Sábado, 20 de Junho de 2009
publicado por JN em 20/6/09

Cruzámo-nos no hall de entrada das Amoreiras, ao início de uma noite de sábado. Mal nos reconhecíamos. Ele está o dobro, eu outro tanto – e, aliás, quando um homem vai ao centro comercial ao fim de um dia de sábado, a última coisa que pretende é reconhecer alguém. Mas cumprimos o ritual todo: encantámo-nos com a coincidência, debitámos sínteses bio-blibiográficas, trocámos telefones, olhámos para o relógio. Até que eu: “Bom…”. E ele: “Pois, eu também…” Estudei-lhe a mímica: este gajo vai ficar pelo rés-do-chão. “Eu vou para o andar de cima”, arrisquei. E ele: “Eu fico aqui por baixo. Ando à procura de uma trela nova para o meu cão, que faz anos…”

Sim, eu devia ter tido o cuidado de dar-lhe uma explicação: “Vais aparecer numa crónica, pá.” Não tive. E, portanto, não vou dizer agora aqui de quem se trata, a não ser que o seu nome começa com “J” e acaba com “oão Pedro” – e que ele era o sacana mais cool do meu liceu: o gajo mais bonito e mais falinhas mansas da cidade, o homem que eu quis ser toda a vida e o único bom motivo que encontrei até hoje para acreditar na reencarnação. E vê-lo naquele sábado foi uma epifania. Como se me abrissem a porta da prisão após um longo cativeiro. Um tipo que compra presentes de aniversário para o cão não merece a minha inveja. Que diabo: um tipo que tem um cão não merece a minha inveja.

Vejo-os todos os dias, aos donos dos cães de Lisboa, subindo a minha rua, dando a volta, tornando a descer, tornando a subir – e o cãozinho sem fazer cocó. E pergunto-me sempre a mesma coisa: para que serve um cão? Para que serve um bicho fundamentalmente estúpido, tantas vezes agressivo, que cheira mal, que ladra alto, que nos rouba duas horas por dia só por causa do cocó – e que, além de tudo, volta e meia está obstipado, fazendo-nos andar, não duas, mas quatro horas a subir e a descer a rua com um saquinho de plástico na mão? Para que serve um bicho que nos enche a casa de pêlos, que nos rasga a roupa, que nos faz chatearmo-nos com os vizinhos – e que, ainda por cima, está disposto a dar-nos o seu amor incondicional em troca apenas de comida enlatada que qualquer pessoa de bom gosto, francamente, acha demasiado salgada?

Na minha terra, os animais vivem no quintal e têm três finalidades: ou se comem, ou põem ovos, ou ladram aos bandidos. Aqui, o que não faltam são bandidos – e, porém, se um bandido entrar lá em casa, o mais provável é que o cãozinho se finja morto, a ver se não leva um pontapé. Ademais, um cão precisa de preservar-se, por causa da agenda. Às terças, tem veterinário. Às quartas, cabeleireiro. Às quintas, psiquiatra. Esta sexta, por exemplo, vai conhecer as condições do hotel onde ficará instalado em Agosto, enquanto os donos, esses tipos sem coração, forem para o Algarve fazer castelos na areia e comer do bom e do melhor. E no sábado vai ao parque. Ah, isso é que um cão de Lisboa gosta de ir ao parque. Toda aquela relvinha para fazer cocó, agora sem obstipação. Todas aquelas velhinhas para afugentar. Todos aqueles bebés ensaiando os primeiros passos, mesmo a pedir um bóbí com jeito para brincar às bolas de bowling – ah, como um cão de Lisboa é feliz ao sábado de manhã.

Ao sábado de manhã e ao sábado à noite. Porque, entretanto, este sábado vão lá a casa jantar os Fonsecas. E, se há uma coisa de que um cão gosta mais do que do parque, é dos Fonsecas, incluindo a miúda que tem medo de cães, o miúdo que está quase a aprender a andar e não tarda já pode brincar ao bowling – e, sobretudo, o pai em cujo peito o cãozinho pode cravar as garras à vontade e a mãe cujas mãos o bicho pode passar o jantar a lamber, enquanto a dona o vai repreendendo, a sorrir: “Ó, meu maroto… Isso não se faz!” (E depois, em direcção à Paula: “Não te sujou, pois não? Coitado, não faz por mal…” E depois ainda, para a mesa toda: “Este cão é um amor. Gostava de aprender tricô para poder tricotar-lhe uma camisolinha…”).

Foi para um bicho destes que João Pedro foi às Amoreiras comprar uma coleira. Daquelas extensíveis, permitindo ao cão andar livremente num raio de cinco metros, cravando as garras nos vizinhos. Estive para propor-lhe: “Olha, eu poupava o dinheiro. Mantinha a coleira antiga e, entretanto, levava eu próprio um pau para bater nos vizinhos, que faz o mesmo efeito.” Não disse nada. O João Pedro é dono de um cão. Já tem o seu castigo. Como qualquer outro dono de cão de Lisboa, deve estar cada vez mais parecido com o seu bicho – e, ainda por cima, convencido de que é o bicho que está cada vez mais parecido com ele.


Crónica ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 20 de Junho de 2009.

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Sábado, 13 de Junho de 2009
publicado por JN em 13/6/09

Uma coisa que sempre me incentivou a continuar a fumar foram as sugestões para que deixasse de fumar. Eu ouvia: “Mas como é possível tu continuares a chupar essa porcaria, se sabes que ela está a dar cabo de ti?” – e só me apetecia fumar mais ainda. É duro receber liçõezinhas de gente ignorante – e quem ache que temos todos a mesma psique, todos o mesmo grau de inclinação para a neurose e todos a mesma facilidade em escapar aos seus placebos é um ignorante. De resto, e tendo tantas vezes invejado a ignorância, que nos põe a salvo de muita coisa, nunca invejei esta gente em particular. Pessoas nervosas, como o são os fumadores, podem estragar tudo com os nervos – mas, por outro lado, gozam os sucessos com muito maior alegria e muito menor cinismo do que os ditos tranquilos, que tanto não sabem o que é a tristeza como o que é a felicidade.

Sempre fui, parece-me, um fumador razoavelmente decente. Fumava um maço por dia (Davidoff Gold, nos últimos anos). Mas tinha de voar durante doze horas e nem por isso precisava de mastigar pastilhas de nicotina. Tinha um jantar num restaurante no smoking e ia na mesma – e, aliás, quando me via sair para fumar, havia sempre alguém mais distante que me perguntava, com ou sem liçãozinha: “Tu fumas?” De forma que, não me sentindo sujo ou mal-cheiroso, precisava de um argumento forte para parar. E esse argumento tinha de ser a longevidade. Não me chegava falarem-me, por exemplo, da recuperação do cheiro. Eu vivo no Bairro Alto, onde toda a gente decidiu entretanto ter cão – o último sentido de que preciso é o cheiro. O mesmo, mais ou menos, com o paladar. À mesa, sou pouco menos do que um sensualista – o penúltimo sentido de que preciso é o gosto.

De forma que há já algum tempo que tinha decidido acabar com isto aos 35 anos, que me parece ser mais ou menos a idade em que hoje em dia se chega à vida adulta – e em que se deve começar a pensar na sua preservação. A não ser que ficasse farto de fumar, como muitos ex-fumadores me dizem que um dia ficaram. Infelizmente, não fiquei: continuei a apreciar o cigarro até ao fim, fumando por gosto metade do meu maço (embora outro tanto por rotina). Agora, com a palavra “enfisema” ressoando na bruma, junta-se a urgência à determinação. Assim como assim, em alguma altura haveria de ser preciso reduzir o desejo (que é, de todas, a principal condição para uma vida equilibrada e longa). E, portanto, eis-me aqui: penso de nicotina no braço, pastilhas de mentol no bolso, mau feitio prontinho a explodir. Partam-me a cabeça se vacilar. Entretanto, e se quiserem ajudar-me, atendam os telefones.

Mas saibam, em qualquer caso, que é com mágoa que me despeço deste companheiro. Comecei a fumar por necessidade: tinha 18 anos, acabara de chegar a Lisboa e precisava urgentemente de um adereço atrás do qual esconder a timidez. Entretanto, porém, fiz desse adereço um amigo. Um amigo que me comia por dentro, sim – mas, por outro lado, são sempre assim os amigos. Um amigo que esteve comigo quando me fiz jornalista, que esteve comigo quando escrevi alguns livros e que continuou a estar comigo quando finalmente percebi que nem uma coisa nem outra me livrariam da morte. Um amigo que me viu casar, descasar e tornar a casar. Um amigo que leu ao meu lado o Balzac e o García Márquez, que viajou ao meu lado por cinco continentes, que foi comigo ao cinema e ao teatro e à música. Um amigo com que me comovi e com que me enojei. Com que me defendi nos debates mais tensos e com que selei os meus melhores discursos. Que fumei para conseguir tolerar as filas de trânsito e que voltei a fumar para celebrar as vitórias do Sporting no campeonato.

Ao longo destes 17 anos, tantos quantos tenho de Lisboa, o cigarro foi sempre melhor do que um psiquiatra – e tantas vezes, aliás, melhor do que uma mulher. Sem ele, eu não teria conseguido viver como vivi até hoje. Não sei se vivi bem ou mal: sei que não teria conseguido viver assim sem o cigarro – e não sei, sinceramente, como vou conseguir viver a partir de agora sem ele. Tanto quanto me diz respeito, o cigarro fazer tão mal é a mais inequívoca prova de que não há Deus. E desde já deixo aqui registado o meu protesto se, não morrendo de cancro no pulmão ou na garganta, eu morrer jovem na mesma, em resultado de outra coisa qualquer. Não só não haverá Deus como, indubitavelmente, o verdadeiro criador do universo será o Diabo.

Sim, é verdade: esta crónica não me saiu com a chama das das últimas semanas. Mas esperavam o quê? Deixei de fumar esta manhã.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 13 de Juho de 2009

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Sábado, 6 de Junho de 2009
publicado por JN em 6/6/09

Das muitas conversas a que eu gostava de ter um dia assistido, aquela durante a qual Ana Malhoa decidiu esforçar-se por ficar “mais sexy” é provavelmente a que mais me custa ter perdido. Sim, eu gostava de ter estado na Sala Oval no dia em que Truman pegou no telefone e ordenou: “Vamos a isso, general, uma em Hiroshima e outra em Nagasaki, depois diga qualquer coisa sobre como correu.” Sim, eu gostava de ter estado na prisão de Antenas quando Sócrates (o autêntico, não este) olhou para a garrafa e suspirou, com um esgar de repulsa: “Essa zurrapa não bebo eu, que me dá cabo dos intestinos – prefiro morrer pela vida justa e a bem da Pólis.” Sim, eu gostava de ter estado na Capela Sistina no momento em que Júlio II a espreitou pela primeira vez e exclamou: “Que diabo é isto, senhor Buonarroti, está ali um homem nu! ‘Diabo’, não, caramba... Cruz credo, ‘caramba’ também não – acudi-me, Senhor, que este pintor maluco até disléxico me deixou!”

E, no entanto, agora que percorro os quiosques de Lisboa e não encontro outra coisa senão Ana Malhoa pousando para a Playboy, Ana Malhoa dando entrevistas sobre o facto de ter pousado para a Playboy e Ana Malhoa parecendo ameaçar-nos de que, se voltamos a esquecer-nos dela, pousa para a Playboy outra vez – agora, mais do que qualquer outra conversa, eu gostava de ter assistido àquela que mudou a vida da miúda. Assim, só posso especular. Mas, de qualquer maneira, é possível reconstituir alguma coisa. Primeiro: o interlocutor foi de certeza o pai, José Malhoa (não o autêntico, este), também dado a cantorias – e igualmente adepto das medidas drásticas, como provam a sua evolução de baladas inofensivas como “Cara de cigana, doce apaixonada…” para marchas épicas como “Aperta, aperta com ela!” a partir do momento em que percebeu que o que lhe faltava era um nadinha de brejeirice. Segundo: essa conversa não ocorreu apenas uma vez – tem ocorrido repetidamente, de cinco em cinco anos, ou mesmo de dois em dois, consoante o tempo que as revistas “da especialidade” levam a passar de um protagonista a outro.

Resultado: esta mulher de 29 anos que o silicone e o botox e as tatuagens e os músculos transformaram numa mulher de 48 anos a fazer um esforço por parecer que tem 43. É como se, perante a suspeita de que precisava de tomar uma aspirina para ficar mais sexy, Ana Malhoa tivesse tomado de imediato uma caixa inteira – e, perante a notícia subsequente de que agora, se calhar, já ia bem mais uma caixinha, tivesse entrado na farmácia e, qual monstro das aspirinas, engolido duas prateleiras de uma vez só. Contas feitas, o seu ensaio fotográfico para a Playboy é um pequeno freak show. E preocupa-me o que será dela agora. Se vivesse no Senegal, e sendo cantora, talvez arranjasse emprego numa embaixada. Por aqui, e tratando-se este de um país que (valha-nos isso) gosta de docinhos como Diana Chaves ou Mariana Monteiro, com as suas barriguinhas imperfeitas e os seus delicados sulquinhos no rosto, não lhe encontro outra alternativa senão o varão. Assim como assim, e de acordo com o que já todos sabemos, como cantora é que não vai lá – e a imortalidade oferecida pelo estatuto de capa da Playboy, pelo andar da carruagem, já não será mais o que um dia foi.

Mas é curioso conferir, em todo o caso, o que traz uma cachopa da TV para miúdos até aqui em pouco mais de dez anos. Quer dizer: aos 16 anos, Ana Malhoa era linda; aos 18, e tendo-se a cobiça tornado oficialmente legal, era sexy; aos 20, e como Herman José já nos havia destravado a língua a todos, era boa. Tanto quanto consigo lembrar-me, tratava-se de um recorde nacional: nenhuma outra portuguesa conseguira colocar o seu nome em tantas categorias do desejo público em apenas duas décadas de vida. Problema: Ana Malhoa queria ser cantora – e de repente deu por si a vender muito menos discos do que esperava, apesar da elegância de versos como “Faz o que quiseres de mim/ Deixa a tua marca no meu corpo/ Dá-me tudo que tu tens para dar/ Até ao fim.” Resultado: decidiu virar “ainda mais linda”, “ainda mais sexy” e “ainda mais boa”. E, na impossibilidade de explicar-lhe que “menos é mais”, máxima que claramente não chegaria a perceber, alguém devia agora dizer-lhe que a sensualidade é precisamente aquilo que se adivinha sem se ver. Porque aquela rapariga vai rebentar. E eu já não lhe dou muito tempo: basta que, daqui a dois ou três anos, chegue à conclusão de que ainda não é gira o suficiente – e de que, agora sim, chegou a altura de ficar definitivamente sexy.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 6 de Junho de 2009

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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