Sábado, 22 de Agosto de 2009
publicado por JN em 22/8/09

Alguma coisa se passa entre os portugueses e os livros. Veja-se, por exemplo, a prestação do cozinheiro Vítor Sobral no inquérito proustiano da Pública do último domingo. Pergunta: “Com que idade percebeu que falhou na vida?” Resposta: “Até agora não dei por isso.” Pergunta: “Qual a sua qualidade que mais irrita os seus amigos?” Resposta: “A minha capacidade de liderar.” Pergunta: “Com que figura pública se acha fisicamente parecido?” Resposta: “Comigo mesmo!” Um homem importante. Um vencedor. Um líder nato. Uma figura pública de referência. E, portanto, qual é a resposta qual é ela, no momento em que se lhe pergunta que objecto ele faria tudo para salvar de um eventual incêndio lá em casa? Pois claro: “Os meus livros.”


Em Portugal, é assim: um homem pode ser ao mesmo tempo vaidoso e francamente desprovido de sentido de humor – se é “uma figura pública”, então de certeza que foi sobre “os livros” que se fundou. Outro exemplo? A doutora Laurinda Alves. Pouco depois de inundar o debate europeu de propostas tão marcantes como a da promoção de “uma verdadeira democracia europeia” ou a da potenciação de “um modelo europeu de desenvolvimento humano sustentável”, a Sra. D. X tornou-se numa espécie de diva oficial do nosso Verão 2009. Já se sabe: toda a silly season merece a sua diva. E, entretanto, esta mesma revista onde tenho o prazer de escrever foi ouvi-la falar da sua biblioteca pessoal.

Ah, isso é que uma figura pública portuguesa gosta de falar dos seus livros. E, então, lá foi ela por ali fora: a inevitável Sophia e o inevitável Mia Couto, o saltinho do costume a Torga e a paragem obrigatória em Agustina, um momentozinho de propaganda com Novalis e a sempre segura conclusão com a Bíblia Sagrada, embora “com orientação” exegética (a jornalista fez-nos o favor de nos poupar a pormenores). Pelo meio, esta pérola: “É fácil gostar dele [de Luís Sepúlveda]. Mas gosto especialmente de russos.” E, portanto, qual é a resposta qual é ela, no momento em que se lhe pergunta com que autor ela aprendeu a gostar de ler? Pois claro: “Enid Blyton.” “Leio muito”, diz Laurinda. “Eu gosto muito de ler”, diria Catarina Furtado.

Em Portugal, é assim: pergunte-se a uma “figura pública” que livros mais a marcaram e lá desata ela a percorrer o catálogo paperback da Penguin, juntando-lhe entretanto “a Sophia”, “o Torga” e “o Mia”, para aportuguesar um bocado. E eu anseio pela primeira vez que uma destas figuras seja capaz de dizer alguma coisa refrescante, como por exemplo: “Eh, pá, ler é que não. Não gosto de ler.” Naturalmente, se for a Maya ou a Luciana Abreu, não conta: é preciso saber ler mesmo. Mas isso, sim, seria novo. Com vantagens. Quem não passa o dia a ler não passa o dia a fazer a mesma coisa que Laurinda Alves, estando por isso (em princípio) a salvo da travadinha que deu à doutora. Por outro lado, um país onde os livros fossem menos valorizados seria, provavelmente, um país com um dose menor de Manuel Alegre, o que não deixa de ter o seu mistério.

Pelo contrário, vou ao Google.Pt, e escrevo “adoro ler”, com aspas e tudo. Resultado: 162.000 entradas. Mudo para “detesto ler”: apenas 3.500. Desconfiado, experimento “não gosto nada de ler”: escassas 269, sendo que a primeira é de um adepto de futebol que “não gosta nada de ler certas crónicas” que falam mal do seu clube, mas “adora ler outras” que falam bem. Já quando vou a “gosto muito de ler”, fico esmagado: 180 mil entradas. Aparentemente, toda a gente em Portugal gosta de ler, adora ler e não pode mesmo viver sem ler “os clássicos”, “os russos” e “o Mia”. “Eu devoro livros. Devoro, devoro, devoro!”, dizem, numa inspirada metáfora digestiva que recupera in extremis Vítor Sobral para esta crónica.

Por outro lado, os estudos mostram-nos índices de leitura baixíssimos, incluindo níveis de iliteracia quase terceiro-mundistas e uma obsessão por telenovelas-da-TVI (e afins) que nem no Burquina Faso. Aparentemente, é esse o nosso problema: só os leitores se pronunciam nos jornais, na Internet, na televisão – e, se algum dia alguém diz que não vai passar a tarde seguinte a ler, não é nunca como atitude estética, mas antes como mensagenzinha, não deixando nunca de salvaguardar-se com versos de Pessoa (“Ai que prazer/ não cumprir um dever./ Ter um livro para ler/ e não o fazer”). É um rebanho, no fundo. Os livros também têm o seu rebanho – e não é por ser dos livros que deixa de ser um rebanho como os outros.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 22 de agosto de 2009

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5 comentários:
De MC a 22 de Agosto de 2009 às 21:28
É entendível o sentido irónico do cronista ao afirmar que “toda a gente em Portugal gosta de ler, adora ler e não pode mesmo viver sem ler os clássicos, os russos e Mia”. É fino e chique, nas pequenas entrevistas ou inquéritos, qualquer figura pública da nossa praça na reposta à pergunta sacramental: “Que livro anda a ler?” Responder, quase invariavelmente, “vários ao mesmo tempo” e que têm as mesas de cabeceiras cheias de livros, que nem dá para pôr um candeeiro. São todos uma cambada de leitores compulsivos.
De José Fernandes a 24 de Agosto de 2009 às 16:40
Boa tarde,

Esta crónica está muito boa e muito realista. As figuras ditas públicas em Portugal são todas muito dadas a leituras e à musica clássica.
Acho que em Portugal está a acontecer um fenomeno interessante, que é o facto de o número de livros vendidos ter aumentado substancialmente, mas o número de leitores desses mesmos livros não é proporcional às vendas, ou seja é chique comprar e dizer que se comprou o livro A, B ou c, mas lê-lo é uma tarefa árdua.
Outro facto curioso é que em Portugal todas as pessoas quando questionadas publicamente ouvem musica clássica, mas quem vende discos é o Tony Carreira.

Cumprimentos
JF
De belinha1@otmail.com a 10 de Setembro de 2009 às 12:47
Bom, o seu blogue tornou-se o meu passatempo!Eeheh!E acho que vou comprar o seu livro -Todos nascemos benfiquistas...- para dar ao meu pai que é um Benfiquista do pior,como todos são,mas duvido que se cure da doença pelo seu livro,já é velhote para crescer...Descobri que escreve no DN!Durante muito tempo era o meu jornal de eleição,actualmente não compro jornais: cortei do orçamento tudo aquilo que não fosse essencial.Obrigada pelo link,vou retribuir!Fico honrada.Coloquei a widget que mostra posts antigos e de vez em quando clico e leio e dou por mim a gostar do que escrevi!!Isso é cómico!Eu não tenho muitos leitores e ainda menos comentadores.(Agora sou também leitora de mim!!)Mas não escrevo para os angariar.Escrevo por impulso,porque gosto e porque me divirto a fazê-lo.Também já li muito mais do que agora.Mas especialmente li livros antes de ir para a faculdade.Era visita regular aqui da Biblioteca Municipal.Por isso acho que o preço dos livros não é desculpa para as pessoas lerem pouco.Há caminhos, é preciso é encontrá-los e percorrê-los.Mas a preguiça impera!Estou convencida de que essas leituras foram cruciais para o meu desenvolvimento,vacinaram-me contra a apatia intelectual...MAs hoje sou uma ovelha tresmalhada!Leio pouco!E quase sempre em serviço e não por prazer!Aprendi a gostar de ler com os livros que havia em casa,do meu pai-Hemingway- e da minha mãe- Maugham!:)
De Rodolfo a 10 de Setembro de 2009 às 13:48
Uma das divisões da minha habitação está repleta de livros. Que nunca li e jamais lerei. Todos os meses, com uma verba que destino a esse fim, aumento a minha colecção de livros. Semestralmente orgazino convívios com amigos e aquela sala revela a sua utilidade: combustível para atear o fogo, material para a canalhada construir castelos.

Ler é um acto ridículo e inútil: distrai-me de problemas essenciais.
De Marco Neves a 9 de Outubro de 2009 às 02:42
Muito bom. Só não percebo a do catálogo "paperback" da Penguin, confesso.

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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