Chamávamos-lhe “boceta” – e é assim que eu continuarei a chamar-lhe, independentemente de também a mim as telenovelas brasileiras e as viagens aos trópicos me terem, entretanto, pulverizado a inocência. Persistiu até há uns anos no falar do povo destas ilhas uma pureza e uma precisão que não cheguei a encontrar em Lisboa – e “boceta”, garante o Dicionário da Porto Editora, o único que consegui enfiar numa mala apinhada de computadores e livros e tacos de golfe e camisolas adequadas a um Outono precoce, continua a ser a melhor palavra para definir o objecto. “Como?”, reagiu a Catarina, a boca já a fugir num riso. “Queres encontrar a boceta do teu avô?” “Precisamente isso: quero encontrar a boceta do meu avô.” A caixa de rapé do meu avô.
Todos os anos, por esta altura, regresso à casa dele. Durmo na cama onde ele dormiu, como nos pratos em que ele comeu, abro e fecho as portas e as janelas que ele abriu e fechou. Há uma parte de mim que se recupera, mas isso eu não preciso explicar-vos. “Ninguém pode viver sem uma aldeia”, diz o poeta, “todos nós temos que ter uma avó” – e vocês, sei-o bem, também tiveram uma avó. Eu, que me perdoe Maria do Carmo, tive um avô. Era pequeno e passional, sorridente e colérico em catadupa. Como os velhos dos Açores, comia sopas de leite, bebia café puro e cheirava rapé – e no bolso trazia invariavelmente três objectos: um lenço-da-mão, uma navalha afiada e a sua boceta. Preta, selada com uma rolha de cortiça puída – e com uma extraordinária forma de coração que bem podia ser invenção minha se eu não tivesse efectivamente vindo a reencontrá-la na garagem, no fundo de um balde de pesca, onde há anos eu próprio a deixara como caixa de anzóis.
José Guilherme. Toda a minha vida foi, a certa altura, uma reprodução em miniatura da vida grande e inalcançável dele. À noite, quando se acabava o jantar e as mulheres queriam ver a “Escrava Isaura”, refugiávamo-nos na casa-de-despejo – e então ali ficávamos horas a brincar aos carpinteiros, ele com o seu serrote grande e eu com o meu serrote pequenino, ele com a sua plaina grande e eu com a minha plaina pequenina. De dia, íamos ordenhar as vacas, a Bem-Feita e a Estrela – e então lá subíamos os serrados os dois, ele com as suas botas-de-cano grandes e eu com as minhas botas-de-cano pequeninas, ele com a sua bilha de leite grande e eu com a minha bilha de leite pequenina, ele subindo a custo, apoiado no seu bordão grande de pau de roseira, e eu imitando-o atrás, quase rindo, com o meu bordão de fona-de-porca girando no ar e despedaçando às escondidas as rocas-de-velha e as suas flores amarelas que davam um suco adocicado e a que chamávamos “chupes”. Até que, enfim, ele se sentava numa pedra e puxava da sua boceta grande – e então eu sentava-me ao lado dele e puxava da minha boceta pequenina.
Talvez estes Açores já não existam. Na mesma mesa onde o meu avô comia sopas de leite, escrevo-vos eu agora através da minha placa 3G. O cinema continua a fechar em Agosto, mas no resto do ano já tem sessões todos os dias. Os jornais ainda não chegam à ilha de manhã, mas pelo menos já se vendem no próprio dia. Os racionamentos de água voltaram a ocorrer este Verão, mas agora o jornal traz o mapa com as freguesias e os horários dos cortes. O presidente do Governo chama-lhes “as novas Américas”. Ele deve saber: prometeu-nos uma nova via rápida antes das eleições de 2004, montou o aparato de caterpillars antes das eleições de 2008 e há-de inaugurá-la antes das eleições de 2012. Mas nem tudo acaba aí. Ainda é a carrinha do peixe que me acorda de manhã, com apitos estridentes, deixando-me à porta garoupas, imperadores e bocas-negras num último estertor de vida. Os ovos chegam-me directamente da capoeira dos meus pais. O queijo fresco é feito por uma vizinha. E o leite, quisesse-o eu, podia bebê-lo ainda morno, acabado de ordenhar, sem pasteurização nem nada.
Parece-me tudo bem, aqui – e é por isso que não posso ficar muito tempo. Fico feliz, flácido, seguramente pouco moderno – e um cronista de jornais não pode nunca dispensar-se de uma certa revolta. Não tardo em Lisboa. Desta vez, porém, levo a boceta. É feita de uma espécie de feijão gigante, que cresce no Brasil e na Venezuela – e se aqui está foi porque a Floresta Atlântica a lançou ao mar e a fez viajar milhares de quilómetros, à deriva, até dar à costa na Terceira e ser recolhida pelo meu avô, que a escavou, poliu e rolhou até transformá-la numa boceta. Preciso dela. O corrector do meu MacBook não reconhece a palavra, assim como não reconhece “lenço-da-mão”, “botas-de-cano” ou sequer “garoupa” – e só regressar a esta casa, à procura de histórias e de palavras que já não existem, me impede de ceder de vez à sua pressão para que escreva como os outros todos.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 30 de Agosto de 2008