Sábado, 31 de Outubro de 2009
publicado por JN em 31/10/09

É uma boa notícia, de certa forma, a chegada de Jorge Lacão à tutela da comunicação social (e, portanto, da televisão). Augusto Santos Silva fez o que tinha de ser feito (e geriu bem, para o seu Governo e para o seu partido, uma série de crises), mas fez também mais do que isso. Em muitos momentos foi, na prática, uma espécie de ministro da Propaganda em tempos de democracia – e Jorge Lacão, até pelo seu perfil mais guerrilheiro e translúcido, terá menos propensão para esse estilo de comunicação.


Mas ainda não foi desta que os media passaram para a tutela do Ministério da Economia – e esse, sim, é o passo que, em algum momento, a democracia terá de dar. Todos o sabemos: os órgãos de comunicação social têm especificidades. Mas o seu grau de especificidade é cada vez menos relevante se comparado com os de uma série de outros sectores da economia, da energia ao turismo, do pequeno comércio à indústria. E, com ou sem RTP e RDP, trata-se igualmente de matéria de natureza económica, não de natureza política.

Para seu próprio bem, e para o bem dos seus consumidores, os media deixarão um dia de ser “especiais”. Nessa altura, serão menos regulados e cometerão talvez mais excessos. Mas serão também mais livres – e, inevitavelmente, deixar-se-ão influenciar menos pela lógica partidarista da nossa vida pública. Cabe a Jorge Lacão provar que se pode “evoluir na continuidade”. Uma gestão da pasta à Santos Silva apenas reforçará o problema.


CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 29 de Outubro de 2009

publicado por JN em 31/10/09

O que é trágico não é propriamente o debate gerado em torno de Caim. O que é trágico é que, desde 1991-92, período ao longo do qual José Saramago publicou O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Sousa Lara, tonto, o vetou como candidato nacional ao Prémio Literário Europeu, a literatura portuguesa não tenha produzido mais um só debate digno desse nome – e que quando, sem outra coisa que dizer, Saramago experimenta repetir que “Deus não é de fiar” ou “a Bíblia é um manual de maus costumes”, desate toda a gente aos berros, como se nunca o tivesse ouvido antes.


Já o ouviu. Bem vistas as coisas, José Saramago não diz nem escreve nada, hoje, que não tenha já escrito em 1991: que Deus é a própria origem do Mal. E, se reagimos com tal energia à simples reapresentação, quase vinte anos depois, dessa mesma ideia, é porque andámos demasiado tempo a discutir se Margarida Rebelo Pinto tem direito a gastar o nosso oxigénio comum ou se Vasco Pulido Valente deve, na idade em que está, persistir em sujeitar-se anualmente ao bungee jumping emocional que é, para ele, ler um livro de Miguel Sousa Tavares.

José Saramago é, provavelmente (não, não os li a todos), o maior narrador português dos últimos 50 anos. Ofereceu-nos páginas sublimes em Memorial do Convento, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em Ensaio Sobre a Cegueira – e, se um dia tivesse sido posto a referendo que escritor da sua geração deveríamos canonizar primeiro, eu próprio teria votado nele. Por outro lado, e como qualquer outro criador que se preze, tem uma série de obras precoces em que está sobretudo à procura de uma voz e outras tantas serôdias em que mergulha na procura de uma nova, porque entretanto a antiga se esgotou.

Na verdade, todos os seus romances desde Todos Os Nomes (a estes, sim, li-os todos) são um pouco isto: a procura de algum tipo de nova perspectiva sobre a condição humana e o mundo que essa condição impõe (e, nesse aspecto, um fracasso). Por outro lado, são também a constituição de um extenso e diversificado catálogo de soluções narrativas, à maneira de Ravel, em torno da escravidão do homem pela mais brilhante das suas criações: o próprio Deus (e, nesse sentido, um êxito). Talvez se possa dizer que merecíamos um Nobel melhor, não sei. Mas uma coisa que se pode dizer de certeza é que o Nobel português merecia melhores portugueses.

Entretanto, faz o que pode com aquilo que tem. E o que fez, nas entrevistas dadas a propósito deste Caim, foi mostrar que ainda nos conhece como ninguém – que ainda sabe onde estão os nossos interruptores consumistas e o que é preciso fazer para accioná-los. Tenho pena que, quanto a mais um livro, não se tenha ainda dedicado à exegese, por exemplo, do Corão, neste momento um livro com um potencial fratricida muito superior ao do Velho Testamento. Mas aceito que esteja refém da sua fé: essa imensa fé dos cristãos ateus – não dos cristãos agnósticos, que não acreditam (nem deixam de acreditar) em nada, mas dos cristãos ateus mesmo: aqueles que acreditam com todas as suas forças na inexistência de um Deus único, castigador e bondoso, egoísta e magnânime.

Por outro lado, há uma coisa que ficamos a dever-lhe: ter-nos ajudado a recordar, numa altura em que a Sociedade Bíblia de Portugal se empenha na divulgação da nova Bíblia Para Todos, que a Bíblia Sagrada não é apenas a saga de um povo, mas também o que séculos e séculos de exegeses oficiais (incluindo as várias cristãs e, até, as das restantes religiões monoteístas) fizeram dela. Impotente perante a miríade de conjugações entre o que deve ser lido literalmente e o que deve ser entendido de forma simbólica, a Bíblia permaneceu sobretudo aquilo que diz a sua letra, entretanto quase sempre usada para proibir e castigar, muito mais do que para permitir e premiar – e Caim é um importante contraponto a este novo exercício, ao mesmo tempo lírico e historicista, de transformá-la num romance de aventuras.

Eu, felizmente, não preciso dele. Mais: como Saramago, professo com paixão o ateísmo – no fundo, penso demasiadas vezes nestas coisas para me deixar entusiasmas por dois ou três aforismos heréticos a pretexto do lançamento de um novo livro. De forma que, esgotado o assunto, emprateleirei com gosto o Caim e o Abel – e regressei depressa ao Chandler, agora que as Edições Contraponto o vão resgatando a essa saudosa mas decrépita Colecção Vampiro. Eu queria mesmo era ser Philip Marlowe. Philip Marlowe não pretende salvar a Humanidade – e às vezes há um grande romantismo nisso.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 31 de Outubro de 2009

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Sexta-feira, 30 de Outubro de 2009
publicado por JN em 30/10/09

Aquilo que José Eduardo Bettencourt ainda não percebeu é que é já, por esta altura, o pior presidente da história contemporânea do Sporting. Nunca alguém cometeu tantos erros em tão pouco tempo: nunca alguém foi tão rápido a mergulhar o Sporting no lodo – e tão eficaz, depois, a segurar-lhe a cabeça no fundo, na expectativa de que deixe, enfim, de respirar.


Curiosamente os jogadores assumem que são culpados. Paulo Bento também assume que é culpado, embora peça que “outros” admitam igualmente as suas responsabilidades. O presidente, esse, não tem culpa nenhuma.

E não tem culpa nenhuma, pensa ele, porque não fez nada. Pois está certo nisso: não fez nada. Por outro lado, é precisamente por isso que é o principal culpado: porque não fez nada – e porque continua, todos os dias, a não fazer nada. Repito: o principal culpado – não José Roquette, não Dias da Cunha, não Filipe Soares Franco, mas sim o próprio José Eduardo Bettencourt.

O processo eleitoral foi mal gerido, sim. As eleições caíram em cima da nova época – já não havia tempo para mudar tudo e começar de novo. Escudado nessa ideia, porém, Bettencourt não mudou nada. Tinha uma oportunidade de ouro: podia ter contratado um treinador com um mínimo de condições e anunciado que se iriam viver novos tempos, com nova filosofia (e que, portanto, esta época seria de transição).

Não o fez. Manteve em absoluto a filosofia que já tão maus resultados dera – e, afinal, a época está a ser transição na mesma, mas para fora do lote dos clubes grandes. Isto em cinco meses apenas. Nem Jorge Gonçalves, nem Sousa Cintra (nem sequer, antes deles, João Rocha ou Amado de Freitas): ninguém fora tão longe. Ninguém conseguira antes excluir tão clara e rapidamente o Sporting da disputa com o FC Porto e o Benfica.

Senhor presidente, pede-lho um ignorante (eu, um tipo que até para preencher o IRS precisa de ajuda e que, portanto, não percebe nada de gestão nem de acções nem de valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis): tenha a coragem de dizer aos sócios do Sporting que o verdadeiro lugar deste clube centenário, para si, é entre os candidatos à Liga Europa.

A não ser que o senhor nem sequer o tenha percebido ainda. Não me admira: desde o início que um ignorante como eu, analfabeto em matérias de gestão (mas não em matérias de natureza humana, senhor presidente, não em matérias de natureza humana), vem percebendo muito antes de si o que se vai passar a seguir (basta ir às crónicas que aqui venho publicando desde Maio).

Portanto, diz-lho este ignorante: é esse o caminho em que seguimos. E, entretanto, pede-lhe também: assuma que se enganou neste novo projecto de vida, peça humildemente desculpa e saia de mansinho, que por enquanto ainda o aceitam de volta na banca. E, se não quiser pedir desculpa (que diabo, mesmo que não queira dizer nada), saia na mesma.

Se sair agora, os sportinguistas hão-de esquecer-se de si, mais cedo ou mais tarde. Se não, hão-de recordá-lo como uma espécie de sétima praga do Apocalipse: aquela que finaliza o trabalho – que acaba de vez com o pouco que resta de colheitas e de água, de esperança e de vida. E essa recordação, sim, durará “forever”.


CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 30 de Outubro de 2009

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Todos Nascemos Benfiquistas
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"José Mourinho, O Vencedor",
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