O Cantinho do Avillez não é bem um cantinho: é uma montra. E não é bem uma casa de petiscos: tem petiscos. Mas, se é tão artificial, tão construído, porque é que nos apetece voltar lá logo no dia seguinte?
Por alguma razão que desconheço, mas a que gosto de chamar absurda, os chefs transformaram-se nas supremas estrelas pop do nosso tempo – e este chef em particular, José Avillez de sua graça, complica-me desde o início com os nervos. É jovem, é bonito, aparece nas revistas, apara a barba com uma precisão com que não posso sequer sonhar e, ainda por cima, tem dupla consoante no sobrenome. Basicamente, está mesmo à morte para uma pequena exibição de desdém classista e desonestidade intelectual, missão a que um cronista rural que se preze, quando posto perante o mais moderninho dos moderninhos, não deve furtar-se nunca. E o facto de eu vir das compras natalícias, afogueado pela subida da Rua Garrett com sacos de plástico às costas e louco ainda por voltar ao balcão da FNAC e dizer umas verdades à rapariga que me embrulhou mal um livro após quarenta minutos numa fila, só vem apimentar o cocktail.
Para mais, entro e sou logo posto no meu lugar: “Tinha marcado para as 13.00, não era? E disseram-lhe que tem de libertar a mesa até às 13:45?” É tudo o que quero ouvir. Faço cara de mau, ergo o nariz e vou sentar-me, cheio de fel. Ao lado, três balzaquianas demasiado bem vestidas para a ocasião, e sem qualquer intimidade entre si, trocam sorrisos e presentes de Natal (máximo de dez euros, proibido ultrapassar), num esforço para fazer amigas na empresa. À volta fala-se alto, com um sotaque muito afectado – e, quando eu pergunto se há vinho a copo e o empregado musculoso me diz que sim, mas que tenho de escolher entre “25 referências” (“25 referências”, meu Deus, pode-se ser mais armadinho do que isso?), já estou a afiar a faca, todo eu em Anton Ego (esse mesmo: o crítico do Ratatui). Decididamente, ou me servem a comida mais caseira do mundo, evocativa da que a minha mãe e a minha avó e as mulheres da minha família até há pelo menos cinco gerações serviam aos seus mancebos, ou isto não vai acabar bem.
Quando bebo o primeiro gole do vinho da casa, JA, um Sirah de 2007 feito a meias entre o próprio chef e José Bento dos Santos, sou acometido da primeira hesitação. Os fígados de aves salteados com uvas e Porto, que escolho para entrada, ainda me trazem de volta a esperança: comi e babei por mais, mas sempre pude dizer a mim próprio que a versão do Café do Chiado, meia dúzia de portas acima, é melhor, com os fígados cortadinhos e o foie gras demarcando território. Mas, no momento em que provo o hamburguer com cebola caramelizada, um belíssimo bife picado de carne barrosã, com umas tão generosas 300 g que quase não consigo comê-lo até ao fim (e logo eu!), baixo as últimas defesas. E, tão depressa saboreio a minha Avelã3 (lê-se Avelã Ao Cubo), com gelado de avelã, espuma de avelã e avelã ralada, para que apesar de tudo ainda arranjo um cantinho – é um trabalho duro, mas alguém tem de fazê-lo –, estou pronto a juntar-me ao coro dos que, de Norte a Sul do País e até lá fora, incluindo Nova Iorque, vão endeusando José Avillez.
Bem vistas as coisas, € 36 por um simples almoço de quarta-feira pode ser uma pechincha. Como é que o chef aparará aquela barbinha, afinal?
RESTAURANTE CANTINHO DO AVILLEZ
Rua dos Duques de Bragança, nº 7, 1200-162 Lisboa
Tel: 211992369
Cozinha tradicional e de autor. Estilo/atmosfera: informal chiq. Vinho a copo. Não fumadores. Reserva aconselhável. Aberto à segunda-feira das 19.30 às 24.00; de terça a quinta-feira das 12.30 às 15.30 e das 19.30 às 24.00; e à sexta-feira e sábado das 12.30 às 15.30 e das 19.30 às 01.00. Fecha aos domingos. Preço médio: € 30
Estacionamento
Redondezas
Vista
Decoração
Atmosfera
Know-how
Carta de vinhos
Aperitivos e digestivos
Produtos
Confecção
Quantidade
Qualidade/preço
Crónica gastronómica ("Restaurantes"), Notícias Magazine, 1 de Janeiro de 2012