Dirão muitos que esta morte em público “ajudou a consciencializar-nos” quanto ao cancro no pâncreas. Mentira. Se de alguma coisa sempre estivemos conscientes, foi da existência do cancro – e, quanto ao cancro pancretárico propriamente dito, ficámos todos na mesma, ignorantes ainda quanto a causas e sintomas (embora talvez mais cientes de que mata quase sempre). Dirão outros que, se António Feio viveu a sua doença em público, foi porque quis. Concedo: ele qui-lo. Mas não quis tudo o que aconteceu – e, aliás, mesmo querendo, várias coisas não deviam ter chegado sequer a ser-lhe propostas.
Ao longo de um ano e meio, António Feio foi entrevistado, condecorado e até ouvido para um trailer cinematográfico inédito. Mas também foi convidado para programas tontos, questionado sobre como se sentiu perante a morte de Patrick Swayze e usado para quase tudo o que foi dossier e caixinha sobre “famosos aflitos”. Aceitou quase sempre, suponho, porque estava desesperado, o que é o mais humano de tudo. Já nós, profissionais dos media, fomos oportunistas, mesmo obscenos – e devíamos todos ter vergonha de ter feito dele uma mascote.
CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 31 de Julho de 2010
Ao longo de seis dias, incluindo sete rondas de 18 buracos (há várias notícia sobre as competições em causa noutros locais desta edição, embora muito me agradasse que não fizessem comentários sobre o resultado de pelo menos uma delas), eu joguei golfe acompanhado de um caddie. Fi-lo durante uma ronda de treino, voltei a fazê-lo durante quatro rondas na Pinales Cup Presented by Golfe Magazine, fi-lo de novo ao longo do Campeonato Nacional de Clubes Mid-Amateur e filo, ainda mais uma vez, em nova ronda de treino. E a questão que me coloco é simples: como deixámos nós, afinal, morrer essa maravilhosa arte do caddying, hoje circunscrita ao Estoril, ao Oporto e a pouco mais?
Porque um caddie é de facto um investimento, principalmente se contratado de forma esporádica, para uma ronda ou outra apenas. Mas são tantas as vantagens que nem sei como me deixei chegar ao desespero antes de experimentá-lo. Um caddie que conheça o campo em que se está a jogar ajuda em rigorosamente tudo. Às vezes nem sequer ajuda: decide – e está quase sempre certo. O taco a jogar, o voo a escolher no ataque ao green, o contacto a aplicar num rough pesado, a linha a procurar num green difícil – um bom caddie sabe tudo. No fim, voltamos a jogar mal, mas apenas porque é assim que jogamos mesmo: mal. Pelo meio, tivemos com quem conversar, tivemos quem nos passasse uma água fresca após um mau shot e tivemos ainda quem nos falasse do tempo e do futebol e da crise internacional antes de uma pancada exigente, cheia de perigos.
Pode custar cinquenta euros, um caddie. Pode custar trinta e pode custar oitenta – e pode mesmo custar cem, duzentos, até trezentos, consoante o tempo que precisemos dele e as deslocações que ele tenha de fazer por nós. O facto é que, dando o passo à medida da perna, não há outra coisa senão benefícios em usar um caddie. Bater na bola e mais nada – eis o que sobra para nós. Sobra o golfe. Porque é que andamos todos aqui senão por isso?
2. De resto, e ao fim de uma semana de golfe nos Açores, a conclusão a que um homem chega é simples: ninguém joga golfe em Portugal como os açorianos, ninguém respira golfe como eles – e muito triste é esse homem lembrar-se que também é açoriano e, no entanto, não joga nem respira como os seus conterrâneos. Primeiro, na Taça Pinales, feita à imagem e semelhança da Ryder Cup (com a excepção de que metade dos matches eram jogados em net), um resultado esmagador: 22 pontos para o Grupo da Saca (da ilha Terceira) e escassos 6 para o 7Abaixo (da Aroeira). Depois, e no Interclubes Mid-Amateur, ao mesmo tempo um desagravo e uma recarga: Terceira em primeiro, São Miguel em segundo e doze equipas do continente nos restantes lugares da classificação.
É verdade que o golfe, nos Açores (sobretudo na Terceira e nas Furnas) tem as suas especificidades. É verdade que a relva é diferente, que os roughs húmidos implicam um touch completamente diferente, que a mais pequena variação na humidade relativa (e como as há nos Açores, de instante para instante…) não só condiciona as distâncias no fairway como, inclusive, muda radicalmente as velocidades no green. Mas não deixa de ser encantador assistir a um duelo daqueles. Primeiros a bater: os continentais, todos aprumadinhos, pólo da Ashworth, pantalona da Boss, um swing de ensaio prodigioso, todo cheio de estilo – e, no fim, como se fosse inevitável, o bogey da praxe. Últimos a subir ao tee, depois de terem dado a honra ao adversário: os açorianos, camisas um tanto garridas, tacos do tempo da Maria Caxuxa, grips invertidos, swings de ensaio todos tortos – e aí está o primeiro birdie do dia.
“É a diferença entre o golfe e o golf”, diz um amigo meu. E a maior mágoa que eu tenho é a de não ter sido eu a inventar a frase.
SCORECARD. Golfe Magazine, Julho de 2010.
Dirão muitos que esta morte em público “ajudou a consciencializar-nos” quanto ao cancro no pâncreas. Mentira. Se de alguma coisa sempre estivemos conscientes, foi da existência do cancro – e, quanto ao cancro pancretárico propriamente dito, ficámos todos na mesma, ignorantes ainda quanto a causas e sintomas (embora talvez mais cientes de que mata quase sempre). Dirão outros que, se António Feio viveu a sua doença em público, foi porque quis. Concedo: ele qui-lo. Mas não quis tudo o que aconteceu – e, aliás, mesmo querendo, várias coisas não deviam ter chegado sequer a ser-lhe propostas.
Ao longo de um ano e meio, António Feio foi entrevistado, condecorado e até ouvido para um trailer cinematográfico inédito. Mas também foi convidado para programas tontos, questionado sobre como se sentiu perante a morte de Patrick Swayze e usado para quase tudo o que foi dossier e caixinha sobre “famosos aflitos”. Aceitou quase sempre, suponho, porque estava desesperado, o que é o mais humano de tudo. Já nós, profissionais dos media, fomos oportunistas, mesmo obscenos – e devíamos todos ter vergonha de ter feito dele uma mascote.
CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 31 de Julho de 2010