Domingo, 19 de Junho de 2011
publicado por JN em 19/6/11

Bem vistas as coisas, era quase sempre domingo – e agora que eu me ponho aqui a escrever, sentado nesta cozinha repleta de luz enquanto os foguetes explodem ao fundo e a cada um deles a banda filarmónica retoma a sua melodia festiva, celebrando o Bodo e celebrando o domingo, lembro-me desses dias e de tudo o que de cada um deles fazia um dia diferente dos outros. Para começar, não havia textos para entregar, telefonemas para fazer, e-mails para esgrimir. Não havia lutas para travar. Era domingo, dia do Senhor – e aos domingos, independentemente do senhor de cada um, os homens descansavam.


Eu não era um homem, claro – era apenas um miúdo –, mas aos domingos acompanhava com eles, homens e mulheres. De manhã, vestíamos cada um a sua melhor toilette, tantas vezes ponderada durante a semana inteira, e íamos agradecer o dom da vida (chamávamos-lhe “o dom da vida”, e ainda hoje não tenho a certeza de que isso fosse tão ridículo como eu fiz questão que vos parecesse agora). Depois, e ao longo da tarde, vogávamos  pelas estradas, de carro, a ouvir o relato. Às vezes, visitávamos pessoas, doentes e saudáveis: gente que se repetia de domingo para domingo e gente de que eu nem sequer me lembrava, que cheirava de maneira diferente e que tinha filhos que cheiravam de maneira diferente também. Outras vezes vogávamos apenas, ouvindo o relato – e, pelos passeios, havia homens e mulheres de braço dado, prezados e solenes, quase namorando, celebração sobre todas as outras apropriada a um domingo.


Com sorte, conseguíamos autorização para manter a toilette durante o dia inteiro – e, em faltando a sorte, ainda nos restavam, por ordem, o desleixo, a dissimulação e a desobediência civil. Agora que penso nisso, talvez venha daí a minha aversão à praia. Raramente era dia de praia, o domingo. Domingo era dia de vestir uma camisa branca, de usar os melhores sapatos – e à praia, como se sabe, nunca ninguém foi calçado com os melhores sapatos. Era um tempo em que as pessoas gostavam de andar bonitas, esse em que havia domingos e em que, para andar bonito, não era preciso que se casasse alguém, que houvesse uma boda, que se tirassem fotografias. Bastava ser domingo e as pessoas estarem vivas e ninguém ter dúvidas de que no dia seguinte seria segunda-feira e dentro de alguns dias domingo outra vez.


E, agora que me sento aqui a escrever, nesta cozinha repleta de luz mas apesar disso exalando cansaço e tensão, exalando textos e telefonemas e e-mails, aqueles foguetes que continuam a explodir ao fundo e aquela banda filarmónica que a cada foguete retoma a sua melodia festiva, mesmo que desafinada, parecem-me um resto de civilização: o derradeiro resquício do que um dia houve de decência e de brio e de rectidão e de elegância, o último estertor de uma coisa antiga e tragicamente perdida. O domingo. Os domingos em que havia Bodo e tocava a banda, os domingos em que apenas se passeava a ouvir um relato de futebol, os domingos em que nem jogo havia mas nem por isso os homens e as mulheres e as crianças deixavam de calçar os seus melhores sapatos, que depois guardavam numa caixa, no fundo do guarda-fatos, à espera do domingo seguinte.


Perdemos os domingos. Perdemo-los quase todos. Para uns, virou um dia igual aos outros. Trabalha-se aos domingos como se trabalha noutro dia qualquer. Aliás: trabalha-se melhor aos domingos, rendibilizando os seus silêncios, louvando a sua falta de deadlines. Para outros, virou dia de ócio puro, dia de não fazer nada. Faz-se nada aos domingos como se faz nada aos sábados. Faz-se nada aos domingos como se faz nada nos outros dias todos também. Em todo o caso, valem zero, esses domingos. Para domingos desses, ninguém precisa de ir ao fundo do guarda-fatos buscar a caixa onde se guardam os sapatos de domingo.


Resgatar os domingos: eis tudo quanto nos resta. Tenho a certeza de que a senhora dona Troika compreende: nada disto vai a sítio algum enquanto as coisas não forem postas no seu devido lugar. Dai-me, pois, uma camisa branca e uns sapatos de ir à missa, que em nada mais eu consigo já descortinar a rectidão – e, se acharem que esse milagroso encontro é caso para chamar a filarmónica, pois não serei eu a opor-me. Faz favor de proceder ao foguetório.










CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 18 de Junho de 2011


(imagem: © www.timeofherlives.com









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Quinta-feira, 16 de Junho de 2011
publicado por JN em 16/6/11

Podem ser doutores e engenheiros, mas muitas vezes são escriturários, trolhas, mesmo engraxadores. Tive um tio-avô que tinha essa qualidade e que manteve essa qualidade mesmo depois de se reformar e de, efectivamente, passar a engraxar sapatos na Praça Velha. Já fiz dele personagem num conto, embora manipulando-lhe as idiossincrasias. O facto é que andava por ali com uma caixa de madeira na mão, dando-se ares de exagerada importância – e que, quando era chamado a uma engraxadela (diz-se “engraxadela?”), não andava, mas desfilava, até finalmente  agachar-se em frente ao cliente, estender um pano de camurça no chão, dispor sobre ele os seus utensílios, endireitar as costas e, então sim, começar o trabalho. Talvez não fosse bem assim. Talvez seja eu quem o recorda dessa maneira, à distância de mais de trinta anos, quase tantos quantos tenho de memória. Talvez David Machado de Sousa fosse mesmo apenas mais um daqueles pobres diabos de cuja simples existência os transeuntes se riam. Mas havia – juro que havia – homens de respeito que se punham sobre ele, com o pé esticado na direcção da sua escova, e em vez do habitual esgar de nojo, como se se preparassem para esmagar uma barata, metiam um ar quase urgente, de quem teme ficar sem o pé, o resto da manhã definitivamente consagrado à procura desesperada da aprovação daquele homem.


De forma que David Machado de Sousa tinha isso que às vezes têm os doutores e os engenheiros, mas outras vezes quem tem são os escriturários, os trolhas, mesmo os engraxadores como ele: a capacidade de cerrar o sobrolho e de imediato ganhar ascendente sobre o homem em frente. Já aqui falei dos méritos da snobeira. Os pobres efectivamente respeitam de outra forma aqueles que conseguem forjar-se snobes. Chamam-lhes “selectos”, os pobres – e de imediato se dispõem a ir com eles até ao fim do mundo, a elegê-los para a Junta e para a Assembleia da República, a descer com eles até às trincheiras. Coisa diferente é esta, porém. O que se desprende destes homens não é altivez. O que se desprende deles é terror. É poder. E eu, inevitavelmente, morro de inveja deles. Morro de inveja deles e, apesar de ter tantas contas a acertar com eles, após meia vida de risota (minha) e de reprovação (deles), dou por mim a assobiar para o lado sempre que tropeço numa fragilidade que possa comprometê-los. O facto é que cultivam quase sempre uma saudável ignorância, os homens que franzem o sobrolho. Para começar, julgam-se mesmo importantes, o que muitas vezes é mais do que suficiente para a morte ao artista. Mas eu duvido que um só deles tenha a prestação do carro em atraso. Sei que nem um só deles se abstém nas eleições. E nunca vi um só deles deixar ir de táxi para casa um familiar que aterre no aeroporto.


Não têm sentido de humor nenhum, esses homens que franzem o sobrolho. Todo o sistema sobre que erguem o equilíbrio das suas vidas é um equívoco delicado e instável, à espera apenas do primeiro sopro do vento. E, porém, a mentira anda demasiado menosprezada, nos dias em que vivemos. Talvez tenha chegado, enfim, o tempo de voltarmos a dar à mentira o seu devido valor. E talvez tenha chegado o tempo de relativizarmos o sentido de humor também. Há-de haver uma altura na nossa vida colectiva, tanto quanto na nossa vida pessoal, em que simplesmente já teremos rido o suficiente por uns tempos. E eu pergunto-me se o tempo não será este: o tempo de nos levarmos enfim a sério, ao contrário do que nos aconselham os cânones oficiais da inteligência e as práticas do cosmopolitismo moderninho. Afinal, andamos agora há décadas à gargalhada: que somos tontos, que o país que construímos é tonto, que a espécie que representamos é tonta e que mais tontos ainda seremos se não nos rirmos da nossa própria tontice, da tontice do país, da tontice da espécie. E o mais provável é que tenha agora chegado a hora de estendermos o nosso paninho de camurça no chão, dispormos sobre ele os utensílios, endireitarmos as costas, deitarmos mãos ao trabalho – e, ao primeiro que se puser com risinhos, cerrarmos o sobrolho, de forma a que se sinta pequenino, apavorado, urgente da nossa aprovação.


Contra mim falo.


Assim como assim, já não temos cá o Bloco de Esquerda. Alguém vai ter de zelar pela decência do ciclo que agora se inicia.










CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 11 de Junho de 2011


(imagem: © www.azeferino.web.simplesnet.pt)









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Sábado, 4 de Junho de 2011
publicado por JN em 4/6/11

Dizer que a fundação da SATA Air Açores foi uma prova da tenacidade açoriana do pós-Guerra é constatar uma evidência. Creditar à SATA Air Açores uma responsabilidade significativa no desenvolvimento da autonomia açoriana é pecar por defeito. À SATA Air Açores devem os açorianos, em parte, a identificação entre as ilhas. À SATA Air Açores devem os portugueses, em parte, a descoberta dessas ilhas. Mas à SATA Air Açores, ou à sua subsidiária SATA Internacional (ambas empresas públicas, parcialmente sustentadas pelo orçamento regional), devem os açorianos, os portugueses e quem quer que visite os Açores uma colecção expressiva de injustiças – mais expressiva ainda desde que, com o apoio da capital, uma pequena parcela da capacidade dos voos Lisboa-Açores-Lisboa passou a dispor de tarifas reduzidas.


Durante décadas, a SATA Internacional, que tinha, tivera ou teria rotas para a América, a Madeira ou as Canárias, exigiu um gateway para Lisboa. Os açorianos juntaram-se-lhe em coro, porque acreditavam que a concessão desse gateway à companhia regional – que poderia receber os passageiros numa ilha e depois distribuí-los pelas restantes – resultaria numa efectiva concorrência à TAP, levando à redução generalizada dos preços. Ingénua convicção: para ganhar a rota de Ponta Delgada, a SATA não hesitou em coligar-se com a TAP, passando a voar em code-share com ela para as (agora) quatro rotas Lisboa-Açores-Lisboa – e, entretanto, a joint-venture manteve desde o princípio todas as desvantagens de um cartel, sem alguma vez oferecer um só dos benefícios de um verdadeiro code-share.


Ou seja: não só o preço das passagens se manteve escandalosamente alto (grosso modo, entre € 190 e € 390 para um voo entre o continente e as ilhas, dez vezes mais do que aquilo que um português pode gastar para ir a Berlim ou a Dublin), como os direitos adquiridos por um passageiro na relação com uma das companhias se mantêm até hoje por reconhecer pela outra. Exemplo aleatório: um cliente regular da TAP, com cartão de passageiro frequente “Silver” e um saco e golfe entre as malas, tem direito, num voo “code-share (notem-se as aspas) operado pela TAP, a check-in prioritário, 35+5 kg de bagagem, 15 kg extra para o saco desportivo e duas publicações para leitura a bordo; pelo contrário, e se, apesar do “code-share”, a aeronave for SATA, espera sentadinho, tem direito a apenas 20+5 kg de bagagem, precisa de pedir para levar o saco de golfe (o que fica sujeito a aprovação) – e, se quiser ler, pois que leia a revista da companhia.


A situação é injusta há uma década. Paciência. Para um forasteiro, visitar as ilhas não tem preço. Para um local, sair de vez em quando da ilha menos preço ainda tem. Só que, já este ano, Carlos César fez contas ao mandato, decidiu-se por um último brilharete e garantiu que 10% dos lugares de cada avião fossem ocupados por tarifas de € 88, € 99 ou € 146. Pois a medida não tardou a explodir, também ela, na cara dos passageiros: não só conseguir esses bilhetes se verificou um suplício, como (sobretudo) a SATA – e isto mesmo tendo ganho fluxo e facturação com a mudança – passou a usar a “benesse” como argumento emocional. Resultado: se há 25 pessoas a voar a preços reduzidos, então nem uma das 250 que ocupam o avião pode, por exemplo, ultrapassar sequer em 0,5 kg o peso limite da sua bagagem. Por cada quilo, como é de lei, são sete euros – e ainda há dias eu vi um passageiro pagar 10,5 euros depois de lhe ter sido cobrado 1,5 kg de excesso, rigor que nem a TAP tem coragem de praticar.


Os Açores são uma das regiões economicamente mais deprimidas da Europa ocidental. Para muitos passageiros SATA/TAP, dez euros fazem mesmo a diferença – e cem podem ser o fim do mundo. E o que faz a SATA? Vampiriza o erário público, legitima a manutenção das tarifas altas, colecciona novas subvenções, aplica todas as coimas que pode aos passageiros (a bagagem é apenas um dos expedientes desta nova sanha taxatória) – e depois ainda se põe a voar para a Madeira ao preço da chuva. Ah, sim, esquecia-me: esta mesma SATA, sustentada pelo erário público açoriano, voa para o Funchal por € 68. Pois eu só vejo uma solução: o boicote colectivo. Por mim, tão depressa não torno a voar na SATA Internacional. A SATA Internacional, neste momento, é um insulto ao meu povo.









CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 28 de Maio de 2011


(imagem: © www.infraton.i.olhares.com)








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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Os Sítios Sem Resposta",
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"O Terceiro Servo"
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Bíblia do Golfe
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CRÓNICAS,
Porto Editora,
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"Crónica de Ouro
do Futebol Português",
OBRA COLECTIVA,
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"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
Esfera dos Livros,
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"José Mourinho, O Vencedor",
BIOGRAFIA,
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"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
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