Alguma coisa se passa entre os portugueses e os livros. Veja-se, por exemplo, a prestação do cozinheiro Vítor Sobral no inquérito proustiano da Pública do último domingo. Pergunta: “Com que idade percebeu que falhou na vida?” Resposta: “Até agora não dei por isso.” Pergunta: “Qual a sua qualidade que mais irrita os seus amigos?” Resposta: “A minha capacidade de liderar.” Pergunta: “Com que figura pública se acha fisicamente parecido?” Resposta: “Comigo mesmo!” Um homem importante. Um vencedor. Um líder nato. Uma figura pública de referência. E, portanto, qual é a resposta qual é ela, no momento em que se lhe pergunta que objecto ele faria tudo para salvar de um eventual incêndio lá em casa? Pois claro: “Os meus livros.”
Em Portugal, é assim: um homem pode ser ao mesmo tempo vaidoso e francamente desprovido de sentido de humor – se é “uma figura pública”, então de certeza que foi sobre “os livros” que se fundou. Outro exemplo? A doutora Laurinda Alves. Pouco depois de inundar o debate europeu de propostas tão marcantes como a da promoção de “uma verdadeira democracia europeia” ou a da potenciação de “um modelo europeu de desenvolvimento humano sustentável”, a Sra. D. X tornou-se numa espécie de diva oficial do nosso Verão 2009. Já se sabe: toda a silly season merece a sua diva. E, entretanto, esta mesma revista onde tenho o prazer de escrever foi ouvi-la falar da sua biblioteca pessoal.
Ah, isso é que uma figura pública portuguesa gosta de falar dos seus livros. E, então, lá foi ela por ali fora: a inevitável Sophia e o inevitável Mia Couto, o saltinho do costume a Torga e a paragem obrigatória em Agustina, um momentozinho de propaganda com Novalis e a sempre segura conclusão com a Bíblia Sagrada, embora “com orientação” exegética (a jornalista fez-nos o favor de nos poupar a pormenores). Pelo meio, esta pérola: “É fácil gostar dele [de Luís Sepúlveda]. Mas gosto especialmente de russos.” E, portanto, qual é a resposta qual é ela, no momento em que se lhe pergunta com que autor ela aprendeu a gostar de ler? Pois claro: “Enid Blyton.” “Leio muito”, diz Laurinda. “Eu gosto muito de ler”, diria Catarina Furtado.
Em Portugal, é assim: pergunte-se a uma “figura pública” que livros mais a marcaram e lá desata ela a percorrer o catálogo paperback da Penguin, juntando-lhe entretanto “a Sophia”, “o Torga” e “o Mia”, para aportuguesar um bocado. E eu anseio pela primeira vez que uma destas figuras seja capaz de dizer alguma coisa refrescante, como por exemplo: “Eh, pá, ler é que não. Não gosto de ler.” Naturalmente, se for a Maya ou a Luciana Abreu, não conta: é preciso saber ler mesmo. Mas isso, sim, seria novo. Com vantagens. Quem não passa o dia a ler não passa o dia a fazer a mesma coisa que Laurinda Alves, estando por isso (em princípio) a salvo da travadinha que deu à doutora. Por outro lado, um país onde os livros fossem menos valorizados seria, provavelmente, um país com um dose menor de Manuel Alegre, o que não deixa de ter o seu mistério.
Pelo contrário, vou ao Google.Pt, e escrevo “adoro ler”, com aspas e tudo. Resultado: 162.000 entradas. Mudo para “detesto ler”: apenas 3.500. Desconfiado, experimento “não gosto nada de ler”: escassas 269, sendo que a primeira é de um adepto de futebol que “não gosta nada de ler certas crónicas” que falam mal do seu clube, mas “adora ler outras” que falam bem. Já quando vou a “gosto muito de ler”, fico esmagado: 180 mil entradas. Aparentemente, toda a gente em Portugal gosta de ler, adora ler e não pode mesmo viver sem ler “os clássicos”, “os russos” e “o Mia”. “Eu devoro livros. Devoro, devoro, devoro!”, dizem, numa inspirada metáfora digestiva que recupera in extremis Vítor Sobral para esta crónica.
Por outro lado, os estudos mostram-nos índices de leitura baixíssimos, incluindo níveis de iliteracia quase terceiro-mundistas e uma obsessão por telenovelas-da-TVI (e afins) que nem no Burquina Faso. Aparentemente, é esse o nosso problema: só os leitores se pronunciam nos jornais, na Internet, na televisão – e, se algum dia alguém diz que não vai passar a tarde seguinte a ler, não é nunca como atitude estética, mas antes como mensagenzinha, não deixando nunca de salvaguardar-se com versos de Pessoa (“Ai que prazer/ não cumprir um dever./ Ter um livro para ler/ e não o fazer”). É um rebanho, no fundo. Os livros também têm o seu rebanho – e não é por ser dos livros que deixa de ser um rebanho como os outros.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 22 de agosto de 2009