A CASA DA MORNA, em Alcântra, tem alguma da melhor comida africana de Lisboa. Cachupa refogada, calulu de peixe, moamba de galinha – só os nomes são poemas. Mas é para ouvir “Regasu” que eu lá volto.
Um homem desenvolve obsessões estranhas, ao longo da vida – e uma daquelas a que mais gratuitamente me tenho dedicado é à da história de Orlando Pantera. Não vale a pena ir à Wikipedia: ainda ninguém se preocupou em devotar-lhe um artigo pop, por mínimo que fosse. E, no entanto, a sua música resiste. Faz esta semana onze anos, o criador do neo-batuku teve uma pancreatite e morreu, na ilha de Santiago. Tinha a idade de Cristo: 33 anos – e, três dias depois, deveria partir para Portugal, onde vinha gravar o disco que se esperava que mudasse a face da música de Cabo Verde. E desde que pela primeira vez ouvi a sua “Regasu (Seiva)”, cantada por Leonel Almeida no velhinho Enclav’ (“Mórna k-um konxé/ Inda mininu na regasu/ Na óra di dispidida um kré també/ Uvi-b oh morna!”), uma parte do meu tempo de lazer tem sido devotada a coleccionar versões dessa que já não me soa apenas a melhor tema da história da morna, mas a banda sonora de um trajecto pessoal, com os seus pequenos triunfos e os seus incontornáveis escolhos. Já a ouvi cantada por Mayra, sofisticada e bela, e por el-rei Tito Paris, rouca e directa ao coração (“Bo seiva/ Invadi-m nha korasom sem limit/ Ai si um pudéss/ Bibé um káliss d’bo meludia!”). Já a passei na rádio cantada por Mário Rui, toda anos setenta. Já a ouvi dedilhada por Noah, soprada por Morgadinho, trauteada por Teté, irmã de Alhinho, o primeiro quase-amigo que tive no futebol, e de quem sinto às vezes saudades inexplicáveis. Desta vez, até a ouvi uma segunda vez na mesma noite, entoada por Dany Silva, já em fim de festa, a pretexto de um grogue. E, no entanto, foi para escutá-la novamente na voz de Leonel Almeida que voltei à Casa da Morna. Foi para mostrá-la aos meus compadres, cujo regresso definitivo a Portugal bem pode significar a minha reconciliação com Lisboa. E foi para tornar a perguntar-me, naquele silêncio íntimo que apesar de tudo um homem sempre encontra, mesmo no meio dos seus mais queridos, como se pode aceitar que uma Providência deixe morrer um criador como Pantera a três dias de registar o seu génio. Então, Leonel chegou-se à frente e lamentou-se: “Bo feitiss ta infeitisa-m/ Bo prága t’amaldisua-m/ Bo séka ta seka-m nha peit/ Más mésmu asim ja-m kre-b oh mórna!” – e de novo me doeu uma dor que eu não conheço. Quanto ao resto, claro: bebemos de mais e esquecemos de mais e lembrámos de mais ainda – e fomos também demasiado felizes e demasiado apaixonados para aquilo que nos aconselham estes tempos, feitos de parcimónia e sobrolho carregado. Custou a excentricidade qualquer coisa como € 37 por pessoa, incluindo aperitivos, cachupas refogadas e vinhos – e estava tudo tão apurado e bom e bem servido, que se nos tivessem exigido mais era igual. Para a próxima, prometo: peço o modje de Manel Antône, o calulu de peixe, a moamba de galinha ou a moqueca de camarão. A não ser, claro, que cante o Leonel. Se cantar o Leonel, então eu tenho de pedir “Regasu” – e “Regasu” acompanha-se com cachupa refogada. Quem diria que uma das mais comoventes refeições de Lisboa podia ser assim, feita de milho reaquecido, com um pedaço de linguiça frita ao lado e um ovo estrelado por cima?
CASA DA MORNA
Rua Rodrigues Faria, nº 21, 1300-501 Lisboa
Tel: 213646399/966408656
Cozinha africana. Estilo/atmosfera: trendy/musical. Vinho a copo. Não fumadores. Reserva aconselhável. Aberto das 20:00 às 02:00. Fecha aos domingos. Preço médio: € 35
Estacionamento
Redondezas
Vista
Decoração
Atmosfera
Know-how
Carta de vinhos
Aperitivos e digestivos
Produtos
Confecção
Quantidade
Qualidade/preço
Crónica gastronómica ("Restaurantes"), Notícias Magazine, 26 de Fevereiro de 2012