Sábado, 16 de Outubro de 2010
publicado por JN em 16/10/10



Derivado à minha vil condição de morador do centro de Lisboa (porque é que haveria de ser só Lobo Antunes a poder usar a expressão “derivado a”?), sou forçado a apanhar táxis para não perder o milagroso lugar de estacionamento – e, então, o troco é um problema. Em virtude da minha igualmente deplorável situação de fumador (agora encaixe lá esta, António, preparo-me para usar a palavra “destrocar”, duas ultra-oralidades no mesmo texto, isto nem vossa mercê), sou obrigado a ir destrocar notas para comprar cigarros nas máquinas de vending – e, então, as moedas são um problema maior ainda.


É uma trapalhada que tenho dificuldade em perceber: que um comerciante possa, em qualquer momento, ir buscar moedas ao banco mais próximo, mas depois nunca tenha troco para nada. Tanto quanto me parece, é preguiça. E, no entanto, eu ainda percebo a preguiça: vida de comerciante é difícil – e, quando um homem se imagina na fila, atrás de uma daquelas almas que lá vão fazer vinte e sete operações e, no fim, ainda têm quarenta e nove perguntas sobre o plano de aplicações ideal para os quatro mil euros que juntaram, a simples ideia de ir ao banco deve ser aterradora.


O que eu não percebo é que tantos e tantos pequenos negócios deixem de fazer-se apenas por causa dessa preguiça, sobretudo num cenário de abrandamento do consumo. E menos ainda percebo que esta praxis de não ter trocos, precisar de interromper o serviço para ir ao quiosque buscar moedas ou – pior ainda – mandar o cliente passear, que era o que faltava vir agora ele para aqui com uma nota de vinte, tenha conseguido instituir-se com tanta facilidade, vigorando não só durante os tempos do euro como (pasme-se) desde os tempos do escudo.


A maior parte das minhas corridas de táxi andam pelos três euros e meio. Pois nunca escapo àquele esgar, com cara de passarinho obstipado, assim que puxo de uma nota de cinco: “Não tem mais pequeno?” No café, a minha conta é certinha: seis euros e vinte. Pois nunca deixo de ouvir duas frases, assim que estico uma de dez: “Não tem vinte cêntimos?” e “Epa, que diabo, você leva-me as moedas todas, meu Deus…” Se preciso de trocar dinheiro para comprar tabaco (sim, eu sei que já devia ter deixado de fumar, mas adiante), preocupo-me sempre em que se trate de cinco euros apenas. Pois nunca deixo de ter por resposta o velho e seco: “Não tenho.”


No fim, nunca registo mais do que três coisas. A primeira é que, postas perante o mais desesperado dos desesperos, as pessoas são capazes até de convocar Deus e o diabo numa mesma frase. A segunda é que nunca um português perderá a oportunidade de dizer que não ao próximo, principalmente se esse “não” puder vir alcandorado de uma certa liçãozinha (nem que seja apenas a de sugerir: “Aprende mas é a andar com moedas no bolso, que não és melhor do que os outros.”). E a terceira é que nem assim nós, consumidores, damos um murro na mesa perante tão absurdos hábitos, que em qualquer outro país ocidental, e em meia dúzia de dias apenas, condenariam os negócios em causa ao fracasso.


Ou, pelo menos, vocês, consumidores, não dão murro na mesa nenhum, caso contrário os ditos passarinhos obstipados não reagiriam como reagem quando eu lhes digo o que verdadeiramente penso do facto de não terem troco, de me dificultarem desnecessariamente a vida e de não haverem nunca aprendido a mais básica regra segundo a qual o cliente tem sempre razão (sobretudo quando a tem). Um arrogante, é o que eu sou. Um arrogante por não contentar-me com a resposta “Não tenho”, quando bastava encaixar na rotina diária um desvio ao banco para efectivamente ter – eis a ironia.


Um extra-terrestre que aterrasse em Portugal, pedisse uma cerveja e tivesse apenas uma nota no bolso ainda haveria de pensar que este é um país rico, em que toda a gente paga cervejas com notas de vinte, de cinquenta e de cem – e que, portanto, não há forma de os comerciantes conseguirem conservar moedas para providenciar-lhes troco. Mas é apenas mais uma das idiossincrasias da nossa economia. Tenho a certeza de que qualquer extra-terrestre a compreenderia. Seguramente compreendê-la-ia melhor do que uma pessoa.


* Esta coluna interrompe-se nas próximas duas semanas, para férias, regressando a 6 de Novembro




CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 9 de Outubro de 2010


(imagem: © www.dn.pt)



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publicado por JN em 16/10/10

Há uma velha máxima que resume como nenhuma outra a evolução de um golfista. (Espero não tê-la citado já aqui.) Um mau jogador é ao mesmo tempo inconsciente e incompetente: não sabe como se faz nem consegue fazê-lo. Um jogador mediano é consciente, mas incompetente: sabe como se faz, mas não consegue fazê-lo. Já um bom jogador é, paradoxalmente, competente e inconsciente: fá-lo bem mas, no momento em que o faz, a última coisa em que pensa é em como está a fazê-lo.

Basicamente, a consciência e a competência nunca se cruzam. Em não havendo consciência, nenhum homem alguma vez aprenderá a jogar golfe. Mas, em não sendo capaz de libertar-se dessa consciência no momento certo, ninguém alguma vez conseguirá efectivamente jogá-lo. E um dos maiores desafios que se colocam a um jogador profissional é precisamente o de voltar a pôr-se a salvo da dita consciência depois de ela ter tornado a possuí-lo (não, o verbo não é inocente).

Foi isso, até certo ponto, que Filipe Lima explicou na conferência de imprensa de ontem. Depois de vários meses preocupado com o swing perfeito, o jogador português passou outros tantos a tentar deixar de pensar nele. O resultado é o que aí está: -10 ao fim de 36 buracos, terceira posição ex-aequo à partida para as duas rondas do fim-de-semana – e, no horizonte (é mais do que legítimo sonhá-lo), a maior vitória de toda a sua carreira.

Dizia Dave Hill, guitarrista dos Slade e ávido golfista amador: “O swing de golfe é como o sexo. Não podes estar a pensar na mecânica da coisa enquanto a praticas.” Foi isso que Filipe Lima reencontrou: o prazer quase erótico (quase, não: o prazer erótico) do swing. O problema é que, no golfe, até isso é uma aprendizagem. Haverá alguma coisa mais contra-natura do que este jogo?

CRÓNICA (Especial Portugal Masters)

O Jogo, 14 de Outubro de 2010

(imagem: © www.desporto.publico.pt)

Sexta-feira, 15 de Outubro de 2010
publicado por JN em 15/10/10

Numa coisa estou de acordo com José Eduardo Bettencourt: não vale a pena os sportinguistas tentarem dar-lhe lições sobre como lidar seja com quem (ou com o que) for, até porque não há lição que ele adopte. Quanto ao resto, devo dizer que não me revejo na sua estranha frase “Temos de acabar com a cultura de nos comermos uns aos outros”. Nem naquela outra de Bessone Bastos, igualmente proferida ao longo da assembleia geral de quarta-feira: “O Sporting é um clube democrático.” Nem, aliás, naquela outra ainda da nossa consócia nº 6, Maria de Lourdes Borges de Castro: “Em 87 anos de sócia, nunca tinha visto gente tão mal-educada. Assusta-me o estado em que está a nossa juventude.”

Também a mim me assusta o estado em que está a nossa juventude. De outra coisa não tenho falado, por exemplo, nas minhas crónicas na revista NS’, que aos sábados acompanha este jornal. “Nunca” ter visto “gente tão mal-educada” já é diferente: é não ter estado minimamente atento ao que há uma série de anos se passa nos estádios e nos centros de estágio, nos debates de televisão e à porta das salas onde acontecem reuniões das direcções do Sporting, do Benfica, do FC Porto, do Belenenses, da Académica e de qualquer outro clube português com suficientes ambições para ter claques, facções e disputas seja de que natureza for.

Agora, uma coisa é a malta andar à porrada por nada. Outra é, numa AG do Sporting do século XXI, haver sopapo. E, quanto a isso, só tenho três observações a fazer. A primeira é que umas bofetadas entre os sportinguistas até podem, bem vistas as coisas, vir a verificar-se profilácticas. A segunda é que, tendo em conta a situação, era de esperar que isto já tivesse acontecido há mais tempo. E a terceira é que, perante tão clara ausência  de outra saída, mais vale não afastar em definitivamente a possibilidade de, mais dia, menos dia, tornarmos a usar o recurso. Contra mim falo: há anos que ando a alertar, debalde, para o verdadeiro desastre que vem desabando sobre o clube – por escrito é que não se resolve nada, de certeza absoluta.

Sabem qual é o verdadeiro problema disto tudo? É que, apesar da comoção de anteontem, aquilo que Costinha registou foi o elogio de Vítor Espadinha, mais ou menos irónico (mas, para o director desportivo, honesto e justíssimo): “[Costinha] Parece um modelo da Fátima Lopes.” Quanto a Bettencourt, já se sabe: nem isso registou. Basicamente, e como de costume, o nosso presidente não registou nada. Este clube é uma depressão com pernas.

CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo").

Jornal de Notícias, 15 de Outubro de 2010

(imagem: © www.4.bp.blogspot.com)

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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