Olhamos para o exemplo da televisão e facilmente o percebemos: talvez tivesse havido uma oportunidade para nós também. Colocada perante um dilema de origem semelhante, a TV soube reconverter-se. Percebeu que só a sua dimensão lúdica poderia salvá-la – e, a certa altura, investiu de tal maneira nessa dimensão, monitorizando com tal cuidado as respostas do público, que foi a própria world wide web (para que é que eu estou com coisas: a Internet) quem se sentiu na obrigação de vir ao seu encontro, presenteando-a com as mais mirabolantes propostas para potenciar o crescimento.
Com os jornais, nada disso aconteceu. É claro que eles tinham, desde o início, a marcha dos tempos em seu desfavor: ver TV é mais fácil do que ler um jornal – e aquilo que o homem do século XXI procura, aparentemente, é a facilidade. A verdade, porém, é que não souberam antecipar-se. Apostaram todos em sites, mas nenhum deles com uma decente articulação entre suportes. Nem as melhores soluções entretanto testadas evitaram a marginalização. Hoje, toda a gente o sabe já: os jornais impressos são um modelo de negócio datado – e as propostas que a senhora dona Internet lhes apresenta já nem são para potenciar-lhes o êxito, mas para proporcionar-lhes a sobrevivência, o que diz bem da sua subalternidade.
Problema suplementar: ninguém percebeu ainda como será possível recuperar os leitores para o mundo virtual continuando, mesmo assim, a pagar a renda. Ao longo de 15 anos, tentámos de tudo: sites grátis e sites a pagar, newsletters e widgets, aplicações especiais e de novo sites grátis. Nada. Nas soluções gratuitas, falhou a publicidade. Nas soluções oneradas, falharam os assinantes. Fracassou tudo, basicamente – e, se agora nos enchemos de esperanças no iPad e no Kindle, é mais por não nos podermos dar ao luxo de não nos enchermos delas do que por qualquer outra coisa. O mais provável é que usar a expressão “futuro dos jornais” seja já um paradoxo.
O perfil do leitor mudou – e todos nós, leitores, contribuímos para isso. Hoje em dia, já nem sequer há leitores. Eu não sou um leitor: sou, quando muito, um respigador. Às vezes estou a comentar uma notícia com um amigo, e logo ele me pergunta: “Onde leste isso?” Raramente sei responder. Tenho o computador e o telemóvel e a televisão ligados em permanência, com o Google Reader a sufocar-me de headlines e o FaceBook a fuzilar-me de fait-divers e os canais noticiosos a cercarem-me de breaking news – simplesmente já não sei, a não ser que tenha um jornal na mão, de onde vem e para onde vai cada coisa.
Porque mesmo eu, que há uma mão-cheia de anos vivo da medição das importâncias, do estabelecimento de prioridades e da pesagem de prós e de contras, continuo a precisar de alguém que me garanta uma equação hermética de mundo – e, na inexistência dela, já vou, atarantado perante os links dos links dos links, perdendo curiosidade. Eis, pois, a suprema tragédia disto tudo: a morte da curiosidade. Quanto ao resto, não me preocupo: sei assentar um tijolo, sei conduzir um táxi, sei disparar uma caçadeira – e, aliás, tenho aqui, do outro lado da janela desta casa açoriana de onde às vezes vos escrevo, um cerradinho há demasiados anos em pousio, ansioso por que eu lhe crave o alvião e o encha de batatas greladas. À fome não morrerei. Talvez morra estúpido. E morrerei de certeza bisonho.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 25 de Setembro de 2010
A estatística que a mim me importa é só uma (e, aliás, vem na mais básica das classificações): o Sporting tem sete pontos em 15 possíveis. Depois, há umas quantas estatísticas menores que, não me importando por aí além, me preocupam (e que também vêm nas classificações, embora já não nas mais básicas). Uma diz que o Sporting tem apenas duas vitórias. A outra que o Sporting tem só quatro golos.
É claro que estes números escondem a prestação na Liga Europa, de onde temos recebido boas surpresas. Mas eu próprio sempre o disse: o que me interessa é o campeonato. Dessem-me uma vitória na Liga dos Campeões, e pronto: ficava contentinho. Dessem-me um lugar de finalista na Liga dos Campeões e as vitórias na Taça de Portugal, na Taça da Liga, na Supertaça Cândido de Oliveira, no Torneio do Guadiana e no Quadrangular de Sobral de Monte Agraço – dessem-me tudo isso junto e eu trocava-o de imediato por um campeonato.
Este ano o Sporting não vai ganhar o campeonato – e isso é uma tragédia. Por outro lado, já estávamos mais do que preparados para isso, o que, tendo o seu mistério, não deixa de ser uma vaga consolação. De forma que, ao arrepio de todos os princípios, me concentro agora nos valores. E, aliás, num em particular: o da descoberta de um caminho “em direcção” às vitórias no campeonato. Pois é nesse sentido que as estatísticas lá de cima deixam de ser incríveis (e que, mais do que incrível, passa a ser abençoado o trabalho daqueles que se dão ao tresloucado trabalho de as reunir).
Afinal, o Sporting tem um bom meio-campo. Ora, nós já sabíamos que tinha uma defesa razoável também. Falta-nos o quê, pois? O ataque. Nenhuma novidade: Paulo Sérgio já nos havia avisado para isso. Mas, de novo, não deixa de ser difícil de perceber três coisas. A primeira é que o treinador não tenha insistido no tal “pinheiro”. A segunda é que Costinha e Bettencourt se tenham achado no direito de desvalorizar o pedido. E a terceira é que não tenham jogado contra o Benfica mais daqueles jogadores que tão bem jogaram em Lille.
Vou repeti-lo: Paulo Bento fracassou no Sporting porque não bateu o pé aos dirigentes e, depois, ainda foi casmurro na relação com o plantel, gestão do onze incluída. É isso que Paulo Sérgio quer para a sua vida?
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 24 de Setembro de 2010
Não sei se é da meia idade, se apenas da melancolia: o facto é que hei-de para sempre recordar o ano de 2010 como aquele em que vi mais mulheres bonitas dispersas por Lisboa. Altas e baixas, magras e até gordinhas, portuguesas e estrangeiras, sofisticadas e até sopeirinhas: cruzei-me com mulheres bonitas de todos os géneros, de todas as idades e a todas as horas do dia – e em quase todas elas pude desfrutar de um determinado grau de nudez, quase sempre maior do que eu gostaria um dia de ver em filha minha, mas em todo o caso um tanto consoladora para alguém que, tendo vivido a pós-adolescência há pouco mais de uma década, ainda a viveu num tempo em que uma mini-saia era notícia.
Basicamente, foi um Verão divertido. A não ser naqueles dias em que me apareceu pela frente uma grávida semi-nua, exibindo obscenamente a enorme barriga por debaixo de um minúsculo top que ainda há meia dúzia de anos consideraríamos menos do que um sutiã. A sério: para além de mulheres bonitas, vi este ano mulheres bonitas fazendo quase tudo aquilo que me repugna numa mulher: urinando entre os automóveis estacionados sem sequer pedirem a uma amiga que as protegesse dos mirones, vomitando as bebedeiras debruçadas sobre bancos de jardim sem sequer fazerem de conta que a rúcula lhes tinha caído mal, dizendo palavrões aos gritos sem sequer se esforçarem por provar-se portadoras do Síndrome de Tourette. Tudo isso fui capaz de relevar. Pelo meio, uma grávida semi-nua fez-me sempre perder as estribeiras.
Cometei-o numa espécie de roda de amigos – e fui acusado de tudo: de machismo e de reaccionarismo, de insegurança e até de inveja (verdade: de inveja). Que nada daquilo é erótico, que a gravidez é apenas um estado de graça, que um biquíni na Costa da Caparica e um top de grávida no Chiado são uma e a mesma coisa, que no fundo sou parvo e pouco mais do que isso. E, no entanto, não sou parvo o suficiente para não perceber o que está em causa. Há duas coisas que uma “mulher do século XXI” faz questão de deixar bem claras: que pode fazer tudo o que lhe apetecer; e que ser mulher é muito mais do que ser homem. Não discuto nem uma nem outra. Mas não deixo de registar que uma barriga de grávida passeando nua pela cidade, como aliás uma mama amamentando nua no metro, afirma as duas ao mesmo tempo.
No mais, peço apenas o mínimo. Acredito no decoro, mas já nem decoro peço. Acredito no pudor, mas até isso já aceito como apenas mais um sinal de que sou, em definitivo, um caso perdido. Só peço, pois, para não ser assaltado pela intimidade de outrem. Dir-me-ão: mas uma barriga de grávida é a coisa mais natural do mundo. Pois também uma vagina. Até para uma vagina, porém, eu começo a estar preparado – afinal, eu vejo-as urinar entre os automóveis (mesmo grávidas, acreditem, mesmo grávidas). Quanto aos seus bebés, pelas almas: protejam a intimidade deles. Protejam a sua intimidade com eles. E, sobretudo, não me obriguem a entrar nessa intimidade, que é como ouvir um pedaço de plástico riscando o vidro: até um arrepio na espinha me provoca.
Entretanto, não me esquecerei desta nova obsessão pelo “naturalismo”, pela “organidade” – pela crueza. Não tarda, e na ausência da prometida Idade do Gelo, haveremos, enfim, de regressar à Idade da Pedra. Voltaremos a andar de quatro, garanto-vos – e em breve até de sapatos para as mãos precisaremos. Ora aí está uma bela ideia de negócio: sapatos para as mãos. Esta crise não durará para sempre.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 18 de Setembro de 2010