Não há. Tive uma semana daquelas, sem espaço para engendrar nem uma das cinco ou seis ideias entre as quais habitualmente (vocês pensavam que isto era feito à base do quê, inspiração?) escolho a que me parece melhor – e, quando acordei esta manhã, fui de imediato percorrido pelo calafrio da falta de crónica. No entretanto, ainda escrevi dois textos menores e saí para um comentário de televisão, deriva ao longo da qual esperava que me aparecesse uma crónica. Mas não: apareceram-me seis posts para o FaceBook, um monte de pequenas soluções e de novos dilemas para um livro que já devia ter acabado, uma série de ideias sobre afazeres domésticos e compromissos burocráticos e diligências sociais – e, quanto a crónica, nada. Agora, são dez da noite de domingo, Lisboa está enfim adormecida, preparando-se para mais uma semana de trabalho, e eu ainda nem sequer fechei a semana anterior. Não tenho crónica. Não tenho crónica e não tenho tempo, porque já estou em cima da hora para entregar a crónica.
Passei a tarde de volta de ficheiros com possibilidades de crónica, mas sem sucesso. Todas as semanas arquivo as quatro ou cinco ideias que considero, mas depois abandono. As mais fracas vão para uma vala comum. As de que gosto mais ganham um ficheiro próprio. Guardo-os por etiquetas: ideias completamente por trabalhar, etiqueta amarela; ideias bem encaminhadas, etiqueta laranja; ideias quase prontinhas a safar-me num dia em que não tenha crónica, etiqueta vermelha. Ao longo dos dias, das semanas, dos meses, muitos ficheiros vão mudando de cor. Ponho lá coisas dispersas que me vão ocorrendo, e que encaixam aqui ou ali, às vezes na qualidade de argumentos e outras ainda (são as melhores) na qualidade de idiossincrasias, de pequenas demagogias, de grandes obsessões. Por esta altura, e para além da vala comum, etiquetada a verde, a pasta tem 197 documentos, dos quais 38 a vermelho. Acabo de percorrê-los pela segunda vez. Durante a tarde, trabalhei em oito deles, quase sempre seguindo o meu modelo mais seguro, e a que os teóricos talvez chamassem “fórmula” (mas injustamente, pelo menos para ele). No fim, abandonei-os a todos. Alguns encaminhavam-se para o estatuto de comentário, outros de artigo, outros ainda de análise. Nenhum para o de crónica.
Não me faltam temas. Um dia destes, e com a maior das facilidades, vou zurzir nos gestos maneiristas com que os moderninhos provam o vinho, na forma acéfala como tantas vezes reduzimos a opinião aos argumentos “gosto” e “não gosto” e nesta nova mania, tão em voga entre notórios falhados, de chamar aos filhos os seus próprios nomes, acrescentados do pós-apelido “Júnior”. Vou elogiar os homens que vestem um fato de propósito para andar de avião, os funcionários intermédios que regressam do almoço com o casaco pelos ombros e os trolhas que se amontoam nas furgonetas que às segundas e às sextas-feiras vogam pela A1. Mais: vou fazer a apologia da rotina, dos rádios de pilhas, do Sporting de Domingos Paciência, do Second Love, da pornografia em geral – e depois ainda vou declarar o meu crescente ódio a óculos escuros, a pessoas boazinhas, à FNAC, ao optimismo e aos sonsos, que na verdade apenas odeio por não conseguir encontrar em mim também a mais útil de todas as grandes qualidades humanas: precisamente a sonsice. O que me parece é que algum tempo me separa ainda do momento em que serei capaz de transformar esses temas em crónica. Talvez se pudesse dizer que esse tempo é ele próprio a crónica. Mas isso já seria pôr-me de novo a tentar escrever uma crónica, coisa que hoje, manifestamente, não consigo.
Quando comecei esta série de crónicas – há agora o quê, seis, sete anos? –, disse a mim próprio: “Um dia, Joel, vai faltar-te a crónica e terás a tentação de escrever sobre o facto de não teres crónica. Tens o direito a isso, mas só uma vez. Certifica-te de que estás mesmo desesperado.” Pois eis aqui esse dia. Agora vou tirar uma semana de férias, que talvez seja o melhor para todos. Prometo passá-la à procura de crónicas.
* Esta coluna interrompe-se uma semana, para férias, e regressa a 11 de Setembro
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 20 de Agosto de 2011
(imagem: © www.lcarlateresa.deviantart.com)
Aos onze anos, o meu pai apascentava ovelhas em Porto de Mós. Levantava-se de madrugada, era destratado por patrões abrutalhados, alimentava-se desadequadamente, levava coices de mulas neuróticas e, em geral, tinha uma vida semelhante à de uma personagem de Steinbeck.
O serviço militar, a guerra colonial e, em particular, as Tropas Pára-Quedistas Portuguesas abriram-lhe horizontes e deram-lhe oportunidades, que na verdade foram as minhas oportunidades também. Mas a sua pré-história de sobrevivência, tal como a vontade indómita de que teve de socorrer-se para superar a sua condição, incrustaram-se-me no carácter.
Tenho de deixar de julgar as pessoas em função apenas da sua ética de trabalho, que me ponho velho. Mas a questão é que, quando olho para a malta de hoje (por favor, deixem-me usar a expressão “a malta de hoje”), sinto-me bem mais próximo do meu pai do que dela. E não falo apenas do ponto de vista moral (pobre daquele que, aos trinta, não chegar à conclusão de que, afinal, o pai é o melhor homem que já encontrou). Falo também do ponto de vista prático.
Há quinze ou vinte anos, apesar de tudo, ainda se fazia um esforço. A ideia que tenho é que, hoje em dia, já ninguém faz um esforço – e, se tenta, não sabe como fazê-lo, porque a tenacidade se diluiu no tempo, porque algures um elo se quebrou, provavelmente com a prosperidade. Nós não somos um povo ao qual a prosperidade assente bem, ou sequer faça bem.
Adiante. Na semana passada, precisei de comprar um estrado para uma cama. Está bem, está bem: bastava-me ir ao Ikea, à Moviflor ou a qualquer outra mega loja de mobiliário formatado, que tinha dezenas de opções a todos os preços, incluindo estrados quase dados. Agora já sei isso, mas na altura não sabia (vocês talvez ficassem surpreendidos com a quantidade coisas que eu não sei, nomeadamente sobre a vida real).
De maneira que liguei para seis carpintarias de Lisboa diferentes, a encomendar uma prancha de tabopan com 2,00 m por 2,20 m. Está bem, está bem: os estrados das camas já não podem ser feitos em tabopan, porque os colchões precisam de respirar, caso contrário vêem reduzida a sua vida útil. Agora já sei isso, mas na altura não sabia (vocês talvez ficassem surpreendidos com a quantidade coisas que eu não sei sobre a dimensão animal dos objectos, embora também orgulhosos do que tenho aprendido sobre a dimensão humana dos animais).
O facto é que, das seis carpintarias em causa, uma não atendeu, outra disse-me para deixar nome e número de telefone, que o marceneiro logo me ligava (não ligou), outra tinha o operador de máquinas de férias, outra precisava primeiro de confirmar se havia tabopan em stock e as restantes duas lamentavam muito, mas só se dedicavam a trabalhos industriais para empresas.
A nenhuma interessou a minha obra de cinquenta euros – são trabalhos pequenos, dão mais despesa do que lucro. A nenhuma interessou sequer despistar a possibilidade de, atrás desse trabalho, virem outros – um gajo que quer uma prancha de tabopan nunca vai pedir mais do que uma reparação nas persianas ou um afagamento no soalho. E a nenhuma, naturalmente, o sentido de missão se impôs sobre o interesse contabilístico – que diabo é isso, afinal, “sentido de missão”?
E eu, que já fui um gastador, fico a pensar que a crise ainda não chegou, a não ser àqueles que perderam os empregos. E mesmo a alguns desses, aliás, não chegou, caso contrário não pegavam tantos deles nas indemnizações para irem comprar carros novos, que os antigos, coitados, já estavam a ficar um bocadinho descaídos.
De resto, os taxistas continuam a chatear-nos a molécula de cada vez que a corrida é inferior a cinco euros, o que significa que o negócio ainda não vai tão mal quanto isso. Os festivais de Verão tornaram este ano a bater recordes de afluência, o que nos demonstra que muitos orçamentos familiares ainda não levaram a pancada. E qualquer contestação que vá havendo ao estado de coisas ainda se resume ao protesto puro e simples, feito quase por desporto, sem subversão criativa, sem malícia, sem cultura.
Tudo bem: por mim, fui ao Ikea e ainda trouxe de lá um candeeiro. Mas, se isso resolveu o meu problema, não resolve o problema da economia portuguesa. Continuamos a viver, tenho a impressão, como se estivéssemos em 1998. E, quando isto bater, já será tarde de mais.
Todos o sabemos: é uma época do ano com especial propensão para a idiotice, esta que atravessamos. Como se não bastassem a crise, a instabilidade da meteorologia e os setenta e seis reforços do Benfica, homens de barba rija passeiam-se de chinelos pelas ruas, televisões e jornais e revistas enchem-se de histórias sobre as férias dos “famosos” no Algarve, automóveis param nas estações de serviço e logo de dentro deles saltam quatro grunhos de trinta anos para se porem a jogar à bola entre as bombas de gasolina.
Sempre tivemos jeito para a idiotice. Contudo, e por muito que abundem os exemplos de como sempre tivemos jeito para a idiotice, sobrevivemos bem no meio da idiotice e tantas vezes até nos superámos nos domínios da idiotice, creio que poucas vezes fomos tão escandalosamente idiotas como quando decidimos, ainda um dia destes, distribuir nas salas de cinema portuguesas o filme dos Estrumpfes com o nome inglês da série, “The Smurfs”.
Notem que pouco me une à coisa. Por acaso (não por acaso, está bem, não por acaso), “Estrumpfe Resmungão” até era uma das minhas alcunhas de infância. Mas, se vamos falar dos desenhos animados do meu tempo, eu lembro-me muito mais rapidamente do Tom Sawyer, sobre todos os outros inspirador para um rapaz do campo como eu, do Dartacão, que fez de mim o mais exímio espadachim da Terra Chã, ou do Conan, o rapaz do futuro, pelo qual, ao contrário do que alguma vez aconteceu com os Estrumpfes, ainda troquei algumas tardes a jogar à bola.
Mais: se há uma coisa que eu não sou, é um saudosista dos anos 80, a mais pirosa década da história da cultura pop, com os seus casacos de chumaços, os seus solos de guitarra eléctrica e a sua deificação de K.I.T.T., o carro de Michael Knight. E mais ainda: fosse o dito filme sobre os Estrumpfes ou o Capitão América, o Panda Taotao ou os Jovens Heróis de Shaolin, para mim era-me igual ao litro, porque, como já aqui disse, estou farto de cinema para bebés grandes até à mais fina pontinha dos meus cada vez mais escassos cabelos.
Não deixa de ser fascinante, porém, constatar como, quando queremos mesmo sê-lo, nós conseguimos com toda a facilidade ser superlativamente idiotas. E como, quando queremos mesmo sê-lo também, com maior facilidade ainda conseguimos ser espectacularmente provincianos. Chamar “The Smurfs” aos Estrumpfes, por acaso, é as duas coisas ao mesmo tempo: superlativamente idiota e espectacularmente provinciano.
Não duvido nada de que um estudo de mercado tenha aconselhado o título em inglês, note-se. Persistem entre as nossas gerações mais velhas uma falta de mundo e um analfabetismo tais que um adolescente com noções rudimentares da língua de Shakespeare se torna automaticamente na superestrela lá de casa, o raça do miúdo, que fala inglês como um papagaio, e mais ó camandro. Iletrados de todas as idades rendem-se de paixão a um livreco com histórias de feiticeiros e dragões e depois, sem mais o que dizerem sobre ele, dizem que “está brutal”, tirando “alguns problemas de tradução”, protesto com o qual, de novo, não pretendem outra coisa senão deixar claro que falam inglês como papagaios, os raças dos miúdos, e mais ó camandro.
Mesmo eu, confesso, sempre me orgulhei idiotamente do meu inglês. Nascido numa ilha que me permitia o contacto com militares americanos, cedo me familiarizei com o sotaque das Appalachians – e ainda hoje, passando uma boa parte da minha actividade pelo jornalismo de golfe, incluindo comentários na TV, dou por mim, pacóvio também, a armar-me aos cucos em directo com os greens in regulations e os scramblings e os up-and-downs, todos cantadinhos no mesmo tom em que os cantariam (e, aliás, cantam) Jim Nantz, David Feherty e Peter Kostis.
Pois acaba aqui. A partir de agora, e à maneira de Eça, hei-de falar orgulhosamente mal inglês – e, se me exigirem que chame aos Estrumpfes algum nome em língua estrangeira, então hei-de chamar-lhes “Les Schtroumpfs”, que ao menos é o seu nome original. Com tudo isto, não conseguiram os senhores da Columbia TriStar Warner outra coisa senão pôr-me a admirar espanhóis, franceses e italianos, com quem durante tanto tempo gozei por não conseguirem dizer uma palavra noutra língua que não a sua. Afinal, tão espertos, tão espertos, tão espertos que nós somos, e ainda fomos afundar-nos na crise primeiro do que eles.