Deste futebol. O meu futebol é o futebol dos golos de bandeira e dos penáltis roubados, dos copos pela noite dentro e das zangas à segunda-feira de manhã. No meu futebol, vive-se a mais delirante euforia e a mais miserável angústia. Vivem-se o ódio e o amor em doses iguais – e, quando alguém nos pergunta se é loucura o que isso é, nós erguemos bem alto o copo, citamos Goethe (não citamos nada) e bebemos a Bruno Paixão. O meu futebol existe porque tudo o mais existe também – e porque em tudo o mais temos de ser sensatos e ponderados, contidos e parcimoniosos, cínicos e conformes. No meu futebol cabem a gritaria, o sentimento de vingança e a matreirice. Por outro lado, não cabem Paulo Bento, Carlos Queiroz ou esta nova moda de usar imagens televisivas para corrigir os erros dos árbitros. No meu futebol cabe Deus, sim – mas também o Deus que cabe no meu futebol ergue bem alto o copo, cita Goethe (Ele, sim, cita Goethe) e bebe a Bruno Paixão. E, nesse instante delicado e sublime, não há nada mais importante do que aquilo. O homem de bom senso jamais cometerá uma loucura de pouca importância.
Escreveu-me Rui Santos, aqui há uns tempos (penso que posso contá-lo – ele escreveu a toda a gente, como se vê pela lista de subscritores que reuniu), a convidar-me para assinar uma petition online em defesa da utilização de câmaras dentro das balizas (julgo que era isto), de forma a garantir a “verdade desportiva” e a defender a “indústria do futebol”. Mandei um abraço, mas pedi escusa. Na verdade, é minha firme convicção de que metade disto começou a morrer no instante em que pela primeira vez se utilizaram as palavras “verdade desportiva” – e que o que restava morreu no dia em que incorporámos essa coisa da “indústria do futebol”. O público debandou das bancadas – e, se ainda não debandou da televisão, foi por falta de alternativas. Afinal de contas, a própria TV está agora conluiada com essa absurda desumanização do jogo a que, à falta de melhor, demos o nome de “indústria”, oferecendo aos órgãos jurisdicionais (é assim que se diz, não é?), a possibilidade castigar um jogador que afinal cavou um penálti e de ilibar um defesa central que afinal não jogou a bola com a mão coisa nenhuma – e de, naturalmente, chamar a isso “repor a justiça”.
Resultado: ter uma discussão sobre futebol tornou-se impossível. Os comentadores explicam-nos o jogo tão explicadinho e as imagens são tão obviamente esclarecedoras, que deixou de haver lugar à dúvida. Ora, quando não há dúvida, já se sabe, também não há convicção. Notem esta particularidade no falar português: se nós vimos o João a dar um pontapé no tio, dizemos “O João deu um pontapé no tio” – mas, se apenas desconfiamos que o João deu um pontapé no tio, o que dizemos é “Tenho a certeza que o João deu um pontapé no tio”. Pois era precisamente isso que nos alimentava: ter a certeza absoluta porque, na verdade, não tínhamos certeza nenhuma. Foi a televisão, zelosa e profissional, que começou a acabar com isso – e foram os ditos órgãos jurisdicionais (espero que seja assim que se diga, porque eu adoro) que acabaram com o resto. Bem gostava eu de dizer agora: “É verdade, sim senhor. O Cardozo atirou-se para o chão.” Pois não posso. Já não podia, aliás. Mas ainda podia dizer: “O Cardozo marcou três golos ontem? Ah, mas, se ele sido castigado por cavar aquele penálti na semana passada, não tinha marcado três golos esta semana!” E agora também já não posso dizer isso.
Hoje em dia, há demasiada justiça no futebol para o meu gosto. Eu preferia quando se tratava de um jogo de homens, uns falíveis e os outros manhosos. Em vez disso, o que temos é este futebol de Paulos Bentos, Carlos Queirozes e autómatos do género. Um futebol de programação, movimentos basculantes e cargas físicas com fins técnico-tácticos – e, se nos pomos a discutir um jogo uns com os outros, damos inevitavelmente por nós a falar na necessidade de procurar o “segundo objectivo”, para o qual “dependemos só de nós”, até porque o mais importante é o “encaixe financeiro”. No meu futebol, ninguém dependia só de si: dependia de si, do adversário, da sorte, da manha – e sobretudo dessa coisa indecifrável e nunca devidamente baptizada que era o beijo do poeta. E eu não sei, sinceramente, onde é que o Rui Santos ainda quer meter mais máquinas. Tanto quanto me diz respeito, isto já é um conto de Clifford Simak – e o pior é que as máquinas não só já se revoltaram, como ainda por cima já tomaram o poder. Primeira medida tomada: o fim da alegria.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 21 de Fevereiro de 2009