Ah, como eu queria agora ser professor... Aturar miúdos chatos, trabalhar a desoras, fazer ginástica com o ordenado – mas nunca, nunca temer pela minha sobrevivência. Discutir o estatuto da carreira, contar os dias para a pré-aposentação, imaginar a ginástica suplementar que um dia terei de fazer com a reforma – mas nunca, nunca temer pela sobrevivência da minha empresa. Aderir a uma greve, abdicar de um dia ou dois de ordenado em prol do bem comum, começar desde já a pensar na ginástica terrível que terei de fazer no fim deste mesmo mês sem aqueles dois dias de ordenado – mas nunca, nunca temer pela sobrevivência da actividade a que decidi dedicar a minha vida.
É mau, ser professor? Tem as suas desvantagens – e, entre elas, a menor não é com certeza a tão pouca importância que tantas vezes as sociedades contemporâneas dão aos seus professores. Dos Estados Unidos à Austrália, do Brasil ao Japão e de França à Alemanha, como ainda recentemente nos mostraram os filmes “A Turma” ou “A Onda” – de todo o lado, tanto quando daqui mesmo, nos chegam exemplos do quanto a classe tem de lutar por um mínimo de atenção dos alunos e por um mínimo de reconhecimento por parte dos pais destes. O que está mal. Porque, se pensarmos bem, não há profissão mais nobre do que a de professor.
Comparado com um professor, um jornalista é pouco mais do que um inútil, destacando os pequenos e os grandes equívocos do quotidiano de uma forma quase lúdica, às vezes mesmo irresponsável. Comparado a um professor, um advogado é pouco mais do que um pária, um vampiro com o hábito de alimentar-se dos desaguisados do dia-a-dia sem qualquer intenção profiláctica (e, aliás, fazendo-se muitas vezes pagar principescamente por isso). Comparado com um professor, um médico salva umas quantas vidas, mas não conseguirá nunca salvar a humanidade. Já os professores são provavelmente a nossa única promessa de um futuro melhor – a única esperança para essa humanidade. Devíamos ter mais respeito por eles.
E porém, havendo professores em situação de trabalho precário, a esmagadora maioria desfruta de condição efectiva. E, havendo professores em escolas privadas de futuro incerto, a esmagadora maioria trabalha para o Estado. Compare-se isso com o momento vivido na economia privada e vira de imediato obsceno que haja centenas de milhar de portugueses dispostos a fechar escolas, bibliotecas e cantinas em defesa do estatuto da sua carreira. Pequenas empresas encerram todos os dias às centenas. Médias empresas encerram todos os dias às dezenas. Grandes empresas fecham todos os dias um pouco por todo o mundo, incluindo em Portugal. Milhões e milhões de pessoas vão perdendo os seus empregos. Milhares e milhares de portugueses também. Famílias à beira da fome, casamentos destruídos, suicídios – há de tudo. Entretanto, uns quantos fecham as cantinas aos miúdos e tomam de assalto as televisões para dizer que aceitam completamente ser avaliados, desde que não sejam nunca alvo de avaliação. Acho obsceno.
E isto sou eu a falar. Eu que sou uma peça de engrenagem – e que bem podia atirar-me amanhã mesmo da ponte sobre o Tejo sem que mundo ficasse mais rico ou mais pobre com isso. Agora tento pôr-me no papel dos donos das pequenas empresas, desesperados porque uma vida inteira de trabalho se lhes escoou entre os dedos sem que eles tivessem sequer tempo de dar por isso, e imagino como olharão para a inexorabilidade deste protesto. Depois tento pôr-me na pele dos presidentes de grandes empresas, desesperados porque uma vida inteira de trabalho se lhes escoa entre os dedos – e, com ela, as vidas de trabalho de centenas de outras pessoas que com eles colaboram há anos – e imagino o que acharão também eles do protesto dos professores. Achá-lo-ão obsceno.
Desculpem-me o moralismo. Mas todos nós temos amigos que pararam de aparecer nos lugares onde nos encontravam porque deixaram de ter dinheiro para o básico, quanto mais para os pequenos prazeres. Todos nós temos amigos que pararam de telefonar porque simplesmente deixaram de ter cabeça para os afectos, quanto mais para a conversa de circunstância. Amigos pobres, amigos ricos e amigos de classe média – todos a deitar contas à vida, alguns deles às suas e às de uma série de outras pessoas. E de certeza que, como eu, muito gostariam agora todos eles de serem professores e de andarem a discutir o estatuto de carreira, seguros de que, melhor ou pior, essa carreira não acabará nunca.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 31 de Janeiro de 2009