Se me pedissem para descrever racionalmente a Terra Chã, a personagem destas crónicas sobre que mais perguntas recebo, o mais provável é que eu próprio me decepcionasse com a descrição. Outrora um importante centro produtor de laranja, de que chegou a abastecer a Inglaterra vitoriana, a Terra Chã declinou a partir dos finais do século XIX, em resultado de uma das muitas pragas que assolaram os Açores (e a Terceira em particular): a mosca da fruta. Desde então, quase todos os solavancos da História contribuíram para reforçar o seu papel de subúrbio de Angra do Heroísmo, cidade que ali veio a instalar, após o violento sismo que em 1980 desalojou dezenas de milhar de pessoas, o seu maior (e, inevitavelmente, mais problemático) bairro social. Quem hoje visita a Terra Chã encanta-se com as quintas belíssimas, mas desencanta-se provavelmente com outras coisas: com a pobreza e com a atmosfera um tanto tristonha, com a falta de vistas para o mar, com a modesto brio das festas populares e com uma certa diluição da identidade – e depois ainda se chateia com o trânsito, que passa louco para cima e para baixo, na impunidade típica dos “caíns” (“caíns” de Caim, o instrumento a que Deus recorreu para matar Abel, de forma a que se cumprisse o seu plano), que é como, muito sintomaticamente, os terceirenses chamam aos seus “mitras”.
Mas essa seria apenas a descrição racional. Na verdade, tudo na Terra Chã se encontra, para mim, no domínio das emoções. Na Terra Chã cresci e fiz os meus primeiros amigos. Na Terra Chã aprendi a ler e perdi a virgindade. Na Terra Chã apanhei castanhas e levei as minhas primeiras galhetas (ou “bolachas, como se diz na Terceira). Na Terra Chã me despedi dos meus avós e nela, afortunadamente, ainda vivem os meus pais. Suponho que não haja – a não ser talvez nalguns recantos da Canada da Francesa ou da Canada do Ti Bento, apenas recentemente desenvolvidas como zonas residenciais – um só pedaço da Terra Chã onde eu não tenha sido feliz. Ainda hoje, quando volto à Terra Chã, faço questão de passar por todos e cada um dos meus santuários de infância: a mercearia da Mercês, o ringue da Casa do Povo e o relvão do Departamento de Ciências Agrárias; o portão verde para que chutávamos pontapés à meia volta, a Canada do Rolo onde fazíamos corridas de bicicleta e os pastos onde apascentei vacas com José Guilherme; o salão da Sociedade Filarmónica, o miradouro do Charcão e as Guerrilhas, baptizadas em honra do papel do morgado no processo liberal, cuja constituição Mouzinho da Silveira redigiu precisamente na Terceira.
De todas as grandes tiradas da história da Filosofia, pois, aquela que eu mais deploro, hoje em dia, é essa do “cidadão do mundo”, com que tanto gostamos de encher a boca até que, enfim, alguém nos reconheça globetrotters, portadores de cartão de crédito e representantes da nova burguesia do resort de quatro estrelas e da máquina fotográfica digital. Porque ser de todo o lado não pode significar outra coisa senão que não se é de lado nenhum. E porque não pode haver nada mais triste do que não ter uma terra. Dois mil e quinhentos anos depois, o mundo não é já o de Sócrates, feito de meia dúzia de cidades e dúzia e meia de aldeias piscatórias aninhadas ao sol do Mediterrâneo. Pelo contrário: dois mil e quinhentos anos depois de Sócrates, a mundividência é, antes de tudo o mais, a capacidade de cultivar raízes. De ser de algum lado, se possível até do lado de onde verdadeiramente se é. E, pelo menos enquanto um só velho da Terra Chã se lembrar de mim, eu serei da Terra Chã. Quando, enfim, tiverem todos morrido, e com eles a memória desses gloriosos tempos de bicicletas e bichos-da-seda, então talvez eu passe a ser do mundo inteiro. Mas, em todo o caso, tentarei evitá-lo.
É por isso que, com vossa licença, não há crónica para a semana. Estarei na Terra Chã, à varanda da velha casa dos avós, olhando os santuários da minha infância e esperando que, nalguma janela em volta, se mova uma cortina, agitada por um velho que se deu conta do meu regresso.
Há nisto da construção da personagem solavancos, reviravoltas, correcções de trajectória. Às vezes, e tanto quanto confunde os outros, uma pessoa confunde-se a si própria com a pele que foi vestindo. Aqui parece-lhe que se afunda de novo no lodaçal de convenções e ressentimentos transportados da adolescência – e então recupera o esforço por adestrar-se, munir-se, relativizar-se. Ali alarma-se porque perdeu o rasto ao rapaz que foi e ainda devia ser – e então parte em busca das suas perplexidades, das suas indignações, da sua força. Nada disso é muito importante: crescer em público não se fez nunca de outra maneira. No fim, restam as raríssimas questões filosóficas mesmo sérias. Uma, como insistia Camus, é o suicídio. E a outra, se existe mesmo mais alguma, é o amor ao chocolate preto.
Esteja em fase mais urbana ou mais rural, a existir sem fazer nada na Terra Chã ou a correr como uma barata tonta em Lisboa, com os nervos em franja ou tão tranquilo como se houvesse caído em pequenino num caldeirão de Xanax – há uma coisa que eu não perceberei nunca, e essa coisa é o amor ao chocolate preto. Quer dizer, perceber até percebo: percebo que não existe. Na verdade, todo aquele que diz gostar de chocolate preto mente. Isso já eu tenho bem resolvido. E, no entanto, permanece a pergunta: porque mente o suposto adorador de chocolate preto, dizendo adorar chocolate preto? O que tem, afinal, o chocolate preto, a não ser o azedume intrínseco, os embrulhos sombrios e o esgar de desconsolo que uma pessoa dá por si a fazer quando, sem mais por onde escapar, lhe afinfa um canino?
Eis o que me inquieta. Se querem que vos diga, e embora em dois parágrafos apenas eu tenha já esgotado a quota de laracha que a direcção desta revista me atribuíra para 2011, é bem possível que as pessoas possam mesmo dividir-se em dois grupos apenas: as que dizem gostar de chocolate preto e as que assumem, sem complexos, que o chocolate, para ser chocolate, é de leite, igualzinho ao da infância, igualzinho àqueles que provávamos em dias de tourada, igualzinho àquele que nos traziam tios emigrados em paragens distantes, igualzinho àqueles que comíamos quando éramos apenas felizes e não estávamos a seduzir ninguém e muito menos reduzíramos à aceitação numa espécie de irmandade do auto-domínio, da penitência e do mau gosto em geral tudo aquilo que um dia pretendêramos da vida.
Às vezes ouço falar de uma nova loja de chocolates, coisa de marca, vinda de Barcelona ou de Nova Iorque. Fico excitadíssimo, cedo arranjo uma desculpa para me infiltrar no shopping em causa, que preciso de ir comprar brocas para o berbequim ou que saiu um novo plasma da Sony ou até que estou ansiosíssimo para começar a ler a última tradução do Musil – e quando vou a ver, afinal, é tudo chocolate preto. E, se é aromatizado, é pior: é chocolate preto a saber a rosas, a pimenta da Jamaica, a endívias (juro: a endívias). Então, aproximo-me do pratinho de plástico com pequenos amuse-bouches para a prova e fico ali a olhar descorçoado, como uma criança a quem rebentaram o balão. Depois chega um tipo todo betinho, atrelado a uma namorada que já o arrastou pelas Zaras todas e agora ainda o arrastou para ali – e eu quase posso jurar que tanto me olha suplicante o rapaz, quando ela lhe enfia pela goela abaixo três bombons, como me olha suplicante ela própria, enquanto se dirige para a prateleira e cumpre o seu dever de mulher comprando duas barras de chocolate preto.
O meu lado rural e grunho vê uma barra de chocolate preto e logo dá por si urgente de chamar-lhe “uma tremenda paneleirice”. Depois vem o meu lado urbano e polido e fica ali a olhar para o lado grunho, decepcionado: “Paneleirice nenhuma. Andamos é todos obcecados com a ideia da profilaxia – e a origem dessa angústia é um mistério importante.” E, contudo, é tão mais simples do que isso. As pessoas que a si própria se persuadem a gostar de chocolate preto simplesmente não tiveram infância. E, em dias como estes, feitos de terramotos e de tsunamis e de acidentes nucleares e de moções de censura, isso não chega sequer a configurar uma tragédia. É só triste
O que não falta por aí, nesta altura, são políticos a tentar capitalizar a insatisfação da juventude. Grassa em vários partidos portugueses a convicção de que não fazem parte da chamada classe política, depositária de grande parte do ódio – e, se em algum momento as evidências o negam, há sempre os votos para argumentá-lo. Facto: o PCP ganha eleitoralmente com estas manifestações, o CDS ganha eleitoralmente com estas manifestações (embora menos) e o Bloco de Esquerda ganha eleitoralmente com estas manifestações (e ganha imenso). “Classe política”, em Portugal, são o PS e o PSD. Tudo o resto, já se sabe, é paisagem. A partir do momento em que uma cantiga dos Deolinda é mote suficiente para uma moção de censura (e uma moção de censura que tem como único resultado reforçar a posição de um Governo moribundo), então não se pode pedir que as coisas sejam mais honestas do que isto.
Adiante. Hoje quero centrar-me apenas nas ditas manifestações, na ausência de horizontes profissionais dos jovens, na precaridade laboral (eu sei que está mais na moda dizer “precariedade”, com “e”, mas eu não sou um latinista) e nos recibos verdes. Galvanizados pelo sucesso de Parva Que Eu Sou ou apenas pela deposição de Mubarak, dois grupos de recém-licenciados portugueses decidiram dizer basta. Os protestos têm razão de ser: se a minha geração já foi especialmente massacrada – e, aliás, ainda o é, tantos e tantos são os mil-euristas de 40 anos com licenciaturas e pós-graduações e até mestrados –, esta é-o mais ainda. Mas há, neste turbilhão de protestos avulsos e aproveitamentos políticos, de reclamações concertadas e novos aproveitamentos políticos, algumas confusões etimológicas que convém desfazer.
A segunda, e mais óbvia, tem a ver com esse equívoco segundo o qual uma pessoa que passou vinte anos a estudar tem mais direito ao trabalho (e mais direito a melhor trabalho) do que outra que passou metade desses vinte anos a partir pedra, a reparar bielas ou a servir abatanados. E a primeira, e mais importante, tem a ver com o uso abusivo e facilitista da palavra precaridade, que fica além de metade dos problemas em causa (e aquém de todos os restantes). Porque, se estamos a falar de falta de horizontes, então precaridade é palavra fraquinha: quem dera a quem não tem horizontes nenhuns ter ao menos um trabalho, mesmo que precário. E, se estamos a falar da ausência de vínculo laboral, então precaridade é palavra em demasia – e, já agora, encerra o maior de todos os perigos, que é o do imobilismo.
Entendamo-nos: a última coisa de que um jovem acabado de sair da faculdade precisa é de “segurança”. Há um tempo de semear e um tempo de colher. Aos 22, 25, 27, mesmo 30 anos, o trabalho não pode ser um meio: deve ser um fim em si próprio. Para ser um fim em si próprio, tem de ser perseguido. Tem de ser conquistado. Tem de ser saboreado (sim, tem de ser saboreado). E, para ser perseguido, conquistado e saboreado, não há nada pior do que exercer-se em meio dessa visão manga-de-alpaca do mundo, segundo a qual tudo o que é trabalho deve ser segurança, perenidade, regalias, sistema de saúde e diuturnidades.
Que “estes” recibos verdes são maus, ah, isso são. “Estes” recibos verdes têm impostos brutais. “Estes” recibos verdes colocam o ónus fiscal na parte mais frágil da equação. “Estes” recibos verdes abrem até a possibilidade de uma pessoa pagar mais de Segurança Social do que aquilo que ganha de honorários. Mas os recibos verdes nem sempre foram “estes” recibos verdes. E os recibos verdes, apesar de Sócrates, são, em termos absolutos, uma boa solução burocrática para a grande aventura que é o trabalho – e que, aliás, deve continuar a ser até que os compromissos e a degradação do corpo o obriguem a deixar de ser uma aventura (ou um fim em si próprio) para passar a ser um recurso de subsistência (ou um simples meio).
A situação desta geração dita "à rasca" é exasperante. Mas para dizê-lo já por aí andam, nos jornais e na rádio e na TV, centenas de mais-velhos. O que eu não ouço ninguém dizer aos jovens de hoje é que o trabalho pode ser a mais bela das aventuras. Pois di-lo aqui alguém que se aproxima dos 40, ainda passa recibos verdes e não quer que lhe chamem precário.