Sábado, 28 de Abril de 2007
publicado por JN em 28/4/07

Todos os dias me rio um bocado. Se o humor é uma visão do mundo, mais do que um estado de espírito, então é isso que eu quero ter: uma visão do mundo. E rio-me. Rio-me das idiossincrasias de um empregado de café e da mímica de um palhaço na televisão. Rio-me de uma história plena de agudeza ou apenas de uma torneira que pinga. Rio-me – rio-me muito. Contudo, poucas vezes me tenho rido tanto quanto me rio com equívocos urbanos como este que nos oferece André Sardet, o rapaz do feitiço. Canta ele: “Eu não sei o que me aconteceu/ Foi feitiço!/ O que é que me deu/ p’ra gostar tanto assim/ de alguém como tu?” E as raparigas acompanham-no em coro, com os seus isqueirozinhos acesos, os seus olhinhos delicodoces cintilando no breu, as suas barriguinhas à mostra. E os rapazes telefonam para as rádios a pedir o feitiço para oferecer às namoradas. E as quarentonas revêem de repente os seus percursos de vida, olham para os maridos que se afundam no sofá e protestam: “Estou farta de ti, não és nada romântico!” E os cantores dos bares tiram os acordes à canção, para corresponder aos pedidos da clientela.  E eu rio-me. Em Março, confirmo-o na Wikipedia, o disco já tinha vendido 120 mil cópias, das quais talvez metade a jovens universitárias sedentas de descobrir a vida. Sem um só sinal de que a histeria pudesse parar por aqui – ou sequer perto daqui, ainda que mais à frente.

Porque, atentemos bem nestas palavras: “Eu não sei o que me aconteceu/ Foi feitiço!/ O que é que me deu/ p’ra gostar tanto assim/ de alguém como tu?” E decomponhamo-las. Primeiro: “Eu não sei o que me aconteceu”. Muito bem. Ou seja: o nosso jovem bardo está um tanto atarantado. Houve uma coisa que lhe deu e ele não sabe bem o que é. Amor? Bom, eu acho que é capaz de ser amor, mas que sei eu sobre a sua paixão? A dúvida é nobre – e com ela se acentua a nobreza do sentimento. Há gente que não tem tanta sorte na vida. Adiante, pois. “Foi feitiço!”, arrisca André, ávido de uma resposta para a sua dúvida. Nobre também: ele sabe que há mais coisas nesta vida do que aquelas que conseguimos explicar – e a certa altura pergunta-se se isto não será coisa de outro mundo, uma malandrice qualquer oculta, macumba ou coisa assim. Não é nenhum tolo. Mas, de repente, pintura borrada. Diz André: “O que é que me deu/ p’ra gostar tanto assim/ de alguém como tu?” Note-se: não é “O que é que me deu/ p’ra gostar tanto assim/ de alguém como gosto de ti?” É “de alguém como tu” mesmo. Ou seja: “Tu, que és a trampa que és… Mas tu já me olhaste bem para ti, rapariga? Que raio me terá dado para gostar tanto assim de alguém como tu, pá?!” E eu rio-me. Rio-me e comovo-me. Rio-me do sentido de humor de Sardet, que tão ironicamente goza com a sua amada – e com as suas jovens admiradoras. E comovo-me com o facto de estas aceitarem tão bem o insulto, tão inteligentemente, tão carinhosamente.

Enfim, vivemos a era telenovela portuguesa – e todas as eras merecem o seu trovador. Tão-pouco o problema é exclusivo de André Sardet, aliás: vá-se aos books dos discos de Paulo Gonzo, de João Pedro Pais, dos Pólo Norte – que diabo, vá-se aos últimos discos de Rui Veloso de Jorge Palma e verifique-se a insofismável realidade de que não há nada para dizer. E o problema resulta estrutural para a música popular portuguesa contemporânea: as letras são hoje meros alinhamentos métricos para preencher os espaços sonoros vazios. É carregar pela boca – e, para quem é, bacalhau basta. Já nem falo da tendência geral para a correspondência esquemática entre frase musical e verso poético, em que um reflecte na exactidão o outro, sem uma síncope, sem um contratempo. Já nem é esse o mistério. Simplesmente não há nada a dizer. Estas pessoas não têm nada a dizer. Chegam a escrever canções quase boas, com secções rítmicas perfeitinhas, a polifonia toda no sítio certo, as intros todas lá, declinações subtis, tempos fracos bem distribuídos – mas depois não têm nada a dizer. E a questão não é que no estrangeiro não haja também André Sardets com abundância. As adolescentes inglesas desmaiam perante James Blunt. A questão é que Blunt não passa nas rádios honestas de Inglaterra, enquanto Sardet passou, de repente, a lírico maior de uma geração de licenciados.

Falta-nos maturidade emocional. Só isso. Mas isso é muito.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 28 de Abril de 2007

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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