Há alguma coisa em Marta Crawford que me atrai – e há algo que, inevitavelmente, me repele também. O que me atrai é o seu profissionalismo como comunicadora, a sua experiência como terapeuta, a sua imensa sabedoria sobre cada um dos pormenores da sexualidade, incluindo o diâmetro exacto da mais pequena região erógena do corpo humano, a cronometragem ideal das diferentes fases dos preliminares perfeitos e todas as pedrinhas que rodeiam esse mapa do tesouro que é o caminho para o chamado ponto G. E, curiosamente, o que me repele nela é a mesmíssima coisa.
Vejo Marta Crawford sozinha no estúdio da TVI24, dialogando pacientemente com senhoras de 65 anos que lhe telefonam para confessar que se masturbam todos os dias e rapazes provocadores que a gozam com histórias em que sodomizam rapariguinhas do liceu, e rendo-me às evidências da sua solidez técnica e do seu à-vontade coloquial. Ouço-a descrever como se deve fazer sexo anal, do clister prévio para desentupir o cólon descendente à lenta introdução da glande, incluindo o despiste da existência de problemas hemorroidais, a estimulação preliminar do esfíncter com um dedo (e depois dois), a cuidadosa unção do orifício com o lubrificante escolhido e a discussão com a parceira (ou o parceiro, que sei eu?) sobre o momento em que finalmente se encontra tudo a postos para a investida, e já nem com citrato de sildenafila ia onde quer que fosse.
A primeira limitação é de ordem prática. Até para o mais simples coito na velhinha pose de missionário Marta Crawford parece ter uma check list. Só decorar aquilo tudo já seria o cabo dos trabalhos – e depois ainda era preciso ir dando baixa dos passos cumpridos, como quem vai fazendo vistos na lista do supermercado. Da primeira vez que fiz sexo depois de um programa de Marta Crawford, parecia que a tinha sobre o meu ombro, sussurrando: “Agora faz assim. Isso. Agora faz assado. Com calma. Muito bem. Agora, vá, o truque que eu te ensinei. Sem pressas. Boa, miúdo! Agora o abracinho, agora o abracinho… Excelente!” Ao fim de cinco minutos estava com os nervos em franja – e, se não desatei ao pontapé à mobília, foi porque me encontrava descalço, que apesar de tudo ainda há regras que cumpro por experiência própria.
E, no entanto, há outra limitação ainda maior: o grafismo. Ou o excesso de informação. Vejo um programa de Marta Crawford e deixa de se me escapar o que quer que seja sobre uma cópula, um cunilingus, um onanismozinho que seja. Ora, talvez o bom sexo possa dispensar-se da transgressão. Cada vez acredito mais nisso: pode efectivamente haver bom sexo sem pecado. Mas não pode, nunca pôde nem nunca poderá, haver bom sexo sem mistério. Se muitos casais perdem o desejo ao fim de alguns anos, é porque o mistério desapareceu. Se outros tantos o mantêm latejante ao fim de várias décadas, é porque encontraram uma forma de reinventar o mistério. Feitas as contas, tem de haver sempre alguma espontaneidade – até alguma pressa, alguma urgência. E o melhor, apesar de tudo, é que o sexo seja muitas vezes bom e todas as restantes apenas assim-assim. No exacto instante em que for perfeito perderá dois terços do interesse, se não o interesse todo. Da próxima já não poderá ser melhor.
É claro: quatro quintos dos portugueses discordarão aberta e ostensivamente disto. Nos estudos sociológicos e nas conversas de café, nas telenovelas e nas reportagens “do social”, não encontro outra coisa senão atletas sexuais – e nenhum atleta sexual alguma vez poderá ser surpreendido a aceitar que a sua última sessão foi apenas assim-assim (e muito menos que a próxima poderá ser assim-assim também). Pois a eles, mais do que a quaisquer outros, assentam que nem uma luva os programas da doutora Crawford e mais a sua fleuma, as suas desmistificações cavalgantes e a sua maior-das-naturalidades. Se para alguma coisa servem os programas de Marta Crawford, é precisamente para acalmar os nervos àqueles a quem o sexo mete tanto medo que em nenhum instante conseguem fugir a recordar as façanhas da pós-adolescência.
Quanto ao resto, interessa-me muito pouco a possibilidade de discutir sexo com os meus pais, em frente à televisão, como se tudo não passasse da fricção de dois pedaços de carne recheados de terminações nervosas cujas vibrações são comunicadas ao cérebro através do sistema nervoso central, provocando enfim o orgasmo. Eu ainda acho que um orgasmo é mais do que isso – e a última coisa que me apetece saber é se os meus pais o sabem também.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 28 de Março de 2009
Apreciador da companhia masculina, universo que sobre todos os outros tem a vantagem de não julgar cada um dos meus vícios de comportamento como defeitos de carácter (e, aliás, expressões de machismo), sou confrontado com cada vez mais convites para jogar póquer. Tenho rejeitado. Se alguma coisa a vida me ensinou, foi que, no final, a casa ganha sempre – e, para além disso, de cada vez que me apetece passar meia dúzia de horas no meio de três ou quatro tipos ansiosos por falar alto, beber cerveja e arrotar em público, acabo por preferir um churrasco pela tarde dentro ou um jogo de golfe pela manhã fora, actividades que apesar de tudo me remetem para outro lugar que não o mesmo em que se desenrola a tantas vezes insuportável rotina urbana.
Ouço alguns dos meus amigos falarem com paixão das suas “noites de póquer” e lembro-me invariavelmente das minhas próprias noites a jogar Match Day ou Grand Prix, vividas ao longo de uma adolescência excessivamente comprida, que de resto cheirou de mais a chulé e de menos a Chanel Nº 5. Não há volta a dar-lhe: o póquer, para mim, cheira a chulé – e o diabo seja cego, surdo e mudo se eu não hei-de ainda voltar a convencer os meus amigos recém-convertidos ao jogo das virtudes de um acamaradamento mais telúrico e vigoroso.
Por outro lado, poucas outras modas me parecem providas de tantas possibilidades metafóricas para o tempo que vivemos como o póquer. Recuperado pela televisão, que de conseguiu identificar a existência de um espaço nas audiências para não-espectáculos cujo ponto mais alto é o momento em que um gordo barbudo, de boné e óculos escuros, vira os cantos a duas cartinhas enquanto as esconde dos adversários com a mão direita em concha, o póquer vai adquirindo cada vez mais adeptos entre os da minha geração – e sobretudo entre os das gerações a seguir à minha. De Norte a Sul, do Ocidente ao Oriente, da velhas economias falidas às chamadas “potências emergentes” – por todo o lado as transmissões televisivas do jogo dos full houses e dos straight flushes vai alternando nas conversas, nos programas de sexta-feira à noite e nos fóruns de Internet com relatos apaixonados sobre a disputa do jogo dos full houses e dos straight flushes entre amigos.
E eu, por muito que tente, não consigo deixar de ver aí uma consequência mais ou menos lógica para esta esquizofrenia em que nós tanto nos esforçámos por transformar as sociedades ditas contemporâneas. Afinal, o póquer tem tudo. Insaciável, o homem do século XXI viciou-se na adrenalina, correndo em busca de doses maciças de emoção – e poucos outros jogos dispõem do abismo do póquer, onde uma simples má jogada pode levar à destruição instantânea de um património acumulado durante anos (ou, pior ainda, de um património fictício, adquirido a crédito). Cínico, o homem do século XXI habituou-se a ver a vida como uma brincadeira – e poucos outros jogos dispõem do potencial de bluff à disposição do póquer. Ansioso, o homem do século XXI habituou-se a procurar o dinheiro fácil – e poucos outros jogos proporcionam, neste momento, uma tão clara oportunidade de enriquecer sem fazer nenhum.
Além disso, há a competitividade. Nunca, provavelmente, o homem foi tão competitivo como hoje – e, feitas todas as contas às suas muitas regras, possibilidades e formatos (incluindo o do Texas hold’em, catapultado para o lugar de variante mais bem-sucedida pela existência de “cartas comunitárias”, bem comum à disposição apenas do mais esperto), nenhum outro jogo oferece tão cabalmente a hipótese de esmagar o homem em frente como o póquer, de onde a qualquer instante se pode sair humilhado e na miséria, prontinho para uma vida de crime, agiotagem e nenhum outro horizonte senão o da mão perfeita.
No póquer, como na vida contemporânea, é assim mesmo: há sempre alguém a enriquecer depressa – e por cada homem que enriquece depressa há um trouxa que entrega os pontos. Melhor metáfora para o século XXI, sinceramente, só talvez o sistema bancário, dotado da vantagem suplementar de se poder alegar esquecimento em relação a decisões tomadas e a assinaturas redigidas – e, aliás, escapar impune com isso. No póquer, de facto, ainda não dá para dizer “não me lembro que me comprometi”, “não me lembro que assinei” ou “não me lembro que fiquei a dever”. É essa a sua grande fragilidade – e é isso que o tornará obsoleto quando, enfim, entrarmos noutro século e noutro estágio do desenvolvimento civilizacional. O sistema bancário, esse, há-de continuar incólume o seu caminho.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 7 de Março de 2009
Sejamos claros: não é Carlos Queiroz que não quer Liedson a jogar na selecção portuguesa – é Liedson que não quer jogar na selecção portuguesa. Ora, nós já abdicámos do primeiro princípio inerente a uma selecção, que era o de que apenas devia jogar nela quem efectivamente “devia” jogar nela. Se abdicamos do segundo, que é o de jogar numa selecção apenas quem “quer verdadeiramente” jogar nela, restará o quê?
Questionado há pouco mais de um ano sobre a eventualidade de actuar por Portugal, Liedson foi claro: “O meu maior sonho é a selecção canarinha.” Entretanto, passaram-se uns meses, Dunga não o convocou e Liedson inflectiu o discurso. Mas tudo nele é ainda encolher de ombros e trejeito facial. “Não vou deixar de ser brasileiro nunca. Amo meu país”, explicou há semanas “Só que, na minha posição, a concorrência no Escrete é muito grande. E, como estão pintando algumas coisas para a selecção daqui, por que não? Da minha parte não há problema algum.”
Por mim, já sabem: nunca Deco ou Pepe deveriam ter jogado na selecção portuguesa. As selecções existem precisamente para fazer aquilo que os clubes já não podem fazer: lembrar à famigerada “globalização” que, apesar de tudo, ainda existem identidades. Destruir esse património apenas porque dois rapazes queriam muito ser internacionais portugueses já foi mau. Enterrá-lo de vez porque um terceiro rapaz até aceita jogar na selecção portuguesa, desde que isso não lhe causa grandes transtornos (e sobretudo porque não pode jogar na selecção brasileira), já não é apenas mau: é ridículo e é deprimente.
Que Portugal não tem pontas-de-lança, já todos o sabemos. Que Liedson daria um jeitão na frente de ataque, também. Mas uma selecção é uma representação de um povo e de um país. Ora, este povo e este país não têm pontas-de-lança – e, se não têm pontas-de-lança, é assim mesmo que devem ser representados: sem pontas-de-lança. Uma selecção não é um clube. Uma selecção é a antítese de um clube. E para nada serve uma selecção se não for exactamente a antítese de um clube.
Carlos Queiroz, já se percebeu, terá uma passagem efémera e fracassada pela selecção nacional. Paciência: no seu caso, será apenas mais uma passagem efémera e fracassada por um cargo. Transformar essa passagem efémera e fracassada numa passagem efémera, fracassada e criminosa será o pior que poderá fazer por si próprio e pela sua memória. A convocação de Liedson para a selecção nacional portuguesa significará a extinção definitiva do que ainda resta da selecção nacional portuguesa – e mesmo que, com Liedson, ela conseguisse voltar a emocionar a maioria dos portugueses. Não vá tão longe o relativismo pós-moderno – nem tão longe vá a acefalia daqueles que, apressada e ignorantemente, decretam a morte do estado-nação.
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 6 de Março de 2009