Sábado, 26 de Fevereiro de 2011
publicado por JN em 26/2/11

Já se sabe que as mulheres, na sua generalidade, conduzem muito mal. Mas as mulheres têm desculpa: são mulheres. Na verdade, não há nada menos sexy do que uma mulher conduzir tão bem que um tipo não possa sequer mandar-lhe um piropo ao ponto de embraiagem. Um homem conduzir tão mal como uma mulher é que simplesmente não tem justificação. E, porém, aí estão eles, atravancando a cidade – já não apenas durante a semana (e a todo instante, de dia e de noite, à hora de ponta e fora dela, com chuva persistente e sob o mais belo sol, como ainda há três anos chegámos a ter), mas agora aos fins-de-semana também.


Pois, por mim, é altura de dizer basta. Se está mesmo decidido que, em vez de irem comprar travesseiros a Sintra, os condutores da chamada Grande Lisboa vão passar a inundar todos os sábados à tarde a Baixa da cidade, onde aparentemente é muito mais divertido conduzir à chuva com o carro cheio de velhotes, então há que tomar medidas. E eu proponho, desde já, a oficialização de dois estatutos diferentes entre os automobilistas (peço desculpa pela terminologia, mas isto é a sério), sob a competente supervisão da Direcção-Geral de Viação: um com o nome de “Condutores de Primeira” e outro com o nome de “Condutores de Segunda”.


Um Condutor de Segunda, homem ou mulher, seria autorizado apenas a três trajectos diferentes: de casa até ao trabalho, de casa até ao colégio dos miúdos e de casa até centro comercial da sua área de residência. Se quisesse combinar mais do que um destes trajectos numa só viagem, era-lhe automaticamente permitido fazê-lo, a bem da poupança de energia e da protecção do ambiente. Em querendo ir, por exemplo, passear para a Baixa ao fim-de-semana, já teria de pedir autorização. Se a ideia fosse ir no domingo à terra buscar chouriços e água-pé, também, mas nesse caso sem termo para o regresso. Tanto quanto à DGV dissesse respeito, a repovoação da província seria incentivada.


Já um Condutor de Primeira poderia andar por todo o lado. Para manter esse estatuto de Condutor de Primeira, porém, teria deixar a carta de condução a salvo de pontos de penalização, igualmente atribuídos pela DGV. Deixar o carro ir abaixo num semáforo dava três pontos. Guiar a 30 km/h num local onde fosse permitido guiar a 50 km/h, cinco pontos. Entupir o acesso aos bairros históricos, na presunção de que, pedindo verdadeiramente com jeitinho, o grunho da EMEL acabaria por abrir a cancela, sete pontos. E parar de repente no meio da estrada ao sentir algum tipo de perigo (mesmo que fictício), como os camaleões param e se disfarçam e ficam ali muito quietinhos a ver se o predador não dá por ele, dez pontos. Com cinco pontos, um Condutor de Primeira perdia provisoriamente o estatuto, sendo forçado, ao fim de três meses, a novo teste de condução. Com dez, perdia-o de vez, confinando-se irremediavelmente aos três trajectos dos Condutores de Segunda: trabalho, colégio e shopping.


Ou então, pronto, as pessoas percebiam que conduzir um automóvel não é tarefa para todos. E percebiam, sobretudo, que a chamada “condução defensiva” não tem nada a ver com ir mais devagarinho, com pensar mais vezes no sítio para onde virar ou com conferir durante mais tempo se é seguro seguir em frente. Eu não gosto de carros e muito menos me excita a velocidade, o seu frenesi, o seu suposto “ganda estilo”. Mas sei que tudo o que importa no trânsito, como em tantas outras coisas, é o ritmo. Condução segura é aquela que se alimenta da razão, mas funciona no campo dos intuição. Condução segura é aquela em que se sente a estrada e se pressente a aproximação do cruzamento – e em que, por essa altura, já se pôs o pisca e se diminuiu a velocidade e se encostou à esquerda, mesmo sem se dar por isso. Condução segura é aquela em que se percebe que andar devagar de mais é pelo menos tão perigoso como andar depressa de mais – e que nunca, por nunca ser, parar é uma opção.


Mas é claro que, se tão poucos o perceberam em mais de cem anos de automóveis, não é pela conversa que vamos lá. Aqui fica, portanto, o meu projecto de reorganização do Estado. Já se têm fundado partidos políticos por bem menos. Em todo o caso, estão nesta crónica anos de vida – todos eles perdidos no desnecessariamente absurdo trânsito de Lisboa.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 26 de Fevereiro de 2011


(imagem: © www.wayodd.com)






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Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
publicado por JN em 19/2/11

Para Ana Celeste Mendes


 



Peço desde já desculpa por só agora trazer à colação o novo Partido Pelos Animais e Pela Natureza, doravante designado apenas (é ele que quer assim) por PAN. Sei muito bem que um camionista insensível como eu já devia ter produzido há muito a habitual peça de desprezo e ressentimento, apenas denunciadora, aliás, da sua própria labreguice. Em minha defesa, tenho apenas a argumentar a extensão da Declaração de Princípios do partido do doutor Paulo Borges, que, mesmo copiada para Word e paginada a um comedido corpo 12, sem tabulações e com entrelinha mínima, me consumiu onze páginas de impressão e me levou várias noites a ler.


Devo dizer que, para um partido que exige a equiparação dos animais aos homens, ambos com interesses “igualmente tidos em consideração” e nenhum tipo de “egocentrismo especista” envolvido, o PAN foi um bocadinho antropocêntrico. Como todos sabemos, há espécies animais, mesmo das sencientes, que não conseguem ler para além da terceira ou quarta página. Mas, pronto, na altura em que comecei a formar essa conclusão, já o doutor Borges me tinha ensinado aquela palavra, “sencientes”. Quem me ensina uma palavra nova merece um lugar no meu coração. De resto, eu não consigo ficar indiferente a um texto de onze páginas onde conste 16 vezes a palavra “ética”. É uma fraqueza que tenho.


Bem vistas as coisas, a fundação em Portugal de um Partido dos Animais não me surpreende. Há alguns anos que venho assistindo à criação, noutras paragens, de partidos esquisitos: o Partido dos Cães de Duas Caudas (na Hungria), o Partido dos Amantes da Cerveja (Rússia), o Partido Absolutamente Absurdo (Canadá), o Partido do Bill e do Ben (Nova Zelândia), o Partido dos Maluquinhos do Rock ‘n Roll (Reino Unido) ou mesmo o Partido do Amor (Itália). Simplesmente, pensei que o nosso partido cómico já tinha sido criado aqui há uns anos e era o Bloco de Esquerda. Sendo assim, o PAN não é apenas mais uma tontice de dois ou três missionários da bem-aventurança à procura de reconhecimento: inscreve-se numa verdadeira tradição. Absolutamente absurdo, o PAN também se dirige aos cães de duas caudas, não quer deixar de fora nem o Bill, nem o Ben, nem os maluquinhos do rock ‘n roll, é seguramente motivado pelo amor e o seu manifesto foi escrito, quase de certeza, depois de ingerida uma boa quantidade de cerveja.


Apesar de declarar que quer “transformar a mentalidade e a sociedade portuguesas e contribuir para a transformação do mundo”, o manifesto do PAN acaba, porém, por ser uma decepção, revelando-se demasiado comedido (até pouco ambicioso) nas suas propostas concretas. Quer dizer: o PAN pede que os restaurantes passem a oferecer pelo menos um prato vegetariano por dia, mas depois não exige que os restaurantes enfiem esse prato pela goela dos clientes abaixo; quer que o shiatsu e o yoga entrem para o Serviço Nacional de Saúde, mas não faz a mesma exigência, por exemplo, quanto ao tarot, por onde também vagueiam criaturas sencientes (a D. Maya, por exemplo); exige que as pessoas com bichos de estimação possam candidatar-se a apoios estatais, mas já não prevê qualquer subvenção para o animal ele próprio, caso este queira um dia, por exemplo, candidatar-se à faculdade; pede o reconhecimento na Constituição do direito dos bichos à felicidade, mas não impõe como obrigatória essa felicidade, nem aos bichos nem a ninguém.


Acho pouco. Na verdade, o único aspecto em que concordo totalmente com o PAN é quanto à divisão de 0,5% das receitas do IRS entre todos os que se dediquem à defesa dos animais, incluindo o próprio PAN. Depois de José Manuel Coelho ter saído das Presidenciais de mãos a abanar, apesar dos quase 189 mil votos com que envergonhou Alberto João Jardim (isto se ele tivesse vergonha), é preciso garantir que o PAN não sai desta também sem um chavo. O serviço cívico é muito bonito, mas sem aquilo com que se compram os melões nada feito. Para quem tenha dinheiro a mais, portanto, basta ir ao site do PAN, onde se publica o NIB do partido. Consta que já tem mais visitas do que alguns blogs. Mas talvez seja pela impacto dos apoiantes assim mais VIP, nomeadamente o Dalai Lama, a Ágata e a Marluce. É chegada a hora, aliás, de o país reconhecer Marluce. Porque não votando no PAN?







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 19 de Fevereiro de 2011


(imagem: © www.esteiradeletras.blogspot.com)






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Sábado, 12 de Fevereiro de 2011
publicado por JN em 12/2/11

Se me perguntassem na infância o que gostaria eu de ser na vida adulta, o mais provável seria responder: “Desportista profissional.” Se me perguntarem na vida adulta o que gostaria eu de ser na vida mesmo, mesmo adulta, o mais provável será responder, ainda hoje: “Desportista profissional.” Independentemente do grau de realização que possa obter por publicar livros, escrever nos jornais e mandar bocas em geral, não vejo nada a que gostasse mais de ter dedicado os meus melhores anos do que a fazer birdies no PGA Tour a ou defender penáltis na Liga dos Campeões, sendo, ainda por cima, pago para isso.


Agora, ilusões sobre o desporto dar saúde, nunca tive. O que dá saúde é fazer exercício. Dar uma corridinha, fazer um bom passeio de bicicleta, jogar 18 buracos a bom ritmo, nadar todos os dias durante 30 minutos, com mais ou menos bonomia, pela fresquinha. O desporto, em si, não dá saúde a ninguém. Pelo contrário, e mesmo sendo eventualmente uma fonte de dinheiro, não deixa nunca de ser uma fonte de problemas. Peço desculpa àqueles que insistem em fazer do rebento o novo Cristiano Ronaldo: ao longo de uma carreira, ou mesmo apenas de alguns anos, um desportista profissional submete-se a cargas físicas e emocionais de tais dimensões que dificilmente conseguirá sobreviver-lhes como mais do que um farrapo.


Uns morrem ainda jovens, com overdoses ou ataques cardíacos resultantes do consumo de doping a que, quisessem-no ou não, não escaparam. Outros penduram as chuteiras (ou os tacos ou as raquetes ou os capacetes) e ficam para ali, a olhar para o vazio em frente à televisão, engordando até que lhes sobrevenha o mesmo ataque cardíaco a que escaparam aos 30, quando ainda se dopavam. E outros ainda chegam a velhos e comparecem a homenagens e aceitam os abraços todos e depois voltam para casa destruídos de bêbedos porque, afinal, já não descortinam em si próprios o homem que aquela gente amou – e que, bem vistas as coisas, talvez não tenha existido nunca.


Clichés apenas, o que descrevo? Talvez. Sou amigo de vários desportistas profissionais: nenhum deles se dopa – e todos eles estarão aí para uma nova e fervilhante vida após a reforma desportiva. De todo o lado, aliás, nos vão chegando mais exemplos disso: futebolistas que viram políticos, tenistas que viram escritores, basquetebolistas que viram filantropos, basebolistas que viram desportistas profissionais de outras modalidades ainda, passíveis estas de serem praticadas até mais tarde. E, porém, é o dito cliché que me ocorre quando me cruzo com a história de Vanessa Fernandes, uma das mais fulgurantes atletas da história do triatlo, modalidade ainda por cima tecnicamente heterogénea e, do ponto de vista do endurance, do mais exigente que há.


No meio do coro de lamentações, desabafos e confidências, retenho uma frase do seu pai (e desde sempre “relações públicas”), Venceslau Fernandes: “Ela é uma rapariga muito forte. Não chora.” Pois por aí andará, eventualmente, o busílis. Vanessa Fernandes é, de facto, uma rapariga muito forte, caso contrário não teria conseguido suplantar as mais fortes do mundo em corridas que começavam com 1,5 km de natação, passavam por 40 km de ciclismo e terminavam com 10 km de atletismo. Mas até os mais fortes precisam de uma válvula de escape. Ao fim de uma série de anos a exigir o máximo de si próprio, a acrescentar-se as mais poderosas expectativas de terceiros e – o que é o pior de tudo – a aprender a lidar com a impossibilidade da perfeição, um desportista profissional tem o direito, no mínimo, a chorar. Vanessa não chorou. Mike Tyson não chorou. Kobe Bryant não chorou. Tiger Woods não chorou. Eric Cantona não chorou. E, cada um à sua maneira, todos eles adoeceram.


Eis mais uma razão por que é um desperdício tão grande não ter-me tornado desportista profissional: posto um mínimo de condições, eu choro como uma Madalena. É uma lástima, na verdade, uma tão fulgurante carreira como aquela que eu poderia ter tido acabar às mãos de um pormenor tão insignificante como a falta de talento.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 12 de Fevereiro de 2011


(imagem: © www.enciclopedia.com.pt)






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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Os Sítios Sem Resposta",
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"O Citroën Que Escrevia
Novelas Mexicanas",
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"O Terceiro Servo"
ROMANCE,
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2002
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Bíblia do Golfe
DIVULGAÇÃO,
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"Banda Sonora Para
Um Regresso a Casa
CRÓNICAS,
Porto Editora,
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"Crónica de Ouro
do Futebol Português",
OBRA COLECTIVA,
Círculo de Leitores,
2008
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"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
Esfera dos Livros,
2007
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"José Mourinho, O Vencedor",
BIOGRAFIA,
Publicações Dom Quixote,
2004
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"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
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