Sexta-feira, 3 de Fevereiro de 2012
publicado por JN em 3/2/12

O Solar dos Presuntos como testemunha do arranque da época lisboeta da lampreia. E como anfitrião. E como templo. Há coisas que um homem tem de fazer todos os anos – apenas isso.

 

Na maior parte das vezes sou profundamente açoriano, mas uma vez por outra sou um homem do Norte que nasceu por acidente nos Açores e vive por acaso em Lisboa. E foi precisamente assim que voltei a sentir-me quando, um dia destes, liguei para o Solar dos Presuntos, a indagar sobre o arranque da temporada da lampreia.

O restaurante da Rua das Portas de Santo Antão, um dos mais incontornáveis “bons garfos” de Lisboa, nunca decepciona. Aos seus pratos habituais, incluindo as feijoadas de marisco, as pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, os filetes de peixe-galo e os cabritos assados, raramente é possível apontar um defeito – e nunca, por nunca ser, exige que respiremos a meio do nome de um prato, como acontece naquelas casas moderninhas em que se come “Lombo de Salmão com Crosta de Ervas em Cama de Vinagrete de Tomate e Redução de Balsâmico”. Ali, e sendo preciso decorar alguma coisa, é isto: às quartas há cozido à minhota, entre Janeiro e Abril há lampreia – e é sempre sublime, ela como ele.

“Começamos amanhã ao almoço!”, respondeu-me um dos empregados, com ponto de exclamação e tudo. Às 12:30 do dia seguinte já lá estou. Sento-me numa mesa logo à entrada e faço o pedido habitual: arroz de lampreia à moda de Monção (dose de três toros por € 28) e vinho verde tinto da casa, o mais fresco possível. Espero. O rito, note-se, não provoca em Lisboa o mesmo estertor social de que se faz rodear no Norte. Mas, também por isso, aqueles que o seguem vivem-no como uma espécie de manifesto, com mais paixão ainda, quase como proselitismo.

Olho em volta. Não há cozinha molecular ou sequer gente demasiado delicada: ali mastiga-se de boca fechada, mas cheia, misturando sabores e cerrando os olhos, à procura de memórias. Pelas paredes dispersam-se dezenas (talvez centenas) de fotos de famosos: estrelas de TV e futebolistas, fadistas e políticos, todos ao lado do proprietário da casa, num dos mais divertidos exemplos lisboetas do já chamado “síndrome do dono de restaurante italiano”. Na mesa ao lado almoçam dois casais franceses – e é a rapariga mais jovem, linda e insinuante, como que saída de um filme de Just Jaeckin, que pede lampreia também, juntando-se à religião.

Decididamente: posso estar a almoçar sozinho, mas não estou só.

E, quando enfim chega a lampreia, no meio de um arroz bem ligado, denunciando o tempo ideal de marinagem em vinho e em sangue e a exposição perfeita à noz moscada, muito mais do que ao cravinho, é verdadeiramente (deixem-me usar esta linguagem) a felicidade que me inunda, uma felicidade íntima e completa, alheia ao barulho da sala e à natureza da cidade e ao próprio mês em causa – uma felicidade que se escapa do tempo e do espaço e não é de outrem senão minha. Então, ergo o verde tinto à luz ténue da porta de vidro e brindo a mais um ano que findou. Se a morte é a mais solitária das etapas, então talvez valha a pena, ao menos de doze em doze meses, celebrar a vida e a sobrevivência e a resiliência e a teimosia em solidão também.

Pela porta continuam a entrar pessoas. Algumas andam a telefonar desde o Natal, outras foram alertadas pelo cartaz preso na montra: “Chegou a lampreia!” Agora, é a sua vez de submeter-se o cerimonial purificador. De qualquer maneira, para o ano voltamos a cruzar-nos ali.

 

RESTAURANTE SOLAR DOS PRESUNTOS

Rua das Portas de Santo Antão, nº 150, 1150-269 Lisboa

Tel: 213424253

 

Cozinha tradicional. Estilo/atmosfera: bom garfo. Sala para fumadores. Reserva aconselhável. Aberto das 12:00 às 00:00. Fecha aos domingos e aos feriados. Preço médio: € 40

O LUGAR

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Redondezas {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Vista {#emotions_dlg.star}

Decoração {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

O SERVIÇO

Atmosfera {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Know-how {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Carta de vinhos {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Aperitivos e digestivos {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

A COMIDA

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Confecção {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Quantidade {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

Qualidade/preço {#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}{#emotions_dlg.star}

 

Crónica gastronómica ("Restaurantes"), Notícias Magazine, 29 de Janeiro de 2012

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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