Sábado, 16 de Fevereiro de 2008
publicado por JN em 16/2/08

E, se nenhum argumento servir, reduzo o meu pedido ao mínimo: dêem cabo do Português de Portugal – mas, por favor, não dêem cabo do Português do Brasil. Pedem-nos que deixemos de ser ciosos da nossa ortografia? Então sejamos ao menos ciosos da ortografia dos outros. Porque “fato” não é o mesmo que “facto”, “seqüência” é diferente de “sequência” e “assembléia” está longe de ter o mesmo significado que “assembleia”. Uns levam-me de volta à doce modorra de uma tarde na Bahia, os outros devolvem-me à magia de um dia de chuva no Gerês. E a questão é que eu preciso desse movimento. Preciso desse movimento como cidadão que só está bem onde não está, que é o que somos todos aqueles que escrevem e que lêem – e preciso desse movimento como estivador (não encontrei metáfora melhor) da escrita. Ora, uniformizar, parecendo que coloca a tónica na forma, apenas a esvazia. Forma também é palavra. É diversidade, nuance, declinação – e acabar com ela, uma tolice. Uma tolice cara, uma tolice com benefícios meramente conjunturais – e uma tolice com prejuízos estruturais desastrosos. Não estranhem, aliás, que apareçam aqui termos da Economia e da História Económica. A razão última do Acordo Ortográfico que entra este ano em vigor no Brasil, e que supostamente virá a entrar em vigor em Portugal, é de natureza economicista – e é ao coração dos economistas que devemos falar.


Dizem estes que, num mundo global, o Português precisa de um código comum que o relance como língua central nas relações internacionais. Pelo amor de deus: as relações internacionais já têm uma língua central, que é o Inglês – e, se nenhuma outra língua algum dia lhe usurpará esse lugar, isso deve-se em grande parte ao facto de ninguém ter conseguido nunca impor-lhe um código oficial. Há palavras que se escrevem de uma maneira no Inglês de Inglaterra, de outra no Inglês da América e de outra ainda no Inglês da Austrália – e nem por isso o Inglês perde força. Pelo contrário: ganha-a. Já quanto ao Português, brasileiros e portugueses andam há cem anos a tentar aprovar um livro de normas. Eles, reducionistas, querem agora entrar no mercado africano da educação, vendendo livros, colocando professores, recrutando cérebros. Nós, mangas-de-alpaca, aproveitamos para aprovar mais umas regrazinhas. Esquecemo-nos de duas coisas. A primeira tem a ver com a língua ela própria: os livros de Saramago, publicados no Brasil com a ortografia original lusitana, vendem que nem pãezinhos quentes do Amapá ao Rio Grande do Sul – e, se em algum momento um leitor não compreende uma frase, isso não tem nunca a ver com a grafia, mas apenas com a escolha dos termos, que é coisa em que, suponho (suponho), ninguém quererá mexer. A segunda tem a ver com a nossa mania legalista: da ordem ao processo administrativo, passando naturalmente pela língua, está tudo tão escrito, tão escrito, que não resta nunca espaço para a jurisprudência, para a usucapião, para a consuetudinariedade – e sobretudo não resta nunca espaço para a criatividade.

Nenhum patriotismo, nenhuma xenofobia. Não me preocupa nada que Portugal se abrasileire. Acho, aliás, que ainda não nos abrasileirámos o suficiente – muito nos falta aprender ainda com aquela simplicidade, com aquele sentido de humor, com aquela assertividade. E a inversa também não é mentira. Agora, o que eu não quero é que me roubem mais espaço à melodia. O que eu não quero é que me roubem mais espaço ao ritmo. O que eu não quero nunca é que me roubem mais espaço à intuição. Não quero que me obriguem a escrever assim ou assado só para podermos passar “certificados comuns de proficiência em língua portuguesa” a estrangeiros. Não quero que me obriguem a escrever assim ou assado só para podermos introduzir o K, o W e o Y no Português. O K, o W e o Y já estão há séculos no meu Português. O trema e o acento em palavras graves, a consoante muda e o hífen: tudo isso já estava, está e continuará a estar na minha língua – e o que eu vou continuar a fazer, ratifique Portugal ou não o dito Acordo, é a ir à memória ou ao dicionário, de cada vez que a possibilidade for múltipla, e escolher a grafia que melhor expressa uma determinada ideia, uma determinada emoção, uma determinada atmosfera. O resto são erros. Por exemplo: eu nunca aprendi a regra do tracinho. Tenho uma revisora diligente para vos proteger da minha ignorância. E, no entanto, quando um destes textos vos chega às mãos, há alguma coisa que eles diziam que entretanto já não dizem.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 16 de Fevereiro de 2008


 

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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