Basicamente, a consciência e a competência nunca se cruzam. Em não havendo consciência, nenhum homem alguma vez aprenderá a jogar golfe. Mas, em não sendo capaz de libertar-se dessa consciência no momento certo, ninguém alguma vez conseguirá efectivamente jogá-lo. E um dos maiores desafios que se colocam a um jogador profissional é precisamente o de voltar a pôr-se a salvo da dita consciência depois de ela ter tornado a possuí-lo (não, o verbo não é inocente).
Foi isso, até certo ponto, que Filipe Lima explicou na conferência de imprensa de ontem. Depois de vários meses preocupado com o swing perfeito, o jogador português passou outros tantos a tentar deixar de pensar nele. O resultado é o que aí está: -10 ao fim de 36 buracos, terceira posição ex-aequo à partida para as duas rondas do fim-de-semana – e, no horizonte (é mais do que legítimo sonhá-lo), a maior vitória de toda a sua carreira.
Dizia Dave Hill, guitarrista dos Slade e ávido golfista amador: “O swing de golfe é como o sexo. Não podes estar a pensar na mecânica da coisa enquanto a praticas.” Foi isso que Filipe Lima reencontrou: o prazer quase erótico (quase, não: o prazer erótico) do swing. O problema é que, no golfe, até isso é uma aprendizagem. Haverá alguma coisa mais contra-natura do que este jogo?
CRÓNICA (Especial Portugal Masters)
O Jogo, 14 de Outubro de 2010
(imagem: © www.desporto.publico.pt)
Há um velho aforismo de golfe, criado por Leon Griffiths que vale para quase tudo. “O golfe é como um caso de amor. Se não o levas a sério, não tem piada nenhuma. Se levas, parte-te o coração”, dizia Griffiths. Pois o princípio aplica-se a qualquer jogo ou competição, menos a um pro-am. Num pro-am, os amadores procuram obter tantos birdies net quanto consigam, mas sobretudo não querem ser eles a provocar o declínio da equipa. Já os profissionais tentam oferecer aos seus amadores o melhor de si, mas em nenhum caso deixar de tentar sobretudo concatenar o campo para as quatro rondas competitivas que começam no dia seguinte.
No fim, dá-se esse contra-senso: perder não nos parte o coração (o que não deixa de ter o seu constrangimento), mas em todo o caso foi um dia com piada. E jogar ao lado de Matteo Manassero tem efectivamente piada. Porque, primeiro, olhamos para ele, com a sua carinha bochechuda de bebé pontilhada por uma miríade de borbulhas de acne, e sentimo-nos na presença de um adolescente. E porque, depois, é ele quem sai das marcas de campeonato, dois quilómetros lá atrás – e somos nós, homens de barba rija, quem sai dali das amarelinhas, com o coração nas mãos, em esforço perante a necessidade de um carry de 190 metros, aflitos porque há um lago à esquerda.
A Matteo Manassero, apetece levá-lo para casa, dar-lhe livros para ler, explicar-lhe como se faz a barba, ajudá-lo com o TPC, contar-lhe o pouco que sabemos sobre as mulheres. E apetece também dar-lhe um par de palmadas quando falha um putt que até nós metíamos, quando deixa um chip-and-run comprido e num downslope – e, ainda assim, continua a sorrir, ignorante de que num putt desses estará um dia, para ele, a diferença entre o Céu e o Inferno. Não vale a pena: é deixá-lo sorrir enquanto pode. Algures, também ele aprenderá o medo – e, então, há-de haver momentos em que trocaria dez anos de vida pela oportunidade de sair das amarelas. Será essa a nossa vingança. Modesta, mesmo assim.
1. Gosto de jogar golfe a pares. Gosto de jogar fourball, gosto de jogar foursomes e gosto mesmo de jogar Texas Scramble, modalidade preguiçosa que, não sendo propriamente golfe, ao menos faz bem ao ego. Tenho jogado a pares com amigos e tenho jogado a pares ao lado de pessoas com quem não me identifico minimamente. A maior parte das vezes, jogo razoavelmente bem – e hoje, depois de ter já percebido que nunca conseguirei disputar um major, que não chegarei a ter cartão do Tour e que a própria oportunidade de continuar a arrancar relva por mais uns anos no meu home club já será um privilégio (foi uma aprendizagem difícil, mas eu já estava treinado: também tinha vindo a aprender que nunca namoraria com Kate Winslet, que Beyoncé jamais me serviria o pequeno-almoço na cama e que, aliás, nem a própria Rita Pereira, que não é mais do que a Rita Pereira, alguma vez aceitaria deixar-se fotografar comigo para uma revista “do coração”), se tenho expectativas de algum dia conseguir meter o meu nome no palmarés de um campeonato nacional, mesmo que meio rasurado, através de um torneio de pares. Pares absolutos, pares mistos, pares seniores (se um dia os houver) – por aí passará, tenho quase a certeza, o meu brilhante futuro como arrancador de relva.
Jogar a pares permite-nos dividir as responsabilidades, o que tem sempre a sua dose de conforto. Mas, mais do que isso, jogar a pares permite-nos partilhar o tempo. E o tempo, nesta modalidade tão bela como doentia, tão maravilhosa como esquizofrénica, é o mais importante de tudo. O que faz você com o tempo livre de que dispõe entre shots? Eis a primeira pergunta que lhe fará qualquer psicólogo de golfe que algum dia lhe ocorra consultar. Em que é que você pensa? Qual é a sua rotina mental? Como é que você desliga do shot anterior e aborda o seguinte? Pois, quando eu jogo individualmente, desligo-me da pancada anterior – e menos ainda preparo a pancada seguinte. Passo o primeiro terço do tempo a odiar-me por jogar tão pior do que aquilo que gostaria – e, quando enfim tento mudar para outros pensamentos, logo o meu cérebro parte em busca das coisas em que ainda serei ao menos razoável na vida (inclusive como cobiçador oficial de Kate Winslet, Beyoncé e Rita Pereira, queiram-no elas ou não), desconcentrando-me para o shot imediato. Já a pares não acontece nada disso. A pares, a tensão é dividida. Conversa-se mesmo – e conversa-se sobre o que é importante: o shot a seguir.
Porque, se há um abismo num jogo a pares, não é o de ter estragado já bastante o jogo: é o de estragá-lo ainda mais a partir dali. Num jogo individual, acontece-nos isso a toda a hora: fazemos um duplo bogey no 2, metemos uma bola out of bounds no 4 – e, pronto, lá se foi o handicap todo, lá se foi o jogo inteiro, lá se foi a nossa única manhã de lazer em tantos dias, lá se foi uma semana completa de vida. Resultado: arrastamo-nos penosamente pelo campo até ao fim da ronda, à espera da hora de almoço. A pares, não. A pares é uma chatice dar um mau shot, mas é verdadeiramente grave dar outro mau shot logo a seguir. É trágico para nós, mas é trágico também para outrem – e é, portanto, trágico para nós ainda mais uma vez. No fim, fomos capazes de reconcentrar-nos repetidamente. E, quando se vai a ver, pode-se bem estar lá em cima, na classificação, quando na verdade se pensava que o jogo fora mau. Bem vistas as coisas, os resultados de uma classificação de pares são sempre menos exigentes do que os resultados de uma classificação individual. E num jogo de pares joga-se apenas para a classificação, nunca para o score.
Por mim, não vejo nada melhor. Ainda prefiro jogar contra os adversários do que contra o campo. Ainda prefiro defrontar homens do que defrontar Deus. Ou o diabo.
2. Vou ouvindo cada vez mais relatos sobre a existência de aldrabice no golfe, e aqui há umas semanas tive a oportunidade de senti-la na pele. Acabei um torneio com 9 acima do par. O campo era técnico, havia bastante vento – fora uma ronda razoável, no fundo. Noutra formação, porém, um jogador fez uma ronda de 11 acima e entregou um cartão de 6 acima. Sabe-o ele, sei-o eu e sabe um dos seus companheiros de torneio a que, porém, não coube marcar-lhe o cartão. Fiquei zangado, mas isso é o menos. O pior é esta certeza absoluta de que vai acontecer outra vez: se não a mim, a outro qualquer. “Paciência, Joel. Ele só se mente a si próprio”, diz-me o António, a dita testemunha ocular. Problema: desde quando um homem capaz de roubar alguma vez se deixará constranger por mentir a si próprio?
SCORECARD. Golfe Magazine, Agosto de 2010.