Domingo, 24 de Julho de 2011
publicado por JN em 24/7/11

É claro: a maior parte do que tenha a ver com o Verão e a sua indumentária é uma pequena tragédia. Um homem põe-se a pensar na economia, decide que vai voltar a dar uma oportunidade aos saldos, onde há dez anos não consegue comprar uma camisa, e arrepende-se logo na primeira loja em que entra. Aparentemente, nos primeiros dois dias houve belíssimas pechinchas: fantásticas camisas de 140 euros vendidas a 130 e gloriosos pares de calças de 160 praticamente oferecidos por 149,99. Ao fim de uma semana apenas, porém, é a desolação. Ainda Agosto vem longe e já está tudo com 60 por cento de desconto. Por outro lado, está também tudo remetido a uma prateleira sombria e mal arrumada, para assegurar que o pelintra em causa se dá conta da sua pelintrice – e, principalmente, o espólio resume-se a calças às riscas com pespontos em vermelho-vivo, camisas com bolas cor-de-laranja combinadas com quadrados roxos (perdão, “xadrez lilás”) e, quanto ao resto, muito pólo, muito calção e um ou outro téni (não vale a pena telefonar, sr. revisor, é “téni” mesmo que eu quero dizer).

No fundo, e a partir do momento em que começam as promoções, já só há lugar a três tipos de homem em Lisboa: o engravatadinho da gestão de produto, o street-wearer do assalto à navalha e o betinho do sapato de vela e crocodilo ao peito. Tudo o resto fica confinado a zonas de fronteira, a limbos, a terras de ninguém – e, como se trata de franjas incaracterísticas, ocupadas por gente desprovida de carisma, os designers não encontram outra solução senão ocupá-las com roupa de brincar. Bem vista as coisas, não há camisa que não tenha uns números, uns dizeres, uns bonequinhos. Não há calças que não tenham uns botões nos sítios mais surpreendentes, uns quase-rasgões nas coxas, umas faixas que parecem cintos, presas às carcelas como se fossem cintos, com fivelas iguaizinhas às fivelas dos cintos, mas que na verdade não abrem nem fecham – são apenas para enfeitar. E não há t-shirt que não tenha uma marca gigante, a silhueta de uma planta de cannabis ou mesmo uma frase de andaime, apesar de tudo preferível a um lema de vida (a não ser nos casos em que os dois coincidem).

Se se trata de uma mulher, nenhum problema: procurando bem, há alternativas. Se for um gay, idem aspas: mais ou menos extravagante, há sempre alguma macaquice enquadrável no largo espectro de combinações que o género autoriza. Já um hetero tem dificuldades. No essencial, e para conseguir comprar duas camisas, um homem tem de sair de sair de casa no dia anterior, disposto a fazer fila à porta do centro comercial e deixando sobre a mesa da sala um bilhete dirigido à mulher e aos filhos: “Não sei quando volto. Se demorar, não se prendam. Contem a minha história.” Ora, eu não tenho tempo para isso – e, se tivesse, não era a isso que o dedicava. Por outro lado, suponho que muitos outros não tenham tempo também, caso contrário não se encontrariam cada vez mais homens de Lisboa passeando na rua com jeans e chinelos, arranjo sobre todos os outros plausível a partir da roupa de brincadeirinha a que os famigerados saldos nos limitam.

Os chinelos. Se me perguntarem qual é, de todas as soluções de indumentária ao alcance de um ser humano, aquela que eu nunca usarei na rua, então cá vai: são os chinelos. Grandalhões ou disfarçadinhos, cor-de-laranja como havaianas ou pretos como os mais sofisticados sapatos italianos, combinados com bermudas às flores ou, o que é o pior de tudo, com calças de ganga – não há um par de chinelos que um homem possa usar na rua sem se transformar de imediato num parolo histérico. Perguntam-me: “Mas estás tonto, ou quê? E se estiverem quarenta graus, continuas a achar isso?” Sim, continuo: até sessenta graus, acho uma parolice histérica. Para mim, é muito simples. Um homem põe uns chinelos para sair à rua e logo deixa de ser um homem para passar a ser outra coisa qualquer: um adolescente em crise de género, um interno do Júlio de Matos em precária ou uma personagem dos Morangos Com Açúcar evadida da telinha. Por favor, não me obriguem a ver pés de homens. O último homem com pés bonitos de que me lembro era o Liedson – e mesmo esse tinha o preocupação de, ao sair para a rua, calçar uns pitons. As nossas escatologias são para exibir em casa.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 23 de Julho de 2011

(imagem: © www.psacores.org)

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Domingo, 17 de Julho de 2011
publicado por JN em 17/7/11

Tenho usado os Açores, neste espaço, como o epítome da terra antiga e decente. Faço-o às vezes por questões racionais, muitas vezes por questões emocionais e uma vez por outra por questões puramente lúdicas, que amiúde são as mais relevantes de todas. O facto é que, enquanto por aqui, no continente, vamos discutindo os solavancos próprios de uma bancarrota evitada in extremis,  nos Açores começam a reunir-se as condições ideais para uma golpada política de dimensões latino-americanas. E, como nem sempre a decência geral se tem revelado suficiente para blindar a democracia açoriana dos seus velhos inimigos, é importante que António José Seguro e Francisco Assis, agora que se preparam para discutir o futuro do partido que esteve no poder em Portugal nos últimos seis anos e que está no poder nos Açores há quinze, se definam sobre se pretendem ou não permitir a dita golpada.

Curto resumo dos acontecimentos. A Sexta Revisão Constitucional, publicada em 24 de Julho de 2004, impunha aos Açores e à Madeira a aprovação de um novo Estatuto Político-Administrativo. A Madeira, onde os imperativos da República gozam de pouca popularidade, fez uma primeira investida e deixou cair o processo. Os Açores determinaram que respeitariam a Constituição – e de imediato deram início ao debate. Uma das regras a incluir dizia respeito aos mandatos do presidente do Governo Regional, que passavam a estar limitados a três. Problema: Carlos César já estava no terceiro mandato, pelo que conseguiu levar à aprovação uma norma transitória, redigida por ele próprio, em que se previa que, caso a publicação do novo Estatuto em Diário da República ocorresse durante o terceiro mandato do presidente, então este estaria autorizado a um quarto mandato ainda.

As coisas, como se sabe, acabaram por decorrer aos tropeções. Quando o novo Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores foi definitivamente aprovado, já havia sido alvo de vetos prévios do Tribunal Constitucional e do próprio Presidente da República. Pior: no dia em que foi publicado em Diário da República, Carlos César já não estava no seu terceiro mandato, mas no quarto, começado há pouco tempo. E é precisamente com recurso a esse inesperado sobressalto cronológico que alimenta agora o tabu – o qual vem deixando a própria oposição suspensa – sobre se candidata ou nas eleições legislativas regionais de 2012. Afinal, a ausência de letra da lei sobre um quinto mandato pode ou não permitir a César vinte anos de exercício do poder, incluindo uma maior degradação ainda da sociedade civil, há tantos anos habituada a transaccionar o voto por empregos públicos, subsídios à subsistência ou mesmo apenas passeios de barco?

Não pode. É claro que não pode: a letra da lei não o proíbe, mas o espírito da lei impede-o abundantemente. Só que esse impedimento pode apenas vir a ser decretado pelo Tribunal Constitucional – e, nesse caso, depois das eleições, não antes. Donde resulta que Carlos César vai fazendo a sua parte na construção de um cenário que lhe permita ganhar as eleições para o PS – porque de facto ganharia – e, depois, um pouco à maneira das novas dinastias republicanas, ser obrigado a legar o poder a um dos seus putativos sucessores (Vasco Cordeiro, Sérgio Ávila ou José Contente), qualquer um deles, dizem as sondagens, destinado a ser esmagado nas urnas pela líder da oposição, Berta Cabral. Alguma da comunicação social do arquipélago, de resto, já vem fazendo a sua parte também, dando eco à ideia, não por acaso cada vez mais acarinhada pelo presidente, de que, de qualquer maneira, as legislativas são um sufrágio para a Assembleia Regional, não para a Presidência do Governo. E ademais, como todos sabemos, há manigâncias a que a distância geográfica, ainda que por preguiça, traz uma estranha, difusa, mas ainda assim efectiva legitimidade política.

Ouvir da parte de Assis e Seguro a garantia de que não deixarão os Açores caudilhizar-se, como se calhar a Madeira se caudilhizou, seria tranquilizador para os açorianos que persistem ciosos da sua democracia. Mais do que isso: seria uma garantia de que as eleições de 2012 decorreriam em ambiente respirável, sem as chantagens emocionais e as habilidades políticas que começam a insinuar-se no horizonte. Bem basta que no actual programa do Governo da República não conste uma palavra sobre as regiões autónomas, não?

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 16 de Julho de 2011

(imagem: © www.psacores.org)

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Domingo, 10 de Julho de 2011
publicado por JN em 10/7/11

Campónio encartado, dou por mim, ciclicamente, a caminho de uma dita “unidade de turismo rural” escondida atrás de alguma montanha, no meio de uma floresta, no fundo de uma herdade. Raras vezes a experiência redundou noutra coisa que não em fracasso. E, no entanto, torno a ter uns dias livres, confiro a impossibilidade de dar um salto aos Açores – onde continuo sem descobrir como posso evitar que os melros pretos me comam os tomates de capucho – e já aí estou de novo à procura de uma (adoro esta palavra) unidade. Gosto razoavelmente de bichos, gosto bastante de árvores, gosto muito de espaços abertos e gosto ainda mais das gentes do campo. Gosto, preciso delas, deles, disso. E não é por, passados dois dias apenas, estar já a morrer de saudades da cidade, de bueiros por onde saem fumos pestilentos, de inspectores da EMEL e de esquinas onde os rapazes urinam de pé e as raparigas como calha, que deixo de voltar ao chamado turismo rural na oportunidade seguinte.

Agora, que há meia dúzia de gestos de caridade com que os proprietários dessas (cá vai outra vez) unidades podiam prevenir tais saudades, tão inesperadas como absurdas para um campónio encartado, isso há. Por exemplo: podiam evitar apresentar-me uma sanita velha, com um daqueles tampos rachados que dão beliscões quando nos sentamos, como uma pérola do mobiliário pós-vitoriano, apenas conservado em resultado do empenho dos proprietários e do sereno tráfego intestinal dos visitantes. Podiam apresentar-me o quintal, e até chamar-me a atenção para o monte de silvas ao canto, sem começar de imediato a declamar odes às amoras que ele produz e às compotas que com elas se fazem, se ainda por cima estamos em Maio e nem sequer em flor as silvas estão. E podiam, já agora, evitar mandar-me tomar banho antes de entrar na piscina natural, na presunção de que trago comigo suficientes micróbios para contaminar as rãs com que tenho de nadar e o mosquedo que, ao longo de toda essa aventura, sobre nós esvoaçará.

De resto, e muito honestamente, não há paciência para os moderninhos de Lisboa que a si próprios se transformaram em anfitriões de turismo rural. Não há paciência para o seu cosmopolitismo bacoco, para a sua contemplação ostensiva, para a sua pose missionária. Nem quero saber se deram o berro, se decidiram ter filhos em ambiente mais saudável, se apenas perderam o emprego e não tiveram outra solução senão pegar nas terras que um tio velho lhes deixara. Muitos anfitriões de turismo rural que conheço nunca plantaram uma batata e, no entanto, asseguram-se mais campestres do que um pastor da Serra D’Aire. Ao pé de um anfitrião de turismo rural português, até um camponês de Trás-Os-Montes se sente culpado por ter um cartão multibanco e um telemóvel de carregamentos. Para além de tudo, há-de ser comedor de carne, utilizador de carro e mesmo utente de um centro de vacinação – vai ter mas é de ouvir o sermãozinho todo, que não é melhor do que os outros.

Aliás, não há nada de que o proprietário de uma unidade de turismo rural portuguesa goste mais do que de falar durante a tarde inteira e de ser ouvido durante a tarde também. E o script é simples. Na primeira hora, todos eles são contemplação, compostagem, espírito blue. Na segunda hora, todos eles são neurose, protesto contra as limitações da região e lamento por não ser possível combinar o melhor do campo e o melhor da cidade numa vida só. E na terceira hora, vistos os nossos braços levemente abertos de quem diz “Ouça, meu bom homem, minha boa senhora, deixem-nos gozar um bocadinho o cheiro destas oliveiras, que amanhã já temos de fazer-nos à estrada”, todos eles são fundamentalismo, repreensão velada e julgamento definitivo sobre o quão aquém nós estamos de tudo aquilo, sobre como somos ignorantes e brutos e assassinos e indignos do seu esforço, da sua piscina natural, do seu silvado fértil, da sua sanita beliscadeira.

E, porém, no ano seguinte estou a caminho de uma nova unidade de turismo rural, disposto a pagar mais duzentos e trezentos euros por duas noites mal dormidas. Já saio de Lisboa aborrecido, para dizer a verdade. Mas, mais dia menos dia, encontro uma que tenha tomates de capucho – e, então, talvez o anfitrião me ensine a protegê-los dos melros pretos. Ainda não experimentei os métodos dos moderninhos.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 9 de Julho de 2011

(imagem: © www.azinhalturismorural.com)

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Os Sítios Sem Resposta",
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"O Terceiro Servo"
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do Futebol Português",
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"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
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"José Mourinho, O Vencedor",
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"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
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