Sábado, 1 de Março de 2008
publicado por JN em 1/3/08

Sempre que vos escrevo da Terra Chã é isto: olho para Lisboa, para as convençõezinhas urbanas que ela tão acefalamente importa e para o empenho com que consegue depois plantá-las em cada recanto da província – e rio-me. Rio-me muito – e rio-me muitas vezes. Por exemplo: esta moda revivalista dos eighties.  Lá fora, Rambo e Indiana Jones estão de volta, Michael Jackson relança “Thriller” com um feature especial de Will.I.Am, Kim Wilde, Rick Astley e as Bananarama reúnem-se para animar umas festas de casamento em ponto grande, Madonna junta sucessivas categorias à sua arte de cantora, fazendo-se escritora, argumentista, produtora, cineasta. Cá dentro, já não há festa de amigos sob outro signo que não o dos anos 80, nenhum jornal dispensa o seu cronista oficial sobre o “Verão Azul”, o Spectrum 48K e as injecções contra o tétano, marca alguma de roupa consegue resistir a uma prateleira especial para vestir as mulheres de fato e gravata lassa – e adolescentes de todos os extractos sociais e geografias aprendem a suspirar “Ai, os deliciosos anos 80…” da mesma forma mimética como, há vinte anos, nós suspirávamos “Ai, os anos 60, os deliciosos anos 60…” sem que alguma vez tivéssemos posto os pés nos anos 60 ou sequer perto deles.

E eu rio-me. Que os anos 80 tiveram méritos, sei-o bem. Todas as décadas os tiveram. Foi nos anos 80 que se mundializou a democracia e nasceram os computadores. Foi nos anos 80 que pela primeira vez olhámos para o imperativo de deixar de fumar e a necessidade de proteger o planeta. Foi nos anos 80 que se criou o VHS e todos os principais suportes de uma cultura popular e plural. Foi nos anos 80 que se produziu o “Back To The Future”, o “Tom Sawyer” e o “Dartacão”. Tudo isso é belo, tudo isso saudoso. Mas também foi nos anos 80 que se inventou a MTV e a televisão industrial para crianças. Foi nos anos 80 que nasceram os yuppies, o politicamente correcto e o próprio conceito de mainstream. Foi nos anos 80 que se descobriu a sida e se disseminou a droga. Foi nos anos 80 que se canonizou Van Halen e se fundou uma religião em torno dos pirosíssimos U2. Foi nos anos 80 que se produziu o “Automan”, o “A Team” e o “Caça-Polícias”. E eu, que sou um filho dos anos 80, não penso que restem neles suficiente cor para este culto. É claro que, se faço um zapping pelo Hollywood e me deparo com o “Caça-Polícias”, facilmente me vem uma lágrima ao olho. Com a idade, dei em comover-me mais. Mas, caramba: os anos 80 são a década dos penteados em cimento armado, das jaquetas com cotoveleiras e enchumaços e dos maiores solos de guitarra eléctrica da já demasiado longa história da guitarra eléctrica. São seguramente, e para dizer o menos, uma década de mau gosto. Revisitá-los de vez em quando, por razões sentimentais, como guilty pleasure, como tributo ao kitsch, é saudável. Cultivá-los assim, sem uma ponta de ironia, uma tolice.

Ou um sinal de cobardia. Querem uma análise séria, daquelas tipo sociólogo-de-serviço-intervém-em-revista-bem-intencionada-sobre-tema-de-comportamento? O que nós temos é medo. O mundo diluiu-se, relativizou-se, dispersou-se. Os maus não parecem completamente maus nem os bons consistentemente bons. Não há quem não disponha de um blog, de um espaço no MySpace, de uma tribuna no YouTube. As grandes estrelas duram dez minutos e os grandes happenings já não acontecem. As economias do terceiro mundo crescem a um ritmo alucinante e o Ocidente não consegue sequer lidar com uma crise imobiliária. O caixa-de-óculos a quem dávamos calduços no liceu é agora o presidente da empresa onde nós apertamos parafusos – e temos medo. Medo e saudades. Medo do futuro e saudades da bidimensionalidade dos anos 80, das suas afirmações de masculinidade pura e simples, dos heróis musculados que eram capazes de vergar o mundo à sua vontade indómita. Saudades de saber quem culpar, se a Al Qaeda se George Bush – e de não culpar simplesmente Bush porque fica melhor culpar Bush. Saudades do bom e do mau, do homem e da mulher, do certo e do errado – e sobretudo do duradouro. Temos saudades da duração. Eu tenho saudades da duração. É por isso, talvez, que me vem uma lágrima quando encontro “O Caça-Polícias”, o primeiro filme que aluguei em VHS. Mas de uma coisa não me esqueço nunca: Indiana Jones era um aventureiro  etnocêntrico, que vivia da pilhagem do património do terceiro mundo para enriquecer os coleccionadores privados do Ocidente. E Indiana Jones é os anos 80.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 1 de Março de 2008

tags:
Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
pesquisar neste blog
 
arquivos
livros de ficção

"Os Sítios Sem Resposta",
ROMANCE,
Porto Editora,
2012
Saber mais


"O Citroën Que Escrevia
Novelas Mexicanas",
CONTOS,
Editorial Presença,
2002
Saber mais
Comprar aqui


"O Terceiro Servo"
ROMANCE,
Editorial Presença,
2002
Saber mais
Comprar aqui
outros livros

Bíblia do Golfe
DIVULGAÇÃO,
Prime Books
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Banda Sonora Para
Um Regresso a Casa
CRÓNICAS,
Porto Editora,
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Crónica de Ouro
do Futebol Português",
OBRA COLECTIVA,
Círculo de Leitores,
2008
Saber mais
Comprar aqui


"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
Esfera dos Livros,
2007
Saber mais
Comprar aqui


"José Mourinho, O Vencedor",
BIOGRAFIA,
Publicações Dom Quixote,
2004
Saber mais
Comprar aqui


"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
Saber mais
Comprar aqui