Domingo, 29 de Novembro de 2009
publicado por JN em 29/11/09

Cruzei-me com o fórum a meio de uma pesquisa no Google já não sei bem sobre o quê. Tema: o sushi. Pergunta da miúda (americana, segundo percebi), lançando o debate: “Is it weird that I hate sushi?” Quer dizer: “É estranho eu não gostar de sushi?” Mais do que estranho: “É marado? Sou assim tão extra-terrestre por não gostar de atum cru, de arroz avinagrado, daquele gengibre que me deixa uma sensação estranha na boca, do wasabi que me dá cabo do estômago?” Tom dominante nas respostas: “Claro que não, miúda. És apenas ignorante. Nunca comeste o verdadeiro sushi. Talvez se tivesses sido instruída por um veterano como eu... Agora, já não vais lá. Paciência. Paz à tua alma.”


Assim se dividem, aparentemente, os bourgeois et bohemians do século XXI: há os que gostam de sushi e os que não gostam dele. Os que gostam podem respirar de alívio: terão o seu lugar no Paraíso. Os que não gostam estão em apuros. Se conseguem forjar uma pose sobranceira, de quem já provou mas entretanto descobriu melhor, ainda têm uma oportunidade: basta explicarem-nos que coisa melhor é essa, afinal. Se não gostam porque não conseguiram comer o peixe cru – ou, pior ainda, porque simplesmente não apreciaram a iguaria – mais vale mudarem-se já para a província, que ainda há muitas vagas para mecânicos e empregadinhas de café por preencher.

E, no entanto, nunca vejo alguém a comer sushi. Vou com frequência a restaurantes japoneses – e em nenhum deles vejo os meus estilosos vizinhos a fazer outra coisa que não depenicar. Entram em magotes, aos quatro e aos seis e aos oito de cada vez, pedem três ou quatro pratos para partilhar – e depois ali andam, esfaimados, engonhando num só maki, dividindo nigiris a meio, ansiosos por que aquilo acabe depressa para poderem voltar para casa e atacar os restos dos almoço. Mas já fizeram o seu papel: viram e foram vistos a comer sushi. Porque, afinal, é disso que se trata. O sushi é uma roupa que se veste. É a lagosta dos tempos modernos: é caro, é repugnante – e a ninguém passaria pela cabeça comê-lo senão em público.

Eu confeccionei-o uma vez em casa. Estávamos nos Açores há quase um mês, urgentes já de alguma urbanidade, e decidimos espairecer entre as prateleiras de uma lojinha gourmet. Resultado: um cabaz com arroz e vinagre doce, alga kombu e alga nori, livro de receitas e apetrechos para enrolar, wasabi, gengibre e molho de soja – enfim, uma parafernália de ingredientes, temperos e ferramentas que, adicionadas ao atum e ao salmão comprados no supermercado, nos custaram o equivalente a meia dúzia de jantares no japonês habitual. Ao regressar a casa, claro, convidámos os pais e os sogros, todos eles iniciados em tais matérias – e, naturalmente, a soirée oscilou entre o fracasso total e o êxito completo.

A comida foi um fracasso. Começámos a cozinhar às cinco da tarde – e à uma da manhã ainda ninguém tinha jantado. A alga kombu desfez-se no arroz, que por isso não deu ponto. O vinagre era de mais, as maquinetas de maki revelaram-se difíceis de operar, o corte do peixe demorou uma eternidade. Mas o resto foi um êxito. As fotos ficaram lindas. Enlouquecidos pela fome, os pais e os sogros (sobretudo o meu pai, que eu deixara a pão e água a noite inteira, com um jornal na mão e ordens para ficar quietinho) comeram como se não houvesse amanhã. E, principalmente, tivemos público: quatro cidadãos de meia idade a quem os próprios pauzinhos metiam confusão. Pois fizemos a nossa fita. Éramos uns moderninhos – e o facto de os convidados terem jurado jamais repetir a experiência apenas acentuava o nosso triunfo.

O sushi, hoje, é assim: não só apenas faz sentido comê-lo em frente a testemunhas, com só faz sentido comê-lo se essas testemunhas o detestarem. No fundo, somos uns malucos, ao pormo-nos para ali a comer aquelas coisas esquisitas. É como com as viagens: enchemos a boca com os destinos exóticos a que já fomos e com os destinos radicais a que ainda vamos – e, ao pormos a mochila às coisas, já não nos preocupa outra coisa senão as fotografias e os souvenirs, a ver se o pessoal lá em casa se rende de vez ao nosso cosmopolitismo, aos perigos que vivemos, aos estranhos povos com que nos enturmámos, às praias maravilhosas em que nos banhámos. No fim, aquilo de que estamos à procura, mais uma vez, é de público. De sermos os maiores da nossa rua. Esquecemo-nos de que, por esta altura, já toda a gente foi à Patagónia – e de que, de resto, toda a gente já experimentou peixe cru também.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 28 de Novembro de 2009

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Sábado, 28 de Novembro de 2009
publicado por JN em 28/11/09

Primeiro, parece um objecto estranho – e, quando se vai a ver melhor, é mesmo. Sem Pés Nem Cabeça, que ocupa as madrugadas do Porto Canal, é um espécime único. Do ponto de vista do conteúdo, como que recupera o mote de Seinfeld, que a si próprio chamava “um programa sobre nada”. Do ponto de vista da forma, faz lembrar (ainda que involuntariamente) Wayne’s World, o show que, no filme homónimo de Penelope Spheeris (1992), Wayne Campbell (ou Mike Myers) conduzia numa obscura estação de cabo de Chicago.


Ao longo de uma hora (01.30-02.30), uma única rapariga olha para a câmara e discorre sobre aquilo que lhe passa pela cabeça a pretexto das SMS enviadas pelos telespectadores. Curiosidade: a rapariga (Bárbara Rego) é linda – e o ostensivo sotaque nortenho em que se expressa apenas reforça o seu magnetismo. Problema: todos os espectadores estão ocupados apenas com a sua beleza – e o que daí resulta é precisamente isso: uma hora em que, exceptuando duas dúzias de chavões sobre as relações românticas, se fala de uma mulher e de como ela é bonita.

Não é bem televisão: é rádio com imagens – um programa nocturno para solitários, próximo da velha tradição onda média. E, no entanto, entranha-se-nos. Ao fim de duas ou três noites, “Baba” vira parte da família. Se estivesse num canal nacional, e tal como aconteceu a Wayne Campbell quando mudou para uma estação maior, roçaria o ridículo. Ali, no nosso único verdadeiro canal “de cabo”, faz sentido. Estranhamente.


CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 28 de Novembro de 2009

Quinta-feira, 26 de Novembro de 2009
publicado por JN em 26/11/09

O problema da actual medição de audiências da Marktest, em que a própria quer agora introduzir mudanças, não é apenas o facto de deixar de fora, entre outros, os mais de meio milhão de assinantes Meo. O problema é que essas 500 mil pessoas têm um perfil diferente. Vêem televisão de maneira diferente – e, provavelmente, gostam de televisão diferente também.


Talvez os futuros números, obtidos a partir do momento em que a IPTV, o satélite e a nova TDT passem a ser auditados, não sejam muito diferentes dos de hoje. Mas, a avaliar pelas reacções da RTP e da TVI, manifestando-se ostensivamente contentes com as medições hoje existentes, o mais provável é que as diferenças ainda tenham significado. Dos canais generalistas, e tirando a RTP2, é a SIC quem tem mais expressão no segmento “culto” (o tipo de TV que mais se apropria a visionamentos alternativos) – e talvez seja ela quem mais tem a ganhar com novos estudos. Pode estar muito dinheiro de publicidade em jogo.

E, no entanto, este salto é apenas parte da solução. Fica ainda por resolver o problema da Internet, tanto em relação aos sites de partilha de ficheiros, como aos sites oficiais das estações. Por outro lado, os próprios canais terão de encontrar solução para a incrustação de publicidade na TV gravada e/ou partilhada na web. Estamos no início de tudo – e a nova Hybrid Broadacst Broadband, embora já chamada de “futuro”, ainda será só o “futuro próximo”.


CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 26 de Novembro de 2009

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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