No Japão, dá-se o nome de chikan aos homens que apalpam as mulheres no metro. No Peru, chama-se bridgeros aos rapazes que chulam as turistas. Na África do Sul, na Bolívia e de novo no Japão – por todo o lado abundam relatos sobre viajantes solitárias assediadas, agredidas, violadas. E, porém, as mulheres viajam cada vez mais sozinhas. Dizem estudos recentes que já viajam até mais do que os homens – e que, aliás, são melhores viajantes, fazendo compras em vez de passarem tardes a jogar golfe, contactando com a cultura local em vez de ficarem a ver televisão até à hora da farra. Assim à primeira, eu diria que a dicotomia é simplista. Mas a verdade é que os ditos estudos se baseiam não só em inquéritos a turistas, classe por que sempre grassou alguma gabarolice, mas também a industriais hoteleiros, sector que brinca menos em serviço. E, inevitavelmente, o mercado adapta-se. Companhias aéreas, resorts, países inteiros – não há ninguém que não tenha já investido ao menos num site sublinhando as vantagens do seu serviço para mulheres sozinhas. Há hotéis que já só aceitam clientes do sexo feminino. Outros, mais comedidos, que lhes reservam um andar completo. E outros ainda que vão adoptando uma nova decoração, mais atenta aos detalhes e na qual a ergonomia do colchão, o asseio do WC e a qualidade da lima das unhas saem beneficiados em relação ao tamanho da TV, à vista da janela e ao recheio do minibar. É um novo mercado, no fundo – e em tal expansão que os editoriais de certas revistas de viagens já acabam com frases tão lapidares como: “De facto, mais vale só.”
Nem preciso de dizer-vos o que pensa disso este jovem precocemente envelhecido, conservador e cínico, céptico quanto à bondade humana e assustado com qualquer possibilidade de alteração do status quo que resulte em desfavor do como-deve-ser. Basicamente, pensa a mesma coisa que sobre as revistas especializadas no combate ao casamento e sobre as jovens executivas que as lêem nas esplanadas, nos longos Sábados em que saltitam de um brunch com amigos para um chá com amigas e de um jantar com amigos de amigas para uma cama vazia: que as primeiras são sanguessugas da solidão e que as segundas compram tudo o que possa servir de placebo à sua tristeza. No essencial, só usa ditados como “mais vale só do que mal acompanhado” quem nunca teve o privilégio de dar por si bem acompanhado – e que, tragicamente, já desistiu de procurar boa companhia. Não deixa de ser curioso, aliás, que um dos poucos relatos pessoais compilados pela revista que há dias fazia a apologia das viajantes solitárias fosse o de uma executiva deleitada com a memória de um árabe que se oferecera para comprá-la e, acto contínuo, casar-se com ela. No fundo, andamos todos ao mesmo, ainda que nos acreditemos confortáveis sem andar a nada – e não é por os chikan e os bridgeros serem recorrentemente considerados “uns chatos” que não representam, eles próprios, uma pequena oportunidade a que a viajante só não acedeu por vergonha.
Há uns meses, recebi um email da Andreia, que foi minha colega num banco. Está bem: o nome é fictício, a actividade que desempenhámos juntos também. Ora, dizia ela que “olá”, que “há que tempos”, que agora era “viajante incansável”, que escrevia sobre as suas “muitas viagens”, que gostava de publicar as suas “memórias” e que “lololol”. Achei graça – e fui ler. Tinha andado, de facto, por um bocadinho de mundo, a Andreia – inclusive por todos aqueles lugares onde os moderninhos estão agora proibidos de dizer que nunca foram, como Nova Iorque, Bali e (claro) a Patagónia. As crónicas traziam fotos a acompanhar – e em todas Andreia estava sozinha, colhendo flores diante da Governor’s Island ou lendo em frente ao Perito Moreno enquanto, à sua volta, casais namoravam sem se darem conta da estátua ou se atingiam com bolas de neve sem sequer olharem para o glaciar. Os textos eram de uma ingenuidade desconcertante. Não pela ignorância, que a temos todos, mas porque Andreia escrevia como se efectivamente acreditasse que mais nenhum português, ou mesmo mais nenhum ser humano, tivesse alguma vez posto os pés naquelas paragens longínquas, explicando ao pormenor as coisas mais óbvias, contando em delírio os episódios mais banais e descodificando fascinada os costumes mais cliché. Sugeri-lhe que abrisse um blog. Ficou chateada, E, agora que penso nela, tenho de concordar com os novos editores de viagens: “de facto”, mais vale viajar só, com liberdade para ver televisão, do que acompanhado de uma mulher habituada a andar sozinha.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 6 de Dezembro de 2008