Segunda-feira, 23 de Maio de 2011
publicado por JN em 23/5/11

ACTO UM. “É um avião, isto...” Há uma certa displicência no olhar dele, mas forçada: o que está por detrás dela é amor. Estamos à porta da tenda, a fumar. Lá de dentro, ecoa “a banda”: um teclista e um guitarrista, daqueles que tocam Dire Straits com três acordes só. Vimo-nos duas vezes na vida, penso, e o mais provável é que ele tenha antipatizado tanto comigo como eu me esforcei por ignorá-lo. Une-nos agora isto: ambos aborrecidos de morte, amaldiçoando os casamentos ao sábado e as suas longas festas. E, porém, ele esforça-se por estragar a aproximação. “É um avião, isto…”, diz, olhando para o seu próprio carro como o poeta se deslumbra com o imenso. Digo “Hum-hum”, apago o cigarro e volto para dentro, mergulhando nos três acordes de Walk Of Life, o noivo já sem casaco, a noiva fazendo pontaria com o bouquet à amiga mais encalhada, os moços das camisas pretas e gravatas amarelas permitindo-se, enfim, certas liberdades.


ACTO DOIS. “São uns selvagens. Estacionam em qualquer lado”, suspira, manobrando com dificuldade. É sexta-feira à noite e, como de costume, Lisboa tem o bulício de uma segunda-feira de manhã. No táxi está fresco, porém – e a música que ecoa das colunas é suave. Reconheço-lhe o sotaque do Ribatejo, e é por aí que pego. “É de onde?” E ele, despachando e logo recentrando: “De Santarém. Mas houvesse mais como eu e não era nada disto! Saio sempre de casa com tempo. Nunca estaciono mal. E olhe que, às vezes, perco ali uma hora, uma hora e meia…” Volto eu: “O meu pai cresceu em Torres Novas.” E ele: “… e não é por causa do trânsito. É por causa do carro mesmo. Um risquinho numa jante e fico logo doente! Tenho-o há doze anos e nunca bati, nem sequer toquezinhos a estacionar. Aqui há uns tempos…” Lentamente, as suas palavras vão-se diluindo, até se tornarem ininteligíveis. Acabo por desligar.


ACTO TRÊS. “Atão, estás contente com a carrinha?” pergunta o grandalhão. Acabámos de bater o tee shot do 11, um par 5 comprido, ao longo do qual se fazem os primeiros balanços do dia. Lá de cima, o sol derrete tudo o que pode: pescoços, garrafas de água, swings. Faltam-nos ainda oito buracos, mas o 11 é o tee mais elevado do campo, pelo que a hora é de descomprimir. “Epá, ganda máquina!”, responde o velho. “É um avião, não é?”, insiste o grande. A metáfora repete-se. E volta o velho: “Ui. É que basta um cheirinho. Um gajo carrega um nadinha no acelerador e pchiiiuuu!” “É a melhor série da Mercedes! Mesmo eles dizem.” “A tua também é uma 5, não?” “Sim, mas de 240 cavalos.” “O quê, não é uma 2200?!” “Claro. Mas com 240 cavalos. Agora, para aquilo que tu precisas, 214 é suficiente.” Eu estou lá à frente, com um wedge na mão, a sonhar com birdie depois de green em 3. E de repente dou por mim a pensar: “Quantos cavalos terá o meu carro? Cilindrada eu sei: 1600. Mas quantos cavalos eram?”


EPÍLOGO. É que não sei mesmo. Imagino que tenha uns cem, cento e vinte, o que quer dizer que basta ao meu amigo mais velho um cheirinho de acelerador e pchiiiuuu! – lá fico eu a comer o pó dele. Ainda bem que estou a jogar melhor do que ele neste sábado, porque duas derrotas no mesmo dia é mais do que o meu pobre ego pode aguentar. De resto, resta-me morrer de inveja de alguém capaz de manter uma conversa “sobre carros”. Sempre tive carro. Sempre achei graça a alguns carros em particular – e, em vários casos, acabei por comprá-los. E, no entanto, continuo a olhar para um par de pistons aos saltos e a julgar que se trata de magia. Vejo uma donzela em apuros, com os quatro piscas ligados na berma da estrada, e não tenho mais para oferecer-lhe do que o meu corpo. Todas as semanas sou multado: por mau estacionamento, por falta de inspecção, por falta de selo. A minha ideia de fim-de-semana infernal inclui uma ida à praia, uma fila de duas horas para cada lado, um sufoco para estacionar na poeira e, durante aquele bocadinho efectivamente sentado sobre a areia, a leitura completa do catálogo 2011 da BMW. Não percebo de carros, não adoro carros, não sei falar sobre carros. E, bem vistas as coisas, as multas são um preço bastante módico a pagar por esse privilégio.









CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 14 de Maio de 2011


(imagem: © www.zazzle.com)








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Sábado, 14 de Maio de 2011
publicado por JN em 14/5/11

Não vale a pena disfarçar: para um homem da minha provecta idade, uma rapariga como Kate Middleton, com a idade de Kate Middleton e a silhueta de Kate Middleton e a ligeira mas indisfarçável malícia que Kate Middleton esconde sob o olhar de princesa, pode bem ser mais do que suficiente para reatear a centelha da paixão, se ainda é reateável tal coisa, após estes anos todos (como é que se dizia na minha meninice, há tantas e tantas décadas?) a ver com os olhos e a comer com a testa. Bastará, para tal, estarem um dia reunidas duas ou três importantes condições: haver apenas cinco mulheres no mundo e as outras quatro estarem ocupadas, terem sido retirados do mercado os derradeiros exemplares em DVD de Uma Canção Para Bobby Long, com Scarlett Johansson aos vinte anos, e estar a chover de tal maneira que ambos os campos da Aroeira se encontrem impraticáveis.


Quanto ao resto, lamento muito, mas Kate Middleton é dona de uma beleza bastante banal, categoria amplamente menos excitante do que a das mulheres portadoras de uma fealdade especial – e ao seu príncipe não se poderá fazer melhor elogio do que sublinhar a injustiça de se encontrar precocemente careca e de ter levado com uma prancha na cara, parecida (a prancha, isto é) com aquela com que o Coyote levou quando perseguia o Papa-Léguas sobre um chão de tábua corrida ainda mal pregado ao solo. Donde (e só por isto já valeu a pena escrever este texto: pela oportunidade de começar um período com a palavra “donde”) dizer que se tratou do “casamento do século”, o número meio circense a que pudemos assistir aqui há uns dias pela TV, não passa provavelmente de um daqueles chavões jornalísticos a que nenhum de nós alguma vez escapou, tipo “pedrada no charco” ou “elefante em loja de cristais” (no pun intended).


Casamento do século era se pudessem subir novamente ao altar Ted Hughes e Sylvia Plath, pelas razões óbvias. Casamento do século era caso Sartre e Simone de Beauvoir voltassem à Terra para revogar o seu statement filosófico-conjugal, por razões mais óbvias ainda. Casamento do século era em tendo casado neste século os pais de Lionel Messi, por razões sobre todas as demais óbvias. Já isto foi apenas mais um casamento igualzinho a outro que vimos há trinta anos, à partida com a mesma utilidade festivaleira do outro que vimos há trinta anos, mas por azar com dois mocinhos sérios nos principais papéis, o que na melhor das hipóteses o tornará notável no momento da apresentação dos rebentos, ao longo da cerimónia de coroação e no dia em que Kate, com quase toda a certeza já bem velhota, for ao cemitério entregar o amo ao Deus de Henrique VIII, que isto é mesmo assim, elas comem menos gorduras e duram mais e não há nada que a gente possa fazer quanto a isso.


Sobre o comportamento dos súbditos ingleses, não tenho muito a dizer, a não ser que cada povo tem a tradição tauromáquica que merece. Já que Portugal tenha paralisado para assistir a tal coisa, incluindo directos de três estações e seis canais de televisão, manchetes nos jornais todos, comentários de figuras de Estado e astrólogos, fóruns na rádio e vox pop dispersos por todo o país, pois não me ocorre outra explicação senão um entendimento um tanto largo das teses de Lorenz – vocês sabem, o da Teoria do Caos, do Efeito Borboleta, etecetra e tal –, na inusitada presunção de que as endorfinas libertadas pelo acto de pensar perpetrado (é que é mesmo essa a palavra, perpetrado) por uma reformada de Vila Velha de Ródão seja suficiente para provocar um tufão na longa tradição dos casamentos reais britânicos e este para subverter a ordem das coisas e instalar o caos.


No mais, saúde-se a circunstância, e apesar dos percalços da História, de as gerações de cronistas sociais lusos continuarem a renovar-se adequadamente. Bem vistas as coisas, a cobertura que a TV portuguesa dedicou ao casamento de William e Kate, com Júlia Pinheiro e João Adelino Faria e Manuel Luís Goucha e tantos outros, todos eles como que sonhando-se no papel da princesa, foi tão pindérica como teria sido no passado, se não mesmo mais. Por mim, tomei a decisão certa e vi na Sky. A bimbalhice disfarça muito melhor quando é em inglês – e na Sky sempre são menores os riscos de apanhar o Cláudio Ramos vestido de noiva. Isso, sim, são riscos a que um homem não deve submeter-se de ânimo leve.









CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 14 de Maio de 2011


(imagem: © www.dailymail.co.uk)








Domingo, 8 de Maio de 2011
publicado por JN em 8/5/11

Em O Discurso do Rei, mais um daqueles filminhos insípidos cuja entronização o superavit de bretões em Hollywood conseguiu fazer passar pelos intervalos da chuva, há apesar de tudo um momento interessante. Recém-coroado, George VI está assistir a um excerto de um discurso de Hitler nas notícias do cinema, quando uma das filhas o questiona sobre o que estará a dizer aquele tipo encolerizado que atira perdigotos à câmara. E ele: “O que está a dizer, não sei, mas parece-me estar a dizê-lo bastante bem.”


Foi disso que, por bonomia, me lembrei logo na segunda-feira de manhã, quando, nos instantes iniciais de numa das primeiras conversas que tive sobre o abate de Osama Bin Laden, alguém se apressou a objectar ao meu triunfalismo: “Não nos esqueçamos de que era um grande líder, que inspirava as massas.” Desde a notícia da morte que eu vinha ouvindo, da parte dos habituais representantes da bem-aventurança, referências à ideia de que as represálias terroristas não tardariam, como se isto não fosse uma guerra e a antecipação dessas represálias devesse ter levado as tropas norte-americanas a pensar duas vezes antes da eliminação.


Mas nem nos momentos de maior boa vontade me passara sequer pela cabeça que a retórica e a capacidade de mobilização de Bin Laden pudessem, após quinze anos de persistentes atentados, com milhares de mortes acumuladas nos cinco continentes, ser elogiadas assim, sem qualquer ressalva posterior, como um dia poderia ter feito o rei de Inglaterra em relação a Hitler, se não se desse o caso de, nesse instante, estar, mais do que a invejar um estadista capaz (ao contrário dele) de dizer duas frases seguidas, a avaliar as armas de um inimigo e a recapitular interiormente o seu próprio arsenal, à procura de antídoto.


E, no entanto, não passava de uma brincadeirinha de crianças, esse primeiro elogio ao carisma de Bin Laden. Chegado a casa, e depois de um dia demasiado comprido para conseguir manter o passo com a actualidade, liguei a televisão para conferir o vox pop e era pior: Bin Laden já não era um assassino, mas um justiceiro, quase um santo. Pensei: “Estás com alucinações, Joel, experimenta mas é a rádio” – e, porém, na rádio era pior ainda, porque quem falavam eram jornalistas e figuras públicas e, se Bin Laden não era um santo, pelo menos Obama era um demónio, o que ia dar quase ao mesmo. Pensei: “Bom, ao menos nas redes sociais não há-de ser assim…” – e, no entanto, no FaceBook era tudo definitivamente terrível: Bin Laden um anjo com asinhas, Obama a encarnação de Belzebu e eu o filho de uma grandessíssima por ter celebrado a morte de um homem sem direito a julgamento nem nada.


Diziam-no cidadãos anónimos e diziam-no, mais uma vez, figuras públicas, provenientes da TV mais tonta e até da própria Assembleia da República – e no fim voltavam a dizê-lo os jornalistas, tanto os de tribuna solitária como aqueles que se reúnem diariamente em fóruns onde vomitam o seu ódio a toda a espécie de ordem, ao mesmo tempo em que se vão lamentando pela ignorância deste povo a quem trazem cultura e filosofia sem que, pobre diabo, ele sequer perceba a importância de assimilá-las. Aparentemente, morreram 3000 pessoas a 11 de Setembro de 2011 porque os EUA tiveram, enfim, o castigo que mereciam – e, se noutros países se perderam igualmente vidas, centenas de vidas, milhares de vidas, então o mais provável é que o tenham merecido também, se, como todos sabemos, tantos e tantos comem diária e impunemente da gamela americana, alimentada pela opressão dos povos árabes.


Acho graça a esta conversa da opressão, porque no período entre duas guerras também era exercida sobre a Alemanha uma certa forma de opressão e foi precisamente daí que nasceu Adölf Hitler. Infelizmente, acabámos por cercá-lo de tal maneira em Berlim, determinados que estávamos a evitar que tivesse um julgamento justo, que, encurralado, o pobre não encontrou outra alternativa serão pôr termo à vida. Foi pena não ter-se permitido chegar aos dias de hoje, para ver o que dele escreveriam os portugueses pensantes – e os jornalistas portugueses em particular – no FaceBook. Ficaria com o coração aconchegadinho, quase de certeza. Vergonha, é o que eu às vezes sinto. A gaiola das loucas – às vezes não passa disso, a minha classe.








CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 7 de Maio de 2011


(imagem: © www.buddyhell.wordpress.com)







Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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