Domingo, 31 de Janeiro de 2010
publicado por JN em 31/1/10

O buraco 3, par 5, é em si próprio uma experiência. Com 622 metros de comprimento a partir das marcas brancas (601 das amarelas), é com um misto de orgulho e de ligeireza que ostenta o estatuto de maior da Península Ibérica “e um dos maiores da Europa”. E, no entanto, não se trata apenas de bater a bola em frente. Pode-se começar com o driver, claro – mas é preciso batê-lo direito: um nadinha à direita e a bola desaparece, um nadinha à esquerda e desaparece também. Depois, o quê – uma madeira 3? Lago quase de certeza, na melhor das hipóteses mato da direita (e bola perdida de novo). Valerá a pena, então, bater um ferro médio, seguido de um ferro curto para o green? E se fosse ao contrário das normas estabelecidas – um pitching wedge agora e, mais ali à frente, um ferro 7, quem sabe até um 8, evitando cair na vinha ou na horta que se escondem para lá e à esquerda do green? Em suma: confiamos nos nossos instintos ou é melhor voltar a fazer as contas?


Pois o nosso fim-de-semana no Minho, terra do vinho verde, começa por aqui: pelo belíssimo campo do Axis Golfe Ponte de Lima – e ainda bem que começa. Porque, cinco minutos depois, já estamos a aprender. Dizer que se trata de um campo difícil é eufemismo – é um campo sacana mesmo. Ousa-se um bocadinho e já está: bola perdida no mato. Relaxa-se um nadinha e já está também: sapo garantido na relva humedecida. Confiar na intuição é proibido: é preciso efectivamente medir as distâncias, recorrendo ao cartão e às marcas de tee e fairway, que as perspectivas são mais do que ilusórias. Se em algum campo português se pode dizer que tudo reside na escolha dos ferros, no fundo, é neste. Segredo: gerir o saco como a caixa de velocidades de um automóvel: reduções nas curvas, velocidades mais livres nas rectas – mas nunca cair na tentação da prise e, sobretudo, jamais perder o travão de vista.

Mestres de cerimónias: os irmãos Daniel e David Silva, a melhor dinastia da história do nosso golfe profissional. Desafiados a construir um campo championship na montanha, aproveitando retalhos de terreno dispersos por entre quintas ancestrais e vinhedos pitorescos, recusaram cingir-se ao que parecia haver e decidiram reinventar o espaço. Resultado: um retorcido par 71, com um back nine relativamente benigno, mas um front nine absolutamente desconcertante. Fazê-lo a pé é quase impossível. E, quando um homem chega finalmente à chu-house, confortável, cheia de luz e com uma belíssima vista sobre os mais bonitos fairways da segunda volta, traz duas certezas. A primeira é que, se o jogasse de novo, faria muito melhor. A segunda é que está definitivamente preparado para um fim-de-semana de descanso, tal o desafio a que se submeteu nas três ou quatro horas anteriores.


 


Espera-nos o Aquafalls Hotel & Spa, o primeiro (e único, até ao momento) hotel rural português a merecer a classificação de cinco estrelas – e chegar a ele, mesmo tratando-se da primeira vez, é como regressar a casa. À volta, São Miguel da Caniçada está envolvido em silêncio, agora que a noite caiu. Em baixo, o Cávado é apenas um brando rumor, de resto mal discernível na penumbra. Ao fundo, o Gerês é uma silhueta, não mais. E, no entanto, é como se todos eles estivessem ali connosco: a serra, o rio e a própria floresta – todos ali juntos para nos receberem, na suavidade das mãos que nos cumprimentam, no savoir faire das vozes que nos dão as boas-vindas, na ternura do silêncio, na intensa solidão das tempestades, nos campos alagados, nos sítios sem resposta de que falava o poeta.

Situado nos arredores de Vieira do Minho, a escassos 30 km de Braga, 85 km do Porto e não mais de 100 km de Tuy, na fronteira espanhola, o Aquafalls é pouco menos do que uma epifania. A respeitadíssima Tatler, revista britânica dedicada ao glamour e ao lifestyle, incluiu-o na sua lista dos 101 melhores hotéis de spa do mundo – e facilmente se percebe porquê. Ao todo, são dois quartos, ambos no edifício principal, e 22 suites dispersas por 11 bungalows, todos projectados pela arquitecta Rosário Rodrigues. E cada uma dessas suites é como que um pedaço do paraíso. De tipologia T1 e com terraço privativo, dispõem quase todos de casa de banho com duche e banheira independentes, dois ecrãs plasma (ambos com pacote completo de televisão por cabo, incluindo SportTV), acesso Internet de banda larga e tudo o mais que alguém possa pedir para um fim-de-semana de sonho. Pela manhã, e pedindo o pequeno-almoço no quarto, nem é preciso abrir a porta ao empregado: ao levantar já os croissants estaráo, com o jornal do dia ao lado, num pequeno alçapão lateral, com acesso por dentro e por fora.

Os jardins, embora ainda em crescimento, são outra descoberta. Pequenas alamedas de plátanos e ciprestes ligam recantos com choupos e laranjeiras – e dispersos pelo recinto estão uma quadra de ténis, um campo de mini golfe, um pequeno parque infantil, um miradouro, uma piscina exterior. Mas é lá dentro, no edifício principal, que reside o spa – e nós mal podemos esperar por experimentá-lo Até que pousam em nós aquelas mãos cálidas: duas mãos como se fossem uma só, massajando, dissolvendo-se e logo massajando noutro lugar – e, lentamente, o mundo vai desaparecendo no horizonte, os fracassos e os sucessos profissionais, as tensões e mesmo o amor, a viagem e o próprio jogo de golfe: tudo o que exista para além daquelas mãos e do corpo que elas manuseiam como se lhes pertencesse (ou as mãos a ele). E não é sem alguma frustração que evitamos o ginásio, a piscina e a sauna, a que facilmente recorreríamos só para termos um pretexto para voltar à massagem.


 


Optamos pelo almoço no Splendid, o restaurante do próprio hotel– e, então, o poeta volta a beijar-nos. Ao lado, janelões rasgados oferecem-nos o rio, a montanha, o horizonte. À nossa volta, os restantes hóspedes têm os olhos semi-cerrados – vêm igualmente do spa, naquele estado de cripto-consciência que é quase o espectro, não da morte, mas da vida eterna. E a comida é gloriosa, incluindo, por exemplo, uma perdiz estufada e um bacalhau com migas de broa por que vale esperar um ano inteiro, contanto que a recompensa seja exactamente aquela. Mérito de Jerónimo Abreu, o chef recrutado ao Tivoli Algarve – e mérito, já agora, de Eva, a nossa anfitriã do dia, com o seu riso fácil, o seu ar ao mesmo tempo despachado e ternurento e o seu sólido conhecimento da garrafeira, dos ingredientes a que Jerónimo Abreu recorre, dos significados daquela comida naquele lugar, naquela atmosfera casual chic, neste tempo que vivemos.

Voltamos para o nosso bungalow, para a sua base de granito, para o seu forro de madeira – e, pela primeira vez em muito tempo, dormimos pela tarde fora. Na dia seguinte, sim, partiremos pela região. Visitaremos a vila do Gerês, a montanha sobre ele e o incontornável miradouro da Pedra Bela. Passaremos a barragem, almoçaremos no célebre Abocanhado, em Brufe, e rezaremos uma oração junto ao santuário de São Bento da Porta Aberta, mesmo faltando-nos em absoluto a fé. No fim, deixamos os passeios de jipe e de moto 4, de barco e mota de água, de bicicleta e a pé para outra ocasião. Não levamos filhos na bagagem – e também por isso deixaremos a animação e o baby sitting para uma próxima visita. Acabamos simplesmente vagueando sem destino, pela Caniçada, entre as quintas de castanheiros e os vinhedos que se erguem no ar, às vezes parecendo árvores, outras iluminação natalícia.

No domingo à noite, enquanto fazemos as malas, uma última dúvida nos assalta: voltar já para a cidade ou ficar mais uns dias, ignorando as obrigações e os compromissos, conhecendo um pouco mais desta natureza bela e exuberante, feita de sucessivos anfiteatros debruçados sobre rios românticos e inesquecíveis, nas margens dos quais se aninham os restaurantes mais serenos e generosos – mergulhando na cabidela e nas papas de serrabulho, conhecendo os trilhos pedestres e, já agora, fazendo novo desvio a Ponte de Lima, para ajustar contas com um certo sacana que nos sacudiu como a mantas velhas? Acabamos por fazer-nos à estrada, na certeza de que todas as partidas têm um mérito: quem nunca partiu, não pode nunca voltar. O fim-de-semana perfeito é assim mesmo: aquele de que se parte ao mesmo tempo com a mágoa de partir e a certeza absoluta de que, em breve, se regressará.


 


 


MINHO


GEOGRAFIA: situada na zona noroeste de Portugal continental, é limitada a Norte e a Nordeste pela Galiza, a Este por Trás-os-Montes e Alto Douro, a Sul pelo o Douro Litoral e a Oeste pelo Oceano Atlântico.

VIGÊNCIA FORMAL COMO PROVÍNCIA: 1936-1976

SUB-REGIÕES: 4 (Minho-Lima, Cávado, Ave e Tâmega, as últimas duas partilhadas com a antiga província do Douro Litoral)

DISTRITOS: 2 (Braga e Viana do Castelo)

CONCELHOS: 24

ÁREA: 4928 km

POPULAÇÃO: 1,1 milhões de habitantes

PONTO MAIS ALTO: Serra do Gerês (1545 m)

OROGRAFIA: a costa é baixa e recortada, alternando os pequenos lanços de praia arenosa com os rochedos que as marés cobrem na maior parte da superfície; a zona montanhosa, em anfiteatro para o mar desde as serranias do Gerês, Marão e Montemuro, é cheia de vertentes alcantiladas, propícias ao desenvolvimento de espécies selvagens, sendo por isso uma das regiões do país com mais notáveis belezas naturais

PRINCIPAIS ACTIVIDADES ECONÓMICAS: agricultura (milho e vinha), indústria (têxteis, electricidade, electrónica, confecções, construções mecânicas, celulose, fiação e mobiliário) e serviços

ATRAÇÕES GASTRONÓMICAS: caldo verde, caldo de pobres, bacalhau à Gomes de Sá, bacalhau à lagareiro, bacalhau à Zé do Pipo, arroz de lampreia, angulas com toucinho, cascarra guisada, sável fumado, cabidela de miúdos, rojões, arroz de sarrabulho, arrozada de galerós, aletria, arroz doce, cavaca e sopa dourada, entre outras.

PRINCIPAIS CASTAS DE VINHO: Alvarinho, Arinto, Avesso, Azal Branco, Azal Tinto, Batoca, Borracal, Brancelho, Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Espadeiro, Loureiro, Merlot, Padreiro de Basto, Pedral, Rabo de Ovelha, Riesling, Trajadura e Vinhão.


 


 


AQUAFALLS SPA HOTEL RURAL


PROPRIEDADE: Aquafalls-Gestão e Exploração Hoteleira, Lda

ENDEREÇO: São Miguel, Caniçada, 4850-503 Vieira do Minho (GPS: 41º38’52’’N/8º12’20’’W)

INAUGURAÇÃO: 2008

CATEGORIA: 5 estrelas

DISTINÇÕES: primeiro hotel rural português a obter a categoria de 5 estrelas; “Chave de Ouro” do guia “Boa Cama, Boa Mesa”, do jornal “Expresso”

DIRECTOR: Maria Nunes da Ponte

SÍTIO OFICIAL: www.aquafalls.pt


INFRA-ESTRUTURAS E SERVIÇOS

QUARTOS: 2 quartos e 11 bungalows (num total de 22 suites)

ESPAÇOS: spa, restaurante, bar, sala de pequenos-almoços, auditório, piscinas interior e exterior, quadra de ténis, campo de mini-golfe, miradouro e jardins

ACTIVIDADES: ténis, mini-golfe, natação, caminhada, rotas temáticas, visitas a aldeias típicas, arborismo, desportos náuticos, passeios de bicicleta, passeios de todo-o-terreno, passeios de barco e passeios de moto de água

SERVIÇOS COMPLEMENTARES: estacionamento (gratuito), internet de banda larga em todo o recinto (wireless no edifício principal), personal trainer, baby sitting, lavandaria, loja Sisley, aluguer de buggies

TARIFAS: variáveis, consoante os programas e as épocas do ano (tabela de € 179 a € 324)

RESERVAS: 253.649.000 (tel), 253.649.009 (fax), info@aquafalls.pt(email)


RESTAURANTE (SPLENDID)

GASTRONOMIA: internacional e de autor

CHEF: Jerónimo Abreu

FUMADORES: não

RESERVAS: 253.649.000 (tel)

PREÇO MÉDIO: € 30 por pessoa


ACESSOS

SITUAÇÃO: 55 km a NE da cidade do Porto

ACESSOS: tomar EN 103 na direcção Chaves, cerca de 30 km após a saída de Braga, virar à esquerda na rotunda de Cerdeirinhas (direcção Parada de Bouro), cerca de 3,5 km depois cortar à direita na direcção São Miguel (Caniçada)


 


 


AXIS GOLFE PONTE DE LIMA


PROPRIEDADE: GPL Golfe Ponte de Lima, SA

ENDEREÇO: Quinta de Pias-Fornelos 4990-620 Ponte de Lima (GPS: 41º44’58’’N/8º34’25’’W)

INAUGURAÇÃO: 1995

DISTINÇÕES: não tem

PRINCIPAIS PROVAS: integrou o circuito da PGA Portugal em 1997 e 1998

DIRECTOR: Manuel Francisco Miguel

GOLF-PRO: Alfredo Cunha

Nº DE SÓCIOS: 580

SÍTIO OFICIAL: www.axishoteisegolfe.com


ARQUITECTURA

ARQUITECTOS: David e Daniel Silva

ÁREA: 33 ha

TIPO: montanha, parkland

BURACOS: 18

PAR: 71

COMPRIMENTO: 6005 (brancas), 5653 (amarelas), 4719 (vermelhas)

COURSE RATE: 69,8 (brancas), 67,7 (amarelas), 68,8 (vermelhas)

SLOPE RATE: 145 (brancas), 139 (amarelas), 135 (vermelhas)

DRIVING RANGE: sim

PITCHING GREEN: sim

PUTTING GREEN: sim


QUOTAS, GREENFEES E SERVIÇOS

GREENFEE ANUAL: € 770 (utilização ilimitada)

JÓIA DE INSCRIÇÃO: € 3000 de acção (sócio individual) € 6000 (sócio-empresa)

VOLTA DE 18 BURACOS: € 60 (todos os dias), fora convénios e descontos para jogadores federados (-20 %) e juniores (€ 25)

VOLTA 9 BURACOS: € 28 (todos os dias), convénios e descontos para jogadores federados (-20 %)

PROMOÇÕES ESPECIAIS: Pack de fim-de semana (€ 140, incluindo 2 noites de alojamento, 2 green fees, 2 lanches, 2 pequenos-almoços e 1 jantar; € 85 por cada acompanhante não jogador, com direito aos mesmos extras)

BUGGY: € 20 (9 buracos) € 35 (18 buracos)

CADDIE: não tem

TROLLEY ELÉCTRICO: não tem

TACOS DE ALUGUER: € 30

COURSE GUIDE: não tem

TOKEN: € 1 (25 bolas)

LIÇÕES: € 30 por 30 minutos; € 50 por 1 hora (€ 65 para 2 pessoas, € 80 para 3 pessoas)

MARCAÇÕES: 962.123.784


ACESSOS

SITUAÇÃO: 58 km a NE da cidade do Porto

ACESSOS: pela A3, sair na saída 11 para Ponte de Lima, tomar a EN 201 na direcção Braga e seguir as placas “Golfe”


REPORTAGEM. J, 31 de JANEIRO de 2010

Sábado, 30 de Janeiro de 2010
publicado por JN em 30/1/10

Horrorizamo-nos: “Credo, que coisa tão portuguesa…” – e com isso nunca queremos dizer mais nada senão: “De um terceiro-mundismo atroz!” Nada a fazer: trazemos connosco isto de que ser português é ser mesquinho, pobre de espírito, egoísta – e, quando se trata de falar dos “portugueses em geral”, nunca somos um deles. Curiosidade: o hábito não é especialmente lusitano. A snobeira, já se sabe, é coisa de pobre – e não há país novo-rico onde não se suspire: “Ah, como o meu povo é mesquinho…” Os brasileiros fazem-no. Os angolanos fazem-no. Os eslovacos fazem-no. Os franceses não o fazem, mas porque são ricos há muito tempo – e, de resto, nunca lhes faltou a vaidade colectiva. Muitos americanos não o fazem, mas por etnocentrismo – e, em todo o caso, há sempre alguém, entre a classe “pensante” da costa Leste, disposto a fazê-lo.


Portanto, isto não é um lamento sobre a portugalidade: é um desabafo sobre a espécie. Diz um daqueles emails que circulam pela web, chegando-me à caixa de correio a cada três semanas, que “Ser português é: levar arroz de frango para a praia; guardar as cuecas velhas para polir o carro; tirar a cera dos ouvidos com a chave do carro; gastar uma fortuna no telemóvel, mas pensar duas vezes antes de ir ao dentista; viver em casa dos pais até aos 30; falar mal do Governo e esquecer que se votou nele (…)”. Ora, eu conheço uma dúzia de países onde também se leva arroz para a praia. Já estive noutra dúzia onde se guardam as cuecas velhas para polir o carro. Sei de pelo menos outra dúzia ainda onde se vive até aos 30 anos em casa do papá. E nunca ouvi falar de um só país, já agora, onde não houvesse a tradição de guardar lugar.

E, porém, é uma das mais irritantes características do ser humano quando confrontado com o tormento da espera: guardar lugar para um amigo, para a mulher, para o vizinho que se atrasou, que foi virar o carro ou que fez um desvio para comprar os chupa-chupas. Uma pessoa chega à cafetaria, leva com uma fila de vinte minutos para resgatar uma sopa e depois passa outros vinte às voltas pela sala, com o tabuleiro na mão e a mochila às costas e a sopa a pingar, à procura de um sítio para comer. Há cadeiras vazias? Claro que há. Por exemplo: naquela mesa à esquerda, onde uma senhora gorda espera sozinha, tamborilando os dedos e ajustando os botões do camiseiro. Naquela mesa ao meio, onde um grandalhão aguarda em silêncio, feito boi sentado, de olhar disperso. Naquela mesa ao canto, onde uma rapariga fala alto ao telemóvel, combinando a noitada de sábado. E o que é que cada um deles nos responde se nos aproximamos com o tabuleiro, ousando sequer olhar para uma das cadeiras vazias? “Está ocupado.”

Apetece virar a mesa. Apetece bater-lhes. Apetece fazer um chinfrim e chamar-lhes egoístas, anormais, filhos de uma grandessíssima mãe – e era precisamente isso que faríamos, não fosse insurgir-se o receio de o grandalhão efectivamente ser tão grandalhão como parece, de a senhora rebentar de repente num pranto ou de a rapariga reconsiderar quanto a incluir-nos na sua tão promissora noitada. E, no entanto, nem uma hesitação: dizem-nos “Está ocupado”, como se fosse tão óbvio os lugares estarem ocupados como o céu ser azul e as nuvens branquinhas – e, no fim, ainda franzem a testa, esticam o pescoço e sugam o ar pelo canto da boca, num estalido, como quem diz: “Azarito…”

Depois precisamos de ir às Finanças, andamos uma hora às voltas para estacionar, avistamos um lugar milagroso entre dois Fiat Puntos – e lá está de novo a senhora gorda, agora em pé, acenando e franzindo a testa porque o marido foi dar a volta ao carro e, portanto, o lugar já está ocupado. À noite vamos a um concerto no Coliseu, chegamos um bocado em cima da hora, a maior parte dos lugares livres ficam por detrás dos pilaretes – e lá está a rapariga do telemóvel, com sete belas cadeiras vazias à volta, mas todas elas “ocupadas” por um dos pullovers velhos que ela traz numa mochila que tem especialmente para o efeito. No dia seguinte vamos ao supermercado e lá está o grandalhão a ocupar uma caixa, com ar absolutamente respeitável, enquanto a mulher foi dar uma última volta pelo corredor dos frescos, porque afinal tinha faltado o Häagen-Dazs.

Está mal. Está mal e, quando se trata de um Inverno tão longo como este, uma pessoa já só tem vontade de fazer como o Frank no seu sonho mais selvagem, regando tudo, acendendo um fósforo e estacionando do outro lado da rua, a rir e a ver arder. Eu nunca consegui tolerar estes bois – e, em semanas assim, é sempre o Frank que me vale.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 30 de Janeiro de 2010

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publicado por JN em 30/1/10

O regresso da Rui Unas à apresentação, marcado para a Primavera na SIC Radical, é uma das primeiras grandes notícias do ano. Unas faz falta à nossa televisão – e é mesmo pena que continue, para já, à espera de uma verdadeira oportunidade no segmento generalista, incluindo o horário nobre dos canais de sinal aberto. Inteligente e culto, tanto quanto espontâneo e cómico, Rui Unas tem o perfil ideal para ajudar a elevar a fasquia da qualidade do nosso mainstream sem, ao mesmo tempo, a colocar tão alta que os consumidores de mainstream não consigam atingi-la.


Mas convém perceber as razões que estiveram por detrás do seu ocaso, ocorrido entre Cabaret da Coxa (SIC Radical) e Inimigo Público (SIC). Cabaret da Coxa era um prodígio de forma: um verdadeiro statement sobre a trash TV, as suas potencialidades e os seus limites – mas ao fim de algum tempo cansava, por falta de conteúdo. Pelo contrário, Inimigo Público, que de generalista só tinha o canal (o horário tornava-o inacessível), era um prodígio de conteúdo, tal como o era na altura a sua versão em papel – mas fora muito mal pensado do ponto de vista da forma e, ao fim de pouco tempo, adormeceu.

O que se espera do novo programa, que Rui Unas começará a apresentar depois das gravações de Viver É Fácil para a RTP (e cujo nome continua por anunciar), é que lhe proporcione finalmente uma forma que lhe permita exibir o seu próprio conteúdo, sem deixar de proporcionar-lhe também um conteúdo que o proteja dos seus próprios excessos de forma. Porque o facto é este: desde que o Gato Fedorento começou a gozar a enésima sabática, o humor televisivo nacional tem sido um deserto.


CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 30 de Janeiro de 2010

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Os Sítios Sem Resposta",
ROMANCE,
Porto Editora,
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"O Citroën Que Escrevia
Novelas Mexicanas",
CONTOS,
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"O Terceiro Servo"
ROMANCE,
Editorial Presença,
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Bíblia do Golfe
DIVULGAÇÃO,
Prime Books
2011
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"Banda Sonora Para
Um Regresso a Casa
CRÓNICAS,
Porto Editora,
2011
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"Crónica de Ouro
do Futebol Português",
OBRA COLECTIVA,
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"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
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Esfera dos Livros,
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"José Mourinho, O Vencedor",
BIOGRAFIA,
Publicações Dom Quixote,
2004
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"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
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