Às vezes gostava de ter o contrato que o Bruno Nogueira tem com a TSF. Dava-me a preguiça, apetecia-me ir para a praia ou simplesmente não me saía nada de jeito e, pronto, aqui vai disto: punha uma canção pimba, abria com um pivô inicial a dizer qualquer coisa como: “Já aqui passei muita canção pimba, mas esta é a mais pimba de todas” – e ala para a Costa da Caparica. Infelizmente, nem isto é a rádio nem eu sou o Bruno Nogueira (coisa que, aliás, nos orgulhará a ambos em igual medida). Se há uma crónica para entregar, então há uma crónica para escrever. E, se há uma crónica para escrever, então o melhor é que escrevê-la custe o mais possível. Com esta cruz se debate todos os dias um tipo que nasceu protestante, tenha ou não alguma vez acreditado na Omnipotência: com a firme convicção – e mesmo que tudo em redor prove racionalmente o contrário – de que, se não dói, não presta.
Haja saúde.
Hoje não tenho crónica. Ando a correr há um mês por causa do lançamento do novo livro, advento por coincidência simultâneo com um pico de trabalho quase épico, e agora aqui estou, com uma dor de cabeça monumental, uma tosse que não se pode e uma vontade imensa de fechar os olhos, a contemplar esta página em branco como um equídeo contempla o tipo que quer montá-lo: contrariado como o diabo, mas ainda assim consciente de que deixar-se montar foi a única razão para a sobrevivência da sua raça. Na pastinha “Ideias” tenho, por esta altura, 192 ficheiros: crónicas inacabadas mas acabáveis, anotações já estruturadas em princípio, meio e fim, pistas para desenvolver mais ao estilo escrita automática. É muito raro, hoje em dia, escrever uma crónica que não tenha sido antes pensada e pelo menos vagamente discutida, em colóquio, solilóquio ou provocação ao vento. Mais raro do que isso só chegar ao final da tarde de domingo e não conseguir concretizar. Nem sobre os 192 assuntos em maturação, nem sobre outra coisa qualquer.
Desde as dez da manhã, esbocei pelo menos um parágrafo sobre as mulheres que fazem beicinho e os trolhas comprimidos nos furgões que vogam pelas auto-estradas à sexta-feira à tarde, os maridos de grávidas que até enjoos sentem e os homens que põem casacos pelos ombros, os óculos escuros, o Nuno Markl e a incapacidade de sacralizar. Às mulheres que fazem beicinho, atirei dois insultos e depois fiquei sem nada para dizer. Aos homens que engravidam tanto quanto a esposa, dei três pontapés na boca e depois tive pena. Dos trolhas, descobri que, em dias assim, também não tenho outra coisa senão pena, o que é fraco argumento para uma crónica completa – e, quanto aos homens que põem o casaco pelos ombros, pois talvez não passem de uma espécie de versão engravatada dos trolhas do furgão. Sobre os óculos escuros, que gostava um dia de declarar como a maior pinderiquice dos séculos XX e XXI, descobri-me afinal com apenas uma coisa para dizer: “Declaro que os óculos escuros são a maior pinderiquice dos séculos XX e XXI.” Do Nuno Markl, sei que queria falar mal, mas já nem lembro a propósito do quê – e, agora que penso nisso, não faço ideia nenhuma do que signifique “Incapacidade de Sacralizar”, ficheiro que suicidamente se limita às três palavras que traz no título.
De alguns dos grandes cronistas do passado se disse, em jeito de supremo elogio: “Era melhor ainda quando não tinha assunto.” É algo que eu adoraria ouvir um dia sobre mim próprio, mas apenas para sentir-me consagrado no cânone. Na verdade, não há qualquer hipótese de eu ser melhor não tendo assunto, até porque não há qualquer hipótese de eu não ter assunto. Há quinze anos que me venho munindo de assuntos e de argumentos sobre esses assuntos e de retórica para defender esses argumentos. Por outro lado, e se de repente houver o risco de me faltar o tema, é mais forte do que eu: em cinco minutos já tenho todo um debate sistematizado, independentemente do objecto desse debate e do lado da barricada onde me houver acantonado. E, porém, um dia haverá em que simplesmente não conseguirei escrever, mesmo tendo sobre o que escrever (e, aliás, o que escrever sobre isso). E o pior é que esse dia é hoje.
Olhem: estou a pensar colar-me ao Nelson Rodrigues e fazer de Nuno Markl o meu Dr. Alceu, para dele me ocupar nos dia de desinspiração. Alguém se opõe?
Mourinho conseguiu uma vitória enorme, Villas-Boas uma das grandes também. Foi uma semana em cheio para aqueles que um dia recordaremos como os dois maiores treinadores portugueses de sempre. Para nós, sportinguistas, é como se o fracasso continuasse a desfilar-nos à frente. Se desistir de Mourinho (obrigado, Juve Leo) marca o momento em que o Sporting decide deixar de ser grande, falhar a contratação de Villas-Boas (obrigado, Jorge Mendes) marca aquele em que o Sporting perde a oportunidade de voltar a tentar sê-lo.
E, no entanto, eu já não sei se Villas-Boas é de facto o segundo Mourinho, ou se Mourinho é que foi o primeiro Villas-Boas. Mourinho é um génio, mas Villas-Boas parece tocado pela graça divina. Mourinho joga um futebol de contenção, à procura da eficácia, Villas-Boas um futebol positivo, à procura da beleza (mas, ainda assim, eficaz). Onde Mourinho é agressivo e mesquinho, Villas-Boas é elegante e educado. Confrontados com uma pergunta difícil, Mourinho lança perdigotos e Villas-Boas articula ideias. É bem falante, Villas-Boas – ou estou errado?
Se Mourinho é Napoleão, Villas Boas é George Washington. Um é um cilindro compressor, o outro um Dona Elvira, belo e até um tanto dandy. Há entre Mourinho e Villas-Boas diferenças semelhantes às que separam a formiga da cigarra, com a ressalva de que, aqui, em ambos os casos o trabalho aparece feito (e bem feito). Parafraseando Arnaldo Jabor: Mourinho é sexo, Villas-Boas é poesia. Mourinho é o Special One? Então Villas-Boas não é o Special Two, não senhor: é o Really Special One. Ou talvez seja. O tempo não nos deixará na dúvida.
No fundo, o que parece é que Villas-Boas não tem de fazer um esforço tão grande. Ele dispõe da aura dos homens bem nascidos, muito mais do que do lastro das fortunas de oportunidade. É duro, mas ainda assim amável. É veemente, mas nunca truculento – e, aliás, nem sequer precisou de criar um estilo: uma gravata assenta-lhe bem. Ao pé de Villas-Boas, Mourinho parece Octávio Machado, rosnando. Demasiado datada, a analogia com Napoleão e Washington? Então cá vai: onde Mourinho é Putin, rabino e de dentes cerrados, Villas-Boas é Tony Blair, enorme e de sorriso aberto.
O FC Porto de Villas-Boas é mais forte do que o de Mourinho, e Villas-Boas tem extraído o melhor dele. O problema é que o Real Madrid de Mourinho é mais fraco do que o de Carlos Queiroz – e, ainda assim, parece uma equipa destinada a um lugar na história. Não me admiraria se Mourinho proferisse agora a frase: “Para o ano, tenho a certeza de que seremos campeões” – e depois efectivamente o fosse, apesar da Távola Redonda de Guardiola. Já Villas-Boas não dirá nada disso – e para o ano, de certeza, será campeão outra vez.
Para nós, na verdade, qualquer um servia e era um milagre. Tornámo-nos tão pequenos.
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo").
Jornal de Notícias, 22 de Abril de 2011
(imagem: © www.desporto.pt.msn.com)
Já se sabe: não gosto do Benfica. Tenho com o Benfica uma espécie de tensão freudiana, ainda por cima de resultado intercalar claramente em meu desfavor – e, para além de tudo, pago a renda com recurso bastas vezes a matérias do domínio da estética, o que não poderia nunca beneficiar a relação. Para mim, o Benfica é um clube feio, boçal e desinteressante. Representa uma maioria clara, o que do ponto de vista filosófico é um tédio, e ademais está cheio de adeptos desdentados, que bebem pelo garrafão e tratam a patroa por isso mesmo: por “patroa”. Todos os bullyers da minha escola, uns rufias mesquinhos que ainda hoje provavelmente só à chapada, eram do Benfica. Por outro lado, o meu pai, com quem tive a honra de partilhar algumas das mais poéticas derrotas da história do pontapé-na-bola, nunca quis nada com tal obscurantismo. Na verdade, só estas duas razões chegavam para que eu detestasse o Benfica. Ao velho doutor Segismundo, a quem não escapou quase nada, escapou ainda assim isto: o Complexo de Édipo pode ser o diabo, mas o Complexo de Mats Magnusson é bem pior.
E, no entanto, ainda no outro dia, ao cruzar-me com o resumo de um jogo entre o Benfica e o PSV Eindhoven, esse mesmo que, numa certa noite da Primavera de 1988, me deu a alegria de estragar o jantar ao Veloso, absolvendo-me metade da adolescência, dei por mim todo enternecido com os golos do Sálvio e do Saviola. Digo enternecido, mas não era bem isso: era emocionado mesmo. Em plena noite de insónia, vi o resumo do FC Porto, aqueles cinco disparos inapeláveis que praticamente mandavam o Spartak de Moscovo embora, e surpreendi-me feliz, apesar de tantas vezes torcer pelo FC Porto (em todos os jogos contra o Benfica, isto é). Depois vi o resumo do Benfica e continuei contentíssimo, ao arrepio de todo o desdém (que digo eu, de todo o ódio) exercitado durante metade da vida – e, quando finalmente assisti ao do Sp. Braga, o mesmo clube de que há uns anos eu disse não ter adeptos, conquistando uns amigos que ainda hoje não perdem uma oportunidade de prometer-me trabalhinhos de, digamos, ortodôncia espontânea, já nem era um resumo que eu via, mas um jogo em directo mesmo, todo eu pontapés na mobília e golpes de cabeça à Villas-Boas e gritaria a pedir a expulsão do Shevchenko, esse grandessíssimo, mas quem é que ele pensa que é.
E, quando enfim acabaram os resumos, eu não suspirava mais pelo sono: suspirava por uma banda filarmónica, uma bandeira verde-rubra drapejando à janela e a mesma malta com que vi o Euro 2004 e o Mundial de 2006 ali mesmo , ao meu lado, cantando comigo: “Às armas! Às armas!” Porque, de repente, essa coisa das “equipas portuguesas” defrontando “as equipas estrangeiras” insurgia-se como algo superlativo. Porque mesmo eu, tão pouco dado a patriotismos imediatos, me sentia de súbito urgente de brio nacional, tantos e tão duros são os insultos que nos vemos obrigados a dirigir-nos a nós próprios, nestes tempos de resgates e ralhetes. E porque em mais nada (e isto independentemente do desfecho da dita ronda da Liga Europa, concluída já depois de escrito este texto) somos tão bons como no futebol, com triunfos individuais e colectivos, com brilharetes clubísticos e nacionais não apenas desproporcionados quanto à nossa dimensão, mas suficientes mesmo para proporcionar-nos um lugar entre a elite global.
Vai acabar, isto. Dizemo-lo em jeito de ameaça, mas é verdade: as crianças portuguesas já não jogam futebol na rua, os nossos vagos candidatos a futebolistas já não têm qualquer intimidade com a bola, por vontade dos treinadores já não havia um só jogador lusitano a partir do escalão de iniciados, os seleccionadores nacionais das próximas gerações já não têm outro remédio senão ir buscar suplentes ao Fátima e ao Ribeirão para poder compor uma vaga lista de convocáveis – e, em quanto mais etapas desse processo avançamos, mais o rigor táctico se vai tornando essencial para disfarçar a ausência de capacidade técnica. Pois talvez esta crise seja mesmo uma oportunidade, como parece que insinua a tal letrinha chinesa. Dizia Jorge Valdano, campeão do mundo com uma Argentina levada ao colo por um pé-descalço de Villa Fiorito: “A pobreza nunca foi boa para nada. A não ser, talvez, para o futebol.” Quem sabe, então, se os miúdos não voltam agora a jogar futebol. Nem que seja apenas para me fazer a vontade. Mas alguém tem ideia do quão difícil é engendrar crónicas optimistas numa altura destas?