Domingo, 28 de Setembro de 2008
publicado por JN em 28/9/08

Desde que há golfe que há apostas – e durante muito tempo ainda amadores e profissionais continuarão seguramente a apostar uns contra os outros ao longo das suas rondas semanais. Nos últimos três/quatro anos, porém, um novo tipo de ‘gambling’ de golfe foi conquistando o seu espaço: as apostas em casas de especialidade, com correctores profissionais e apostadores quase profissionais também. Em Inglaterra, o jogo dos ‘fairways’ já só perde para as corridas de cavalos, as corridas de cães e o futebol. Nos Estados Unidos, já só perde mesmo para o boxe. E você, quer experimentar?

“Uma coisa que o golfe tem de especial é que é incrivelmente honesto”, explicou há meses o britânico Sam Dibb, gestor de um fundo de alto risco e conhecido ‘gambler’, à revista “Golf World”. “As corridas de cavalos estão numa categoria à parte e, na verdade, no extremo oposto da escala. No golfe, sabemos sempre que toda a gente está a dar o seu melhor. Simplesmente não parece haver qualquer risco de combinação de resultados”, acrescentou.

Pretexto da entrevista: a ascensão meteórica do golfe entre as modalidades mais procuradas nas casas de apostas. Nos Estados Unidos, onde o ‘gambling’ nem sempre é socialmente bem visto, o volume financeiro envolvido nas apostas de golfe começa a aproximar-se do do boxe, a modalidade historicamente mais em foco entre os apostadores. Em Inglaterra, onde o ‘gambling’  é um verdadeiro modo de vida para centenas de milhar de cidadãos, já só perde para as corridas de cavalos, as corridas de cães e os cavalos. Só na Ladbrokes, uma das principais casas de apostas britânicas, o jogo dos ‘greens’ e dos ‘fairways’ movimentou no ano passado mais de 120 milhões de euros.

Foi Tiger Woods, dizem muitos especialistas, quem catapultou o golfe para uma posição de tal destaque. Antes dele – e nomeadamente depois do ocaso de Jack Nicklaus –, o equilíbrio entre as diferentes estrelas era tanto que, no máximo, um jogador podia chegar a uma probabilidade de 4/1 antes de um torneio. Com Tiger, as probabilidades atingem frequentemente os  7/5. Ou seja: tornou-se teoricamente mais fácil acertar no vencedor de uma determinada competição – e os ‘gamblers’ rapidamente corresponderam.

Mas nem tudo foi obra de Tiger Woods. Nos últimos três/quatro anos, houve um incremento tão grande na informação disponível sobre os diferentes circuitos (e os diferentes jogadores), que os apostadores começaram também a sentir-se mais confortáveis no momento de investir. Há menos de dez anos, só saber o ‘field’ de um determinado torneio já era uma tarefa ciclópica. Hoje, está tudo nos jornais, nas revistas – e sobretudo na Internet.

Estatísticas sobre os últimos resultados de cada jogador, assim como as suas médias históricas e recentes de ‘driving’, ‘greens in regulations’ e ‘putting’, são facílimas de pesquisar, quer com recursos aos portais oficiais, quer com recurso a ‘sites’ e ‘blogs’ de adeptos apaixonados. Prever como se dará ele naquele torneio, naquele campo e com aquelas prováveis condições climatéricas (também oferecidas em milhares de ‘sites’ ao redor do mundo) reduziu, por isso, a falibilidade de uma aposta.

E, no entanto, apenas quatro por cento dos apostadores continuam a ganhar mais do que perdem. Motivo: tal como os ‘gamblers’, também as casas de apostas têm acesso a cada vez mais informação – e, portanto, vão encontrando novas formas de dificultar a tarefa aos clientes. No essencial, a regra é: para ganhar, é preciso saber mais do que o corrector. E é agora nessa capacidade de concatenar, processar e aplicar a informação que estará verdadeiramente a diferença entre o ‘gambler’ solvente e o ‘gambler’ falido.

As possibilidades são muitas. Ao todo, há hoje centenas de casas de apostas disseminadas pela Internet. Para um candidato, basta procurá-las, informar-se sobre a sua fiabilidade, cadastrar-se, introduzir o número do seu cartão de crédito – e, enfim, começar a apostar. As apostas são abertas muitas vezes várias semanas antes das competições propriamente ditas. Nessa altura, as probabilidades ainda estão definidas por baixo – e é apostando nessa altura, portanto, que os rendimentos de uma vitória final serão maiores. Mesmo assim, e embora com proventos em progressiva redução, é quase sempre possível apostar até muito perto do final da referida competição, através do ‘live betting’ (apostas ao vivo). Algumas  casas chegam a transmitir os jogos em directo nos seus canais televisivos ‘online’.

Agora que a temporada de 2008 está no fim, jogados que foram já os quatro ‘majors’ e a própria Ryder Cup, talvez você esteja à procura de uma nova forma de acompanhar a de 2009. Apostar pode ser uma boa ideia, desde que com os riscos bem controlados. Siga o guia que lhe apresentamos nestas páginas – e depois, não se esqueça, vá apenas até onde puder ir.



E SE ESTE ‘GREENFEE’ ME SAÍSSE DE GRAÇA?

Golfe e ‘gambling’ são uma espécie de duas faces da mesma moeda – e as autoridades da modalidade não condenam as apostas, sabendo que delas depende uma boa parte do entusiasmo pelo jogo. Mas nem só de apostas em casas da especialidade se faz a tendência. Muitos jogadores que enche os campos nas manhãs do fim-de-semana fazem todo o tipo de apostas uns contra os outros. Ao fim dos 18 buracos, a ronda pode perfeitamente ter ficado de borla. Ou então ter custado o dobro. Ou mesmo o triplo. Eis dez exemplos de apostas especialmente populares, tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos:

1. NASSAU

Aposta que se desdobra em três e que pode ser disputada por dois ou mais jogadores (inclusive pelo ‘field’ completo de um torneio). Os jogadores apostam todos uma determinada quantia e o bolo total é repartido entre os autores do melhor ‘score’ do ‘front’ nine (25 %), do melhor ‘score’ do ‘back nine’ (25 %) e do melhor ‘score’ do dia (50 %).

2. ROUND ROBIN

Também conhecida por “Hollywood” ou “Sixes”, é uma aposta em que, numa ronda a quatro, dois jogadores juntam-se contra outros dois. O que a torna especial é que os pares mudam de seis em seis buracos, somando portanto um total de três jogos diferentes. No final, são feitas as contas aos pontos de todos e pagas as diferenças.

3. SANDIES

Nesta aposta, é determinado um valor a pagar a cada jogador de cada vez que ele conseguir fazer par num buraco em que tenha de dar uma pancada da areia – ou então fizer um ‘up and down’ de um ‘bunker’ mesmo sem obter o par no resultado final do buraco. O valor de cada prémio é pago a dividir entre os restantes elementos da formação.

4. SKINS

Aposta em que todos os jogadores de uma formação (ou de um torneio) submetem um determinado valor à “casa” antes da partida. No fim, o valor é dividido entre os jogadores que tenham conseguido um ‘birdie’ num buraco em que mais ninguém o tenha conseguido. Se ninguém fizer um só ‘birdie’ ao longo do dia, os jogadores recebem todos o seu dinheiro de volta.

5. BARKIES

Também chamadas “Woodies” (“madeirinhas”) ou Seves (em honra de Severiano Ballesteros, que ia frequentemente parar às árvores), é uma aposta que consiste na remuneração de cada buraco em que um jogador consiga o par tendo antes atingido qualquer parte de uma árvore – ou sido obrigado a jogar do meio delas. O valor de cada “barkie” é determinado antes da ronda.

6. WOLF

Chamada “Lobo” em português, é uma aposta mais complicada e só funciona em formações de quatro jogadores. Em cada buraco, há um jogador que assume o papel de “lobo”. Ao começar o buraco, esse jogador decide se vai jogar sozinho contra os restantes três ou a pares na companhia de um à sua escolha. No fim do buraco, ganhará mais dinheiro se ganhar sozinho – mas também perderá mais dinheiro se perder a solo.

7. ARNIES

Baptizado em honra de Arnold Palmer, que concluía frequentemente os buracos sem nunca colocar a bola no ‘fairway’, premeia cada jogador que consiga o par de um buraco tendo-o percorrido todo pelo ‘rough’ ou pelos obstáculos. Os prémios são pagos da mesma forma que os dos Sandies ou dos Barkies.

8. ACES AND DEUCES

Chamado “Ases e Duques” em português, é um jogo em que, por cada buraco ou pela totalidade da ronda, há um grande vencedor, dois perdedores controlados e um grande derrotado. Feitas as contas a cada buraco (ou à ronda toda), o vencedor é premiado com o valor acordado de início, o qual é pago à razão de 25 % pelos segundo e terceiro classificados e 50 % pelo quarto.

9. GRUESOMES

Nesta aposta, que também só funciona para formações de quatro, os jogadores fazem dois pares que se defrontam. Em cada buraco, os dois batem o ‘tee shot’ e é o par oposto a decidir que bolas eles jogarão em sistema ‘foursomes’ (pancadas alternadas) até à conclusão do buraco. A aposta pode ser ao buraco e/ou pela ronda toda.

10. CRIERS AND WHINERS

Traduzível talvez por “Chorões e Carpideiras”, é um jogo em que, de acordo com os respectivos ‘handicaps’, se oferece um diferente número de ‘mulligans’ aos diferentes jogadores – e isto correspondendo ao facto de, a cada ‘tee shot’, “chorarem” frequentemente pela possibilidade de bater uma segunda bola. O valor dos prémios é definido antes do jogo e a aposta pode ser ao buraco e/ou pela ronda toda.



MANUAL DO APOSTADOR


As apostas desportivas cresceram muito ao longo dos últimos anos, com o advento da Internet. E, hoje, é possível apostar em golfe em dezenas de casas, incluindo a moderníssima Bwin (www.bwin.com), a clássica William Hill (www.willhill.com), a respeitada Ladbrokes (www.ladbrokes.com) ou a very british Golf betting Online (www.golf-betting-online.co.uk). Senhoras e senhores, façam as vossas apostas.

1. CONFIRA SE O GOLFE É O SEU JOGO

Ninguém é bom em tudo – e, sobretudo, ninguém percebe de tudo. Regra número 1: aposte no golfe apenas se compreender a modalidade e se for seu hábito prever com um mínimo de acuidade (em todo ou em parte) as classificações finais dos torneios dos diferentes circuitos. E, já agora, não se deixe levar pelo coração. Apostar em Tiger Woods ou em Phil Mickelson apenas porque se gosta mais de um ou de outro tem graça, mas no fim quase sempre dá prejuízo. Neste negócio, só a razão dá dinheiro.

2. ESTUDE AS TENDÊNCIAS

Há jogadores que se destacam dos outros quando chove – e podem, por isso, ser boas hipóteses, por exemplo, para o British Open. Por outro lado, esses mesmos jogadores têm normalmente dificuldades em sair da mediania se está bom tempo e todo o ‘field’ a jogar bem – e, portanto, o mais provável é que o US Open, por exemplo, não seja para eles. Leia as revistas, consulte os ‘sites’ e, mais do que se um jogador tem jogado bem ou mal nas últimas semanas, perceba se aquele torneio é à medida dele.

3. NÃO APOSTE EM PERDEDORES RECORRENTES

No dia em que Sergio Garcia ganhar um ‘major’, muita gente ganhará dinheiro com ele. Até lá, porém, milhares e milhares de pessoas continuarão a perder. Não seja uma delas. Apostar em perdedores recorrentes como Sergio Garcia, Lee Westwood, Colin Montgomerie ou Luke Donald, por exemplo, é jogar no EuroMilhões – não apostar nos resultados de uma competição desportiva. Já sabe: se chegar ao 72º buraco de um torneio do Grand Slam em condições de ganhar, Garcia vai ao WC…

4. APOSTE NUM TORNEIO EM QUE TIGER PARTICIPE

Isto se não quiser apostar em Tiger Woods, claro. É que torneio em que Tiger participe é torneio em que Tiger concentra a maior parte das probabilidades – e em que, portanto, as probabilidades dos restantes descem (e o prémio em caso de vitória deles sobe). Por exemplo: num torneio sem Tiger no ‘field’, Padraig Harrington estará talvez a 14/1; pelo contrário, num torneio com Tiger em campo, as probabilidades descerão para 25/1 (e o prémio, em caso de vitória do irlandês, será bem superior).

5. NÃO APOSTE APENAS NO “OUTRIGHT WINNER”

‘Outright winner’ quer dizer, mais ou menos, “vencedor puro e simples”. Ora, em qualquer torneio de golfe – e tendo em conta não só a dificuldade da modalidade, mas também a grande variedade de vencedores ao longo de uma temporada – ficar em segundo, terceiro, quarto ou mesmo décimo classificado também é, de certa forma, vencer. Em todas as modalidades as casas de apostas prevêem prémios para apostas noutras posições que não a primeira – e, no caso do golfe, os prémios são mesmo bons.

6. SEMPRE QUE POSSÍVEL, VÁ AO CAMPO

Nem sempre é possível acompanhar um torneio de golfe ‘in loco’ (sobretudo se não se realiza em Portugal). Mas ajuda. Sobretudo se se trata de ‘live betting’, com possibilidade de apostar no vencedor final a meio de um torneio. Uma coisa é um jogador ter feito nas primeiras duas voltas o par do campo sem encontrar um ‘fairway’ ou conseguir um ‘green in regulations’; outra é ter feito o par do campo apenas porque não meteu tantos ‘putts’ quanto devia. Bem pode metê-los no fim-de-semana…

7. ARRISQUE OCASIONALMENTE NUM ‘OUTSIDER’

É uma das características que tornam o golfe uma modalidade especialmente atraente (e ao mesmo tempo difícil) para os apostadores. Nas corridas de cavalos, por exemplo, um cavalo que esteja com uma probabilidade de 100/1 bem podia estar a 1000/1 ou a 10000/1: simplesmente não vai ganhar. No golfe, ainda no The Masters deste ano Trevor Immelman estava a 125/1 e ganhou. Resultado: batelada. Aposte de vez em quando num ‘outsider’. Por outro lado, não faça disso um hábito.

8. COMPARE AS PROBABILIDADES

No instante em que decidir em que jogador (ou equipa) vai apostar, percorra de imediato todas as casas de apostas que conheça (e em que confie). Diferentes casas definirão diferentes probabilidades de vitória para os vários jogadores – e portanto, em caso de vitória, pagarão prémios diferentes por cada euro apostado. Combinar apostas no mesmo jogador em diferentes casas não faz sentido, mas por outro lado combinar apostas em diferentes jogadores em casas diferentes pode compensar. Faça contas.

9. NUNCA GASTE MAIS DO QUE PODE

É uma regra básica do apostador (e não só do apostador de golfe), mas nunca é de mais lembrá-la. O instante em que se aposta mais do que aquilo que se pode perder é o instante em que o vício toma em definitivo o lugar do prazer. A partir daí, passa a ser preciso correr atrás do prejuízo – e, perdida a lucidez, as novas apostas levam quase sempre a novos prejuízos. É um caminho sem regresso – e um poço sem fundo. Não se esqueça: muitas famílias já foram destruídas por causa disso. Tenha juízo.

10. FAÇA UMA ESTATÍSTICA DA SUA PRESTAÇÃO

Se pretende efectivamente apostar com regularidade, crie uma folha de Excel (por exemplo) com todas as apostas que faz e respectivos resultados. A disciplina é importante e permite-lhe manter-se a par das suas forças e das suas fraquezas, ajudando-o a repetir as boas opções e a evitar as más. É exactamente o que os correctores de apostas fazem, mas ao contrário. Ora, eles querem ganhar dinheiro – e você pode escolher se lho dá a ganhar a eles ou se o ganha para si próprio. Pode-se brincar às apostas, mas não muito.


FEATURE. J, 28 de Setembro de 2008

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Sábado, 13 de Setembro de 2008
publicado por JN em 13/9/08

“Fazer.” Penso que é esse o verbo que me desliga em definitivo o cérebro sempre que me sento a uma mesa e dou por mim no meio de um colóquio sobre esse novo mecanismo de distinção social a que se chama “as viagens”. Diz um: “Ficámos uns dias em Porto de Galinhas, só para desestressar, e depois fizemos a costa toda até Salvador.” Diz outro: “Ah, mas o que eu gostava era de fazer o Sudeste Asiático: ir de Bali a Kuala Lumpur e depois dar um salto a Singapura para fazer as ruas de arranha-céus.” E volta o primeiro: “Já fiz. Agora estou a pensar fazer Vietname, Laos e Cambodja, onde as pessoas nunca viram um branco.” Resposta inevitável: “Nã… Eu gosto é de cidades. Desde que fiz Nova Iorque que nunca mais me interessei nem por florestas nem por praia.” Contra-ataque infalível: “Nova Iorque? Isso já eu fiz há muito tempo…”


É uma nova conotação para o verbo “fazer”: a de “visitar”, “percorrer”, ou mesmo “calcorrear”. E, no entanto, é ainda a sua conotação original também. Para muitos destes jovens urbanos amantes “das viagens”, na verdade, muitos lugares só existem depois da sua visita. Eles visitam um lugar e é verdadeiramente como se enfim o “fizessem”, o concretizassem – e isto independentemente dos séculos e dos milénios, das pessoas e das gerações, das tradições e das revoluções e das novas tradições que naquele lugar se sucederam ao longo da História. A ideia de que os locais “nunca viram um branco”, naturalmente, é uma espécie de cereja no topo do bolo. É por isso que os mais requintados preferem às vezes o verbo “explorar”, como se efectivamente fossem exploradores à maneira de Livingstone ou navegadores que, como Colombo ou Vasco da Gama, tivessem descoberto um Novo Mundo (ou, vá lá, o caminho aéreo para ele). Mesmo assim, não é comum: o mais normal é ouvir falar de “fazer”. E é sempre aí que eu desligo.

Neste pé anda a urbanidade e a sua ideia de evasão. Lemos uma revista de viagens e aqui vai disto: tenho de fazer a Patagónia – tirando este jornalista, nunca deve ter passado por ali um branco. Conheço uma rapariga que foi a Marraquexe, à Praia de Pipa e a Nova Iorque (sempre Nova Iorque) e que, quando me descreve uma tarde bem passada, acaba sempre com a frase: “E depois ficámos ali, a falar das minhas viagens...” Outra, que comprou um time-sharing rotativo e passa a vida de Bali para Cancún e de Cancún para Punta Cana a tirar ao marido fotografias em que raramente aparecem os pés deste mas nunca falham as paisagens e os pobrezinhos atrás, ouve-me protestar contra o excesso de trabalho e a depressão de Lisboa no Inverno e ataca de imediato: “Claro, tu não viajas…” Já pensei propor-lhe que comparássemos passaportes, mas o facto é que eu perdia: ela faz colecção de carimbos – e, aliás, faz colecção de passaportes também (vai renovar documentos e finge que perde os antigos só para poder guardá-los, cheios de carimbos, na gaveta da cómoda). Além do que ela tem razão: eu hoje em dia já não gosto de viajar – gosto de voltar aos lugares onde fui feliz (Mindelo, Parati, Saint Louis, Bergen, Prainha do Pico) e de ir-me embora prometendo voltar outra vez. Ou talvez goste de viajar – mas seguramente não de “fazer”.

Por isso me encantou, no outro dia, falar “de viagens” com a Cláudia. A Cláudia é directora financeira de uma empresa, portanto uma yuppie pura e dura – e normalmente, como se sabe, não há pior viajante do que um yuppie, insaciável e violento, libertando o stress num estertor de fúria até partir uma perna a fazer esqui numa pista preta, ser internado em Banguecoque com uma overdose de ópio ou voltar para casa numa caixa de alumínio após um acidente de alpinismo nos Himalaias. Mas a Cláudia é especial. Nasceu numa terra pequena, que nunca renegou – e, aliás, percebe que há mais muito mais mundo do aquele que alguma vez conseguirá sequer saber que existe. Nunca à minha frente, e em tratando-se “de viagens”, utilizou o verbo “fazer”. Diz ela que, sempre que visita um novo lugar, a sua maior preocupação é aprender uma receita local. O pai é cozinheiro de restaurante – e, quando Cláudia regressa a casa, esforça-se por reconstituir o prato escolhido, de forma a que o pai possa viajar com ela.

É isso: o que eu quero da minha próxima viagem é que o meu pai viaje comigo. Não dá para meter estilo durante um gin tónico em frente ao Tejo, mas ao menos não vou com a obrigação de “fazer” nada. Sinceramente: a última coisa que eu quero, em férias, é fazer o que quer que seja.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 13 de Setembro de 2008

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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