“És um bocado azedo. Falas mal de tudo”, diz-me Pedro. “Às vezes pergunto-me se não há nada que te comova.” Talvez tenha razão: fui criado numa religião desconfiada, habituei-me a ler os cépticos, atirei-me de uns quantos precipícios – e além disso, não posso negá-lo, encontrei sempre algum encanto em ser do contra, apesar de há muito ter aprendido que ser do contra é quase sempre mais fácil do que ser a favor. Sou azedo, pronto.
E, contudo, há coisas que me comovem. Um homem com um fato de mau gosto e gravatinha de napa, dando-se ares de importância. Outro cujo carro avaria na ponte num domingo de Verão. Outro ainda que mete dez euros de gasolina a um sábado de manhã. Coisas que me comovem em sentido lato – e, aliás, instantes concretos que me comoveram tanto ou mais ainda. Um velho que se perdeu no Cais do Sodré e que eu depois levei a casa à Ajuda, medrosos ambos, numa noite chuvosa. Os operários ucranianos que se despediam uns dos outros junto ao autocarro, em Portimão, naquele Natal em que alguns voltavam a casa e outros permaneciam aqui. O preto de Paratii que levou a namorada a jantar entre os turistas e com ela dividiu uma lasanha e um guaraná. Dêem-me a obra completa de Whitman, todas as árias de Bach e os mais surpreendentes pratos do chef Melo – nenhum deles alguma vez conseguirá comover-me como aquele preto que levou a mulher a jantar pela primeira vez, se sentou lado a lado com ela sem alguma vez olhá-la nos olhos, dividiu pausadamente a lasanha em dois, muito cerimonioso, repetiu o gesto com a lata de guaraná, pingo a pingo, pagou a conta com a nota de dez dólares que lhe chocalhava solitária na carteira de velcro e, quando enfim havia já saído em direcção ao morro, voltou atrás para deixar como gorjeta os dois dólares que lhe haviam sobrado à excentricidade.
Basicamente, comove-me a solidão, comove-me a impotência – comove-me a derrota de um homem digno às garras da macro-economia e a forma como isso acentua a sua solidão e a sua impotência. Há outras coisas que me comovem. A morte comove-me, claro. A doença comove-me. O desespero comove-me. Mas a morte comove-me porque é a mais repleta de solidão de todas as coisas, não porque se trata do fim de tudo. A doença comove-me porque comporta impotência. O desespero comove-me porque é sempre o fim da dignidade. O que me comove é a impossibilidade da dignidade. Comove-me a vida, mais do que a morte.
Por outro lado, comove-me abrir um pacote novo de post-it. Comove-me um homem que passa silencioso, altivo ainda, os olhos profundamente azuis denunciando a fragilidade da sua altivez. Comove-me um polícia que telefona para casa. Comoviam-me as putas do Café dos Artistas. Comoveram-me os dois marmanjos do Bairro Alto que, na tarde do último Réveillon, surpreendi conversando sobre o facto de não terem nada combinado e de deverem talvez arranjar um programa a dois, jantar ou assim – e comoveu-me tanto o que o propunha como aquele que tentava escapar à proposta. Comoveu-me a empregada daquele café do Príncipe Real que no outro dia se questionava, perante uma revista cor-de-rosa em que uma manequim chamava execrável ao ex-namorado: “Mas o que é ‘execrável’? Não sei o que é que ela quer dizer com isto…” – e comoveu-me depois a solicitude do colega chico-esperto, tão ignorante quanto ela, mas empenhado em desmontar etimologicamente o termo: “Execrável? É fácil. Qual é a origem da palavra?” Comove-me a desgraça, comove-me a ignorância, comovem-me os post-it e comove-me quem acha que as palavras e as suas etimologias são coisas fáceis – comove-me e provoca-me alguma inveja também.
Mas não se deixem enganar: o que me comove sou eu próprio. Nasci entre gravatas de napa, impotente – e depois fui crescendo aos ombros de um polícia que metia quinhentos escudos de gasolina e caminhava silencioso, altivo mas frágil, a contar as horas para telefonar para casa. Comovo-me eu. Comove-me a minha solidão, a minha impotência – e comove-me tudo aquilo que, de alguma forma, seja mensageiro da minha última dignidade. Por isso me têm comovido tanto, por estes dias, os velhos bons, que me recordam os outros velhos da minha vida – e por isso me têm chateado tanto, comovendo-me talvez ainda mais, os velhos maus, que é o que, gaita, eu sei hoje que vou ser um dia. “O altruísmo é a forma mais inteligente de ser egoísta”, escrevia-me no outro dia um leitor, Manuel Galvão. É o que eu sou, Pedro: um egoísta. Um egoísta quando falo mal e um egoísta quando me comovo. De resto, temo que o sejamos todos.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 19 de Abril de 2008