernidade

Já ninguém conversa nos cafés (era isso que eu queria dizer) – e é pena. Bem vistas as coisas, até a barulheira da máquina de moer grãos e o escarro ocasional dos jogadores de dominó eram preferíveis a este autismo que agora povoa os bairros portugueses. Terreno fértil para os “espaços”, naturalmente. É dos autismos que as religiões se alimentam.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 2 de Janeiro de 2010

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5 comentários:
De antonio rubio a 2 de Janeiro de 2010 às 21:00
Joel, como o compreendo, eu ainda conheci o Athanazio, na Angra dos anos 60. já viu como está agora?
De Sandra a 2 de Janeiro de 2010 às 22:39
Não acho. Não, os cafés não morreram todos (ainda!).
Sou uma "miúda" da aldeia e cresci rodeada de pessoas que sabem tudo umas das outras, que dizem "olá filha!", que perguntam pela família toda (e até pelos amigos dos paizinhos). Mudei de terra, saí da aldeia e vim morar para uma cidade muito longe da terrinha. Pensei que todo esse calor humano, toda essa cumplicidade, todos esses conhecimentos sobre vizinhos (e até intrigas!) tivessem acabado. Não! Estudo e trabalho num café há três anos (que por brincadeira chamo de tasco, porque já só nos tascos vejo o ambiente que pensei perdido). Já é uma família lá dentro. Sim , há daquelas mulheres (e homens!) que entram todas chiques sem falar a ninguém e já não se vê ninguém a jogar dominó, mas sinto-me em casa lá (na maioria do tempo!).
Chego e, todos os homens e mulheres, todos os velhos e velhas, me cumprimentam com apertos de mão, "olá borboleta! olá amor! olá jóia! que tal a semana? que tal a escola? que tal as férias? amanhã também vens?". Dizem que sou a única que sei falar, que sei ouvir, se calhar por ter crescido na minha aldeiazinha e ter aprendido a conviver com as pessoas, de maneira verdadeira, que formam todas elas uma minha segunda ou terceira família.
Sinto-me acolhida, mesmo ouvindo a máquina do café a moer, mesmo ouvindo a RFM a tocar e, os escarros do senhor Cardoso, as histórias do senhor Jorge (que também cresceu na aldeia), as criticas pouco construtivas do senhor Alfredo as histórias de todas as pessoas da terra que as velhas vão contando, as bocas que os homens mandam para as mulheres que vêm no jornal da bola, vendo os homens a dizer palavrões quando não se conseguem conter, encostados ao balcão a beber finos e minis, enfim!
Ainda me perguntam como vai a família, tal como na terrinha de onde sou.
É o lugar onde mais convivo com pessoas que têm experiências de vida para partilhar comigo (e insistem em fazer-me crescer!), onde tenho tempo para ler estas opiniões que me cativam.
Por lá, muito bons somos nós (por algumas vezes, vá!).
De Manuel da Silva Carvalho a 3 de Janeiro de 2010 às 12:14
Quando, como remate de refeição, mesmo apressada, saboreamos a «bica», tirada a preceito e servida em chávena escaldada, ignoramos que devemos esses fugidios momentos de prazer aos turcos que, entre o final do século XV e princípios do XVI, introduziram o café na Europa Oriental.


“Eu sou Bocage
Venho do Nicola
Vou p’ro outro mundo
Se dispara a pistola”.

À mesa do café nasceram e morreram revoluções em Portugal. Poder-se-á dizer que muito da história política do país se fez aí. No imaginário dos lisboetas menos novos, a Brasileira - sem o actual balcão -, os desaparecidos Café Chiado, Martinho e Brasileira (ambos do Rossio), Gelo, Chave d'Ouro, Portugal, Palladium, Montecarlo, Paulistaria, são lugares indissociavelmente ligados a um tempo de tertúlias artísticas e literárias. Não se ia ao café apenas para tomar apressada «bica»; ali estudava-se, ali aprendia-se com escritores, pintores, cientistas que lá estariam das tantas às tantas horas. Em alguns, como o Montecarlo, também se jogava bilhar, xadrez, gamão, damas. Engraxavam-se sapatos. E até se faziam conferências de imprensa, nenhuma tão famosa, todavia, como aquela em que Humberto Delgado, no Chave d'Ouro, em 1958, se fosse eleito, anunciou que obviamente demitiria Salazar.

Entre o café e a taverna, os operários portugueses preferiam a segunda. A «gente fina» ia ao Nicola jogar bilhar. Não seria, porém, essa clientela que lhe daria fama até hoje. Mas as tertúlias de políticos e de poetas como Bocage. Quem muito lhes apreciava a presença, em particular a dos poetas, era o criado José Pedro da Silva. Emprestava-lhes dinheiro «a fundo perdido» e, no caso de Bocage, pagou-lhe mesmo o funeral.
José Pedro da Silva deixou o Nicola para se estabelecer ao lado por conta própria. Aprimorar-se-ia na decoração do botequim com cachos de uva e parras, pintados a primor. E lá começaram a chamar-lhe «das Parras», ponto de encontro de simpatizantes liberais e artistas de vários misteres.
Em 1824, quando fechou, deixava a memória de algo irrepetível: um gabinete, que o proprietário mandara construir a um canto do salão, para uso exclusivo dos poetas: chamava-se Lugar Favorito dos Sábios. Lá entrar constituía privilégio.

Tantos outros cafés houve na cidade com histórias que fizeram a história cultural e política do país: um dos mais antigos, o Martinho da Arcada, que Pessoa, sentando-se sempre à mesma mesa, frequentou até morrer; o Herminius, na Almirante Reis, um café de «reformados, de desempregados e de pequenos chulos», como escreveu Cardoso Pires, foi, com o Gelo, ponto de encontro do grupo surrealista.

O Vá-Vá, também conhecido pelo «ninho de lacraus», nos anos 60, reunia realizadores do cinema novo português. Na mesma altura, Ferreira de Castro frequentava a pastelaria Veneza. Almada Negreiros, a pequena Brasileira do Chiado. José Cardoso Pires tanto ia ao minúsculo Passo - poiso de Ventura Ferreira, Fernando Namora e Palla e Carmo, onde se bebia o meio uísque mais barato de Lisboa - como ao Montecarlo, que juntava Carlos Oliveira, Abelaira, Gomes Ferreira e outros «herdeiros» do neo-realismo. Coexistiam - à distância de algumas mesas - com surrealistas e «aparentados». De Pedro Oom a Virgílio Martinho, de Luís Pacheco a Herberto Helder.

O 25 de Abril confundiria, no entanto, à sombra do PCP, parte substancial dessas capelinhas. Último grande café de tertúlias da cidade, o Montecarlo congregou os clientes dos que iam fechando: até ao seu encerramento, nos anos 90. Estabelecimentos charmosos, marcaram diferentes épocas, foram ponto de encontro e, muitas vezes, de partida para movimentos sociais, políticos, culturais. Pelas portas de cafés, passaram algumas das mais emblemáticas figuras públicas. Hoje, alguns vão subsistindo, consituindo-se como verdadeiros refúgios onde a História passada parece, ainda, continuar a vibrar


De Susana Gaspar Gardete a 4 de Janeiro de 2010 às 15:37
(Depois de ler fiquei com um sorriso cúmplice. Sinto exactamente o mesmo...)
Apetece-me comentar isto com aquela expressão que mais me irrita:
Não há palavras.
De Ricardo a 4 de Janeiro de 2010 às 22:23
É verdade. Em Lisboa, se não acabaram, são, de certeza, já muito raros. Quanto ao sorriso da Sónia Araújo, receio bem que aquilo seja um caso irremediável, Joel.

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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