Há pessoas que acreditam em Deus. Algumas, desprovidas de fé, acreditam noutras pessoas – e umas quantas até preferem acreditar em si próprias, o que é talvez o mais deprimente de tudo. Eu acredito no jogo. Sempre acreditei. Na infância, e quando descia sobre nós o nevoeiro, ensombrando o carácter dos homens e amalgamando o mundo todo numa só massa informe, pardacenta e desesperançada, confortava-me a ideia de que no dia seguinte, chovesse, fizesse sol ou permanecesse nevoeiro, tinha treino de futebol. E, entretanto, toda a minha vida tem sido vivida sob esse signo.
Ao longo dos anos, experimentei de tudo. Joguei ténis, fiz corridas, aprendi o snooker inglês, mudei para o bilhar às três tabelas, apaixonei-me pelo golfe. Nunca acreditei no jogo de casino, porque não há como acreditar nele: no fim, a casa ganha sempre mesmo. De resto, um casino tem poucas potencialidades nos domínios da superação. Aquilo em que eu acredito, na verdade, é na dimensão metafórica do jogo. Na brincadeira, sim (porque não?) – mas sobretudo na superação. Mesmos nos anos mais sombrios, em que a minha actividade desportiva se reduziu a pedalar numa bicicleta entre as quatro paredes de um ginásio, não deixei nunca de tentar pedalar mais do que o ciclista do lado. E o objectivo nunca foi propriamente pedalar mais do que ele: foi levar-me a mim próprio a pedalar mais do que ele – foi levar-me a mim próprio a superar-me mais do que qualquer outro conseguisse superar-se.
E, porém, mesmo a mim, jogador inveterado, esta crescente infantilização da vida adulta incomoda. Até porque ela não se limita ao exercício do jogo, de que vem tantas vezes disfarçada: alargou-se a verdadeiramente a todos os domínios do nosso quotidiano. Liga-se a televisão para ver um jogo de futebol (cá está o jogo) e, no intervalo, é-se metralhado com quinze minutos de publicidade a joguinhos de computador, a filmes do Harry Potter e a discos do Tony Carreira. Vai-se ao cinema e, para além do Harry Potter, o cartaz resume-se a filmes de animação, a histórias fantásticas com elfos e dragões e a filmes de acção em que os protagonistas fazem corridas com carrinhos cheios de ailerons e de kits. Liga-se a rádio e as estações estão divididas em duas categorias apenas: aquelas que passam Tony Carreira e aquelas que passam “música dos anos 80”, toda ela muito divertida. Sai-se à rua e as raparigas estão todas vestidas com roupa brincalhona, com bolinhas e lacinhos e sapatinhos e sei lá mais o quê.
Resultado: brincadeira com fartura, superação nenhuma. Ainda no outro dia, e ao parar circunstancialmente num café ao lado de um jornal, surpreendi duas jovens jornalistas falando de Tony Carreira. Conhecia uma delas, mas muito vagamente, pelo que nem sequer as fui cumprimentar. E, no entanto, ali estavam elas: falando de Tony Carreira – e no seu tom nem sequer havia a velha sabedoria de redacção, do tipo: “Vá, vamos lá enganar o povo com mais uma peça ou duas sobre o Tony, que de alguma forma temos de vender as notícias verdadeiramente importantes.” Não: elas efectivamente gostavam de Tony Carreira. Achavam-lhe piada, pelo menos. Divertiam-se com a sua música. Da mesma forma que, nos tempos de faculdade, se divertiam com Quim Barreiros, talvez: rindo-se dele – mas, em todo o caso, rindo-se cada vez menos.
E eu acho que um jornalista não pode ouvir Tony Carreira. Dir-me-ão (dizem-me sempre coisas deste tipo): “Gostos não se discutem.” Era o que faltava. Gostos discutem-se, sim senhor. Não vejo mesmo, aliás, nada de mais discutível do que o gosto. E um jornalista não pode gostar de Tony Carreira. Um adulto não pode gostar de Harry Potter. Um homem não pode passar as noites de sábado a jogar ao PES com os amigos ou os domingos à tarde a fazer corridas com outros homens na Ponte Vasco da Gama, fugindo à polícia. E, se pode, então está explicado porque é que este mundo virou uma espécie de grande coutada para tunas e claques de futebol, juventudes partidárias e associações académicas. Infantilizámo-nos de vez – e, naturalmente, jogando no campo deles, perdemos por K.O..
Há anos que vimos apregoando todos, os supostos inteligentes: um homem não se pode levar muito a sério. Pois talvez devesse. Já era altura de pararmos com essa coisa do “explorar a criança que há em nós”, não?