À hora a que vos escrevo, para ser honesto, a última coisa que me apetece é escrever-vos. É domingo, dia da família – e o que eu mais gostaria de fazer, naturalmente, era brincar com o meu novo iPhone 3G, em que pus enfim as mãos anteontem e com o qual não consegui namorar ainda nem um bocadinho. Um gadget novo, já se sabe, faz sempre soar algum tipo de campainha na alma de um homem sem filhos – e este não é apenas mais um gadget, é o brinquedo do ano, quase um bebé, a concretização de um sonho para os velhos MacUsers e uma súbita possibilidade de ascensão ética para todos os restantes. A estes, eu gostaria de dar as boas-vindas. Que durante tantos anos tenham ignorado a minha mensagem, recusando os meus bem-intencionados folhetos, fechando-me a porta na cara ao longo dos meus passeios missionários de sábado de manhã ou mesmo (e isto foi o que mais me custou) rindo-se de mim ao ver-me desesperado para sincronizar um telemóvel, piratear um disco ou simplesmente aceder à Internet wireless – tudo isso é agora o menos importante. O evangelismo é assim: um homem espalha sementes à esquerda e à direita, no cimo de montanhas e no fundo do mar – e depois é Steve Jobs quem opera no coração das pessoas. Quanto a mim, perderam tempo com essas trampas do 386 e do Pentium II e sei lá mais o quê. Nunca foram possuídos pelo espírito de um iMac, de um G4, de um MacBook – e, se a certa altura ainda aprenderam o que era um iPod ou o iTunes, foi porque o nosso Steve tem um coração magnânime e não deixou nunca de dar uma segunda oportunidade às almas danadas. Em todo o caso, esta é a terceira – é bom que a aproveitam. Três vezes negou Pedro a Cristo. Três vezes “Santo” era o Senhor dos Exércitos – e em três pessoas ele se dividiu depois. À quarta, é das Escrituras, está-se sempre fora de jogo. As cruzes e os pelourinhos fizeram-se para isso. O fogo do Inferno também.
E, no entanto, trata-se de um Apple. Um prodígio de design e de bom gosto? Certamente. Um carro de combate blindado a crashes e a vírus, contra o qual nada pode nem o mais artificioso dos hackers? Sem dúvida. Uma máquina ágil e voluntariosa, dispondo-se a nós com a simplicidade de uma árvore genealógica e ocupando-se ela própria de mitigar as imensas encruzilhadas que se propunham desviar-nos do nosso furioso caminho? Até mais não poder ser. Mas, como a Bovary de Agustina quando visitava o Vesúvio, uma máquina com um ligeiro coxeio numa das pernas, venturosamente desenhado para que a partir dele possamos apreciar a perfeição de tudo o resto. E, como a Bovary de Oliveira quando visitava o Vesúvio, uma máquina incerta sobre se deve mancar de uma perna ou da outra e desenvolvendo a cada instante novas coxeaduras, como se certificando-se de que efectivamente não escaparemos a apreciá-la. Caros amigos, não tenham dúvidas: comprem um iPhone e estarão a comprar um molho de sarilhos. Digo-vos eu, que há uma data de anos faço parte da família Mac: um McIntosh não é um computador, é uma missão – e um iPhone, tanto quanto pude aperceber-me até aqui, é outra. Mas é a vossa missão, pessoal e intransmissível – e, se a conseguirem superar, ninguém mais conseguirá parar-vos. Que não haja MMS, é apenas o vosso o primeiro teste. Que seja preciso entrar em despesas para obter o mais básico dos processadores de textos, o segundo. Que, ainda assim, não seja nunca possível fazer um simples copy and paste sem passar o texto por um browser, o terceiro. Ora, se pensam que Steve Jobs falhou em juntar-se-nos no século XX porque se esqueceu de prever uma função tão rudimentar como o corta-e-cola, pensem melhor: ele só não a pôs lá para experimentar a vossa resistência. À função corta-e-cola, à tecnologia MMS, ao editor de texto e, de resto, ao gravador de vídeo, à bateria extraível, ao bluetooth stereo e a tudo o mais cuja ausência considerou essencial para purificar-vos. Vencei a prova e juntai-vos enfim a nós.
Por mim, que ao longo dos últimos dois dias fiz um amigo num tekkie da Vodafone – chama-se Hugo e, qual Simão Cireneu, carregou a minha cruz ao longo do calvário que foi extrair três mil contactos do HTC para pôr no iPhone –, sei como vou morrer: vou morrer de ataque cardíaco, aos comandos de um Apple qualquer, depois de mais um insolúvel problema de compatibilidades com outro desses programinhas para máquinas calculadoras fabricados pelo sr. Bill Gates. Mas vou morrer diferente – e, em sendo morrer feliz uma contradição de termos, morrer diferente já não será mau.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 19 de Julho de 2008