Sábado, 30 de Maio de 2009
publicado por JN em 30/5/09

No outro dia deu-me saudades do jornalismo de investigação, actividade que pratiquei com especial fervor nos meus tempos de, hum, Washington DC – e, ao ler sobre os dois novos canais pornográficos a arrancar em breve na Zon TV Cabo, um dos quais com esse Santo Graal da molícia que são os “conteúdos nacionais”, decidi ir investigar. Não agradeçam: vida de jornalista é assim – há sacrifícios que temos de fazer pelos nossos leitores. De forma que peguei no comando da box, passei o browser para o “Videoclube”, apontei ao separador “Adultos” e mergulhei no maravilhoso mundo da pornografia portuguesa.

Não me entendam mal o tom: isto já é defeito profissional. Na verdade, não tenho nada contra a pornografia. Ao contrário de D.H. Lawrence, eu… Pausa. Já me viram o calibre desta frase: “Ao contrário de D.H. Lawrence, eu…”? Pois é apenas uma das muitas refutações épicas que tenho preparadas para as próximas semanas. “Ao contrário de Balzac, eu…”, “Ao contrário de George Steiner, eu…”, “Ao contrário da taróloga Maya, eu…” – não percam, todos os sábados, aqui na vossa NS’.

Perdi-me. Ah, sim, a citaçãozinha. Pois dizia D.H. Lawrence que a pornografia é “a tentativa de insultar o sexo” – e eu não estou de acordo. A pornografia é, antes, a aceitação da desesperança sem cair no desespero, atitude que sobre todas as outras me parece adequada aos tempos. Ou isso ou uma provocação. Ou outra coisa ainda. Não há muitas semanas, dei por mim a oferecer uma “Playboy” ao meu pai – e a surpresa (o choque) da minha irmã produziu em mim um efeito infinitamente menor do que a ternura do sorriso malicioso dele, encantando por termos erguido uma nova ponte entre os nossos continentes.

Adiante: fui, portanto, à procura do porno luso. E a minha primeira descoberta ocorreu ainda nem tinha escolhido o filme: todos os menus da minha box tratavam o espectador por tu (“Não percas este excitante filme”, “Vais conhecer as universitárias mais malucas de Lisboa”), parecendo indicar que são os adolescentes os principais consumidores do género; por outro lado, os filmes continuavam todos na secção “Adultos”, indicando claramente que são os paizinhos quem se chega à frente com a grana. Lembrei-me daquela “Playboy” e dos três euros e meio que o meu pai fica a dever-me. E perguntei-me se ainda faria sentido o aforismo sobre a desesperança e o desespero em que tão aturadamente viera trabalhando. Provavelmente, “esperança” e “expectativa” conjugar-se-iam em gradação melhor.

Bom, isto para dizer o quê? Para dizer que, tanto quanto me foi dado observar, não há pornografia como a portuguesa. As mulheres são todas (como dizê-lo) prostitutas de rua. Os homens são todos (a ver se me expresso bem) cravadores de cigarros do Cais do Sodré. E as produções, incluindo guarda-roupa, décors, maquilhagem e realização, estão todas mais ou menos ao nível da reportagem videográfica da segunda lua de mel do meu tio Tó, com a diferença de que o meu tio Tó foi sargento do Exército e ainda hoje, aos sessenta, não lhe tremem as mãos na hora de empunhar a câmara (mesmo tratando-se de Porto de Galinhas, onde sambam mulatas).

“Uma das maiores produções portugueses”, dizia-se em todas as sinopses. E eu fiquei a pensar como serão as produções mais pequenas – e como serão muitos dos filmes portugueses (todos os filmes portugueses) com que a produtora Hot-Gold quer preencher parte das grelhas dos novos canais. É que eu, tal como vós, também recebo no email, uma vez por outra, um vídeo maroto. É que eu, tal como vós, também recebo no email, uma vez por outra, um vídeo maroto com grupos de amigos americanos, ingleses ou brasileiros fazendo sexo para as câmaras. Ou muito me engano, ou também isso este tempo é: um tempo em que já nem praticar sexo em público nos constrange. E o facto é que qualquer vídeo amador americano, inglês ou brasileiro está a anos-luz das “maiores produções portuguesas”. Anos-luz à frente, isto é. Em qualidade. Até nas próprias, portanto, técnicas de cópula (entre outras).

Se alguma coisa pode espicaçar a curiosidade de um português na possibilidade de ver “pornografia portuguesa”, é a hipotese de encontrar a filha do senhor Alfredo da retrosaria prostrada sobre o ventre do cunhado da dona Lurdes do quarto esquerdo. É a familiaridade, o que pode estimular-nos: imaginar a rapariga da porta ao lado, o rapaz do prédio em frente – e talvez, suponho, imaginarmo-nos a nós com eles. E vai ser triste, para muita gente, descobrir que a Andreia, afinal, tem borbulhas na zona púbica e dois dentes a menos – e que o Cajó, aliás, põe os óculos na cabeça enquanto a possui.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 30 de Maio de 2009

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Sábado, 23 de Maio de 2009
publicado por JN em 23/5/09

Se me pedissem para eleger os melhores momentos de “Cenas da Vida Real: Sobre 4 Rodas”, documentário sobre tuning emitido aqui há uns dias na RTP2, eu não saberia por onde começar. Talvez por aquele instante em que, na garagem onde se kitam carros na Aldeia do Castelo, Vila Real, um dos durões afaga um cão e, perante a incredulidade dos companheiros, explica: “Então? É um ser humano como nós!” Talvez por aquele em que, já durante a noite, um desses durões vai ao bar da vila e chama uma rapariga mais recalcitrante para vir cá fora ver o seu carro recém-kitado, ficando depois ali a olhar para ela e a ouvir os seus comentários: “Oh, isto não é nada! Quer dizer… Tens luzinhas lá dentro? Ah, tens, tens… Hum… Tá giro, tá…” Talvez por aquele em que, de volta à garagem, e quando os amigos acabam de encetar uma conversa de circunstância sobre o facto de os ailerons, as jantes e os néons serem muito mais baratos em Espanha, outro durão mergulha numa longa dissertação sobre as diferenças entre o custo de vida em Portugal e em Espanha, vomitando estatísticas sobre micro e macro-economia, e, perante novo instante de incredulidade, se vira para o rapaz ao lado: “Que é que foi, chavalo? Quando tiveres 30 anos vais perceber que o Telejornal é bué da fixe...” Ou mesmo por aquele em que três ou quatro desses durões estão a fumar no quintal enquanto falam de “centralinas” e de “hidráulicos”, já de noite, e a certa altura um deles, precisamente aquele que já antes tinha dado sinais de mais espessura, se lembra de que a câmara está ali, olha para ela e faz um trejeito de justificação: “Conversas de quintal…” – e logo a seguir volta às “centralinas” e aos “hidráulicos”, que apesar de tudo ainda lhe é mais cara a pertença do que a liberdade de espírito.

Foi uma das melhores coisas que vi na televisão nos últimos meses. Trazia uma deliciosa aldeia de Trás-Os-Montes, trazia o delicioso sotaque de Trás-Os-Montes – e trazia uma série de durões de Trás-Os-Montes que, se não eram deliciosos, eram pelo menos ternurentos. Ternurentos nos seus subtis gestos de afecto uns para com os outros, ternurentos na forma como se reconhecem (como disse um deles) “insignificantes nesta natureza toda” – e ternurentos, claro, no seu confessado objectivo de atenuar vagamente a sua insignificância conseguindo kitar um carro como nunca ninguém kitou antes. Problema: nada nas suas vidas vai para além desse objectivo. Há uma imagem em que amanhece na Aldeia do Castelo e eles estão no campo a empilhar três fardos. Há outra em que anoitece na Aldeia do Castelo e eles estão a tocar rapidamente bombo num desfile de Carnaval. Tudo o resto, porém, é aquilo: kitar o carro, meter um CD de música tuning no leitor, ligar as colunas e os néons e depois ir passear a “discoteca ambulante” (como disse um dos adultos da aldeia, um tanto contrariado) às ruas vila. E, se vos parece que estou a falar de miúdos de 14, 15 ou 16 anos, desenganem-se já. Miúdos de 16 anos não conduzem. Estou a falar de homens de 20, 25, 30, 35 anos. Estou a falar de homens de 40 anos, até. Homens que recebem os amigos no quarto de cama para os ajudarem a desenhar as letras, a recortar os desenhos e a misturar as cores com que enfeitarão o carro.

Preocupado com as corridas ilegais na Ponte Vasco da Gama, eu? Não: o tuning, como aprendi em “Sobre 4 Rodas”, não é racing. Preocupa-me, sim, esta geração. Esta geração de homens rurais que nos dão uma ideia de como as referências tradicionais da ruralidade portuguesa (os homens mais velhos, as colectividades, a escola) faliram, lançando à vida madraços para quem enfiar quatro ou cinco mil euros de decoração pirosa num Opel Corsa com valor de mercado de quinhentos é proclamado “investir”. Esta geração de homens rurais iguaizinhos aos homens urbanos da mesma idade que, nas noites de sexta-feira e de sábado, recebem os amigos no quarto de cama para jogar PlayStation ou (agora parece que é mais cool) póquer. E indigna-me que tenha sido precisamente a cultura pop a trazê-los para aqui. Tempos houve em que a cultura pop era o jazz, com a sua ginga e a sua sensualidade. Tempos houve em que a cultura pop era o rock, com as suas causas e a sua poesia. Tempos houve em que a cultura pop era o cinema, com a sua estética e a sua transversalidade. Hoje, aparentemente, é isto. Esta ausência absoluta de um caminho que não o de conseguir deslocar dobradiças de forma a que a porta da frente abra para cima e não para o lado. É isso não é um problema estético: é ético mesmo. O que é que se pode esperar destes rapazes?


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 23 de Maio de 2009

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Sexta-feira, 22 de Maio de 2009
publicado por JN em 22/5/09

E, pronto, está confirmado: afinal, não vai haver eleições no Sporting. Meses e meses de discussão foram insuficientes para produzir dois candidatos pelo menos vagamente equiparáveis. Do ponto de vista democrático, nada a assinalar: comparados com as cooptações, cripto-cooptações e meta-cooptações de Pedro Santana Lopes, José Roquette, Dias da Cunha e Filipe Soares Franco, os moldes em que ocorre a chegada de José Eduardo Bettencourt à presidência do Sporting são um bálsamo de frescura. Mas é pena, ainda assim, que nenhuma possibilidade seja dada aos sócios de verdadeiramente escolherem entre dois projectos distintos. Desta maneira, não se trata propriamente de eleições – e muito jeito dará ao próprio Bettencourt, se Dias Ferreira efectivamente não avançar (como quase de certeza não avançará), que Paulo Cristóvão continue na corrida, a ver se a coisa ao menos se assemelha a uma disputa.

José Eduardo Bettencourt será, pois. O homem do regime (um regime com 15 anos, note-se), o homem que introduziu o termo “custo zero” no universo do Sporting, o homem que vendeu Quaresma e Cristiano Ronaldo antes do tempo. Mas também o homem que recuperou José Manuel Torcato e Manolo Vidal, o homem que saiu ao encontro de uma Juve Leo enfurecida, o homem que contratou Jardel. O homem que fez do Sporting campeão nacional. E sobretudo o homem que, não só armou uma cilada a Pedro Souto, como armou uma cilada ao próprio Filipe Soares Franco. De ambos ouviu Bettencourt um convite a uma candidatura em parceria – e a ambos respondeu Bettencourt que nem pensar, que tinha mais o que fazer, que isto do futebol era só uma perninha, que tinha cinco filhos, que o Santander é que era. Até que decidiu avançar. Correndo o risco, inclusive, de passar uma série de anos a ganhar metade do que ganhava (embora  já tenha garantido, para mais tarde, um convite do BES).

Por mim, aposto tudo naquela cilada a Filipe Soares Franco. Na minha visão esperançada, é ela que lança luz sobre todo o percurso de Bettencourt ao longo dos últimos sete anos. Bettencourt entrou. Bettencourt investiu. Bettencourt foi campeão. Bettencourt vendeu as estrelas. Bettencourt instaurou o “custo zero”. Bettencourt saiu. Bettecourt recusou regressar com nomes mais fortes do que o dele. Bettencourt volta, enfim, como pose de messias. Vai ser o segundo presidente remunerado da nossa história e o primeiro remunerado a sério. Por mim, perfeito: o presidente de uma SAD deve ser remunerado – e, aliás, bem remunerado (com bem mais do que os € 400 mil/ano de que se fala na imprensa de ontem). Mas, mais do que isso, será o nosso primeiro presidente produzido em laboratório. No seu próprio laboratório, aliás: sete anos de aturada e solitária determinação a construir o mito, a fundar necessidades, a afastar-se na bruma e a regressar qual Dom Sebastião. É assim que, para já, eu quero vê-lo. E, vendo-o assim, até a continuação de Paulo Bento parece de repente uma aposta tolerável. Sim, Alex Ferguson também passou uma série de anos sem ganhar no Manchester – e, sim, talvez ao fim de quatro anos Paulo Bento já tenha aprendido a relacionar-se com os jogadores criativos.

Conta-quilómetros a zero, portanto. Viva José Eduardo Bettencourt. Viva Paulo Bento. Viva o Sporting. Mas estejamos atentos. A partir daqui, e em caso de novo fracasso, o famigerado “regime” não estará apenas morto: já federá a podre.


CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). 22 de Maio de 2009

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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