Sábado, 27 de Agosto de 2011
publicado por JN em 27/8/11

Não há. Tive uma semana daquelas, sem espaço para engendrar nem uma das cinco ou seis ideias entre as quais habitualmente (vocês pensavam que isto era feito à base do quê, inspiração?) escolho a que me parece melhor – e, quando acordei esta manhã, fui de imediato percorrido pelo calafrio da falta de crónica. No entretanto, ainda escrevi dois textos menores e saí para um comentário de televisão, deriva ao longo da qual esperava que me aparecesse uma crónica. Mas não: apareceram-me seis posts para o FaceBook, um monte de pequenas soluções e de novos dilemas para um livro que já devia ter acabado, uma série de ideias sobre afazeres domésticos e compromissos burocráticos e diligências sociais – e, quanto a crónica, nada. Agora, são dez da noite de domingo, Lisboa está enfim adormecida, preparando-se para mais uma semana de trabalho, e eu ainda nem sequer fechei a semana anterior. Não tenho crónica. Não tenho crónica e não tenho tempo, porque já estou em cima da hora para entregar a crónica.

Passei a tarde de volta de ficheiros com possibilidades de crónica, mas sem sucesso. Todas as semanas arquivo as quatro ou cinco ideias que considero, mas depois abandono. As mais fracas vão para uma vala comum. As de que gosto mais ganham um ficheiro próprio. Guardo-os por etiquetas: ideias completamente por trabalhar, etiqueta amarela; ideias bem encaminhadas, etiqueta laranja; ideias quase prontinhas a safar-me num dia em que não tenha crónica, etiqueta vermelha. Ao longo dos dias, das semanas, dos meses, muitos ficheiros vão mudando de cor. Ponho lá coisas dispersas que me vão ocorrendo, e que encaixam aqui ou ali, às vezes na qualidade de argumentos e outras ainda (são as melhores) na qualidade de idiossincrasias, de pequenas demagogias, de grandes obsessões. Por esta altura, e para além da vala comum, etiquetada a verde, a pasta tem 197 documentos, dos quais 38 a vermelho. Acabo de percorrê-los pela segunda vez. Durante a tarde, trabalhei em oito deles, quase sempre seguindo o meu modelo mais seguro, e a que os teóricos talvez chamassem “fórmula” (mas injustamente, pelo menos para ele). No fim, abandonei-os a todos. Alguns encaminhavam-se para o estatuto de comentário, outros de artigo, outros ainda de análise. Nenhum para o de crónica.

Não me faltam temas. Um dia destes, e com a maior das facilidades, vou zurzir nos gestos maneiristas com que os moderninhos provam o vinho, na forma acéfala como tantas vezes reduzimos a opinião aos argumentos “gosto” e “não gosto” e nesta nova mania, tão em voga entre notórios falhados, de chamar aos filhos os seus próprios nomes, acrescentados do pós-apelido “Júnior”. Vou elogiar os homens que vestem um fato de propósito para andar de avião, os funcionários intermédios que regressam do almoço com o casaco pelos ombros e os trolhas que se amontoam nas furgonetas que às segundas e às sextas-feiras vogam pela A1. Mais: vou fazer a apologia da rotina, dos rádios de pilhas, do Sporting de Domingos Paciência, do Second Love, da pornografia em geral – e depois ainda vou declarar o meu crescente ódio a óculos escuros, a pessoas boazinhas, à FNAC, ao optimismo e aos sonsos, que na verdade apenas odeio por não conseguir encontrar em mim também a mais útil de todas as grandes qualidades humanas: precisamente a sonsice. O que me parece é que algum tempo me separa ainda do momento em que serei capaz de transformar esses temas em crónica. Talvez se pudesse dizer que esse tempo é ele próprio a crónica. Mas isso já seria pôr-me de novo a tentar escrever uma crónica, coisa que hoje, manifestamente, não consigo.

Quando comecei esta série de crónicas – há agora o quê, seis, sete anos? –, disse a mim próprio: “Um dia, Joel, vai faltar-te a crónica e terás a tentação de escrever sobre o facto de não teres crónica. Tens o direito a isso, mas só uma vez. Certifica-te de que estás mesmo desesperado.” Pois eis aqui esse dia. Agora vou tirar uma semana de férias, que talvez seja o melhor para todos. Prometo passá-la à procura de crónicas.

* Esta coluna interrompe-se uma semana, para férias, e regressa a 11 de Setembro

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 20 de Agosto de 2011

(imagem: © www.lcarlateresa.deviantart.com)

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Domingo, 21 de Agosto de 2011
publicado por JN em 21/8/11

Aos onze anos, o meu pai apascentava ovelhas em Porto de Mós. Levantava-se de madrugada, era destratado por patrões abrutalhados, alimentava-se desadequadamente, levava coices de mulas neuróticas e, em geral, tinha uma vida semelhante à de uma personagem de Steinbeck.

O serviço militar, a guerra colonial e, em particular, as Tropas Pára-Quedistas Portuguesas abriram-lhe horizontes e deram-lhe oportunidades, que na verdade foram as minhas oportunidades também. Mas a sua pré-história de sobrevivência, tal como a vontade indómita de que teve de socorrer-se para superar a sua condição, incrustaram-se-me no carácter.

Tenho de deixar de julgar as pessoas em função apenas da sua ética de trabalho, que me ponho velho. Mas a questão é que, quando olho para a malta de hoje (por favor, deixem-me usar a expressão “a malta de hoje”), sinto-me bem mais próximo do meu pai do que dela. E não falo apenas do ponto de vista moral (pobre daquele que, aos trinta, não chegar à conclusão de que, afinal, o pai é o melhor homem que já encontrou). Falo também do ponto de vista prático.

Há quinze ou vinte anos, apesar de tudo, ainda se fazia um esforço. A ideia que tenho é que, hoje em dia, já ninguém faz um esforço – e, se tenta, não sabe como fazê-lo, porque a tenacidade se diluiu no tempo, porque algures um elo se quebrou, provavelmente com a prosperidade. Nós não somos um povo ao qual a prosperidade assente bem, ou sequer faça bem.

Adiante. Na semana passada, precisei de comprar um estrado para uma cama. Está bem, está bem: bastava-me ir ao Ikea, à Moviflor ou a qualquer outra mega loja de mobiliário formatado, que tinha dezenas de opções a todos os preços, incluindo estrados quase dados. Agora já sei isso, mas na altura não sabia (vocês talvez ficassem surpreendidos com a quantidade coisas que eu não sei, nomeadamente sobre a vida real).

De maneira que liguei para seis carpintarias de Lisboa diferentes, a encomendar uma prancha de tabopan com 2,00 m por 2,20 m. Está bem, está bem: os estrados das camas já não podem ser feitos em tabopan, porque os colchões precisam de respirar, caso contrário vêem reduzida a sua vida útil. Agora já sei isso, mas na altura não sabia (vocês talvez ficassem surpreendidos com a quantidade coisas que eu não sei sobre a dimensão animal dos objectos, embora também orgulhosos do que tenho aprendido sobre a dimensão humana dos animais).

O facto é que, das seis carpintarias em causa, uma não atendeu, outra disse-me para deixar nome e número de telefone, que o marceneiro logo me ligava (não ligou), outra tinha o operador de máquinas de férias, outra precisava primeiro de confirmar se havia tabopan em stock e as restantes duas lamentavam muito, mas só se dedicavam a trabalhos industriais para empresas.

A nenhuma interessou a minha obra de cinquenta euros – são trabalhos pequenos, dão mais despesa do que lucro. A nenhuma interessou sequer despistar a possibilidade de, atrás desse trabalho, virem outros – um gajo que quer uma prancha de tabopan nunca vai pedir mais do que uma reparação nas persianas ou um afagamento no soalho. E a nenhuma, naturalmente, o sentido de missão se impôs sobre o interesse contabilístico – que diabo é isso, afinal, “sentido de missão”?

E eu, que já fui um gastador, fico a pensar que a crise ainda não chegou, a não ser àqueles que perderam os empregos. E mesmo a alguns desses, aliás, não chegou, caso contrário não pegavam tantos deles nas indemnizações para irem comprar carros novos, que os antigos, coitados, já estavam a ficar um bocadinho descaídos.

De resto, os taxistas continuam a chatear-nos a molécula de cada vez que a corrida é inferior a cinco euros, o que significa que o negócio ainda não vai tão mal quanto isso. Os festivais de Verão tornaram este ano a bater recordes de afluência, o que nos demonstra que muitos orçamentos familiares ainda não levaram a pancada. E qualquer contestação que vá havendo ao estado de coisas ainda se resume ao protesto puro e simples, feito quase por desporto, sem subversão criativa, sem malícia, sem cultura.

Tudo bem: por mim, fui ao Ikea e ainda trouxe de lá um candeeiro. Mas, se isso resolveu o meu problema, não resolve o problema da economia portuguesa. Continuamos a viver, tenho a impressão, como se estivéssemos em 1998. E, quando isto bater, já será tarde de mais.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 20 de Agosto de 2011

(imagem: © www.leigosnanet.blogspot.com)

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Domingo, 7 de Agosto de 2011
publicado por JN em 7/8/11

Por esta altura, já estou mais do que conformado com a infantilização da espécie. Virem-me com Balzac ou com Lightning McQueen, o carro falante de Radiator Springs, já é igual ao litro – e se de repente se reúne à minha volta uma horda aos berros, que quer ir ver os vampiros, ou os lobisomens, ou os dinossauros, ou os zombies, ou os super-heróis, ou os extra-terrestres, ou os dragões, ou os elfos, ou os duendes, ou os hobbits, ou os ogres, ou as sereias, ou os feiticeiros, ou os videntes, ou os mentalistas, ou os guerreiros azuis, ou os carros falantes, ou os brinquedos falantes, ou os cães falantes ou outra trampa qualquer falante que os da minha idade andem loucos por ir ver, desculpando-se com “os miúdos” de forma a disfarçar a sua própria incapacidade para processar outra coisa que não filmes para crianças e livros para crianças e jogos de computador para crianças, eu ergo o copo e não me ocorre dizer senão: “Epá, comprem bilhete para mim, que eu também quero ir ouvir falar o sacaninha do automóvel!”

Ser capaz de, em momentos seleccionados, enfiar um barrete de sorriso na cara é coisa que, ao final de uma certa experiência neste mundo, se inscreve no próprio manual de instruções da conservação de amigos. Há gente na minha vida que só gosta filmes de brincar, pronto. É chato, mas é assim. De resto, sempre me orgulhei de ter, entre as pessoas da minha mais restrita estimação, um pouco de tudo. Tenho ricos e pobres, intelectuais e brutamontes. Tenho portugueses e brasileiros, goeses e açorianos. Tenho académicos e arquitectos, contabilistas e padeiros. Tenho sportinguistas e benfiquistas, portistas e gajos do Belenenses. Tenho gente de direita e gente de esquerda, gente que não liga à política e até um socialista, que por acaso só no outro dia descobri que era socialista, mas nem por isso disse nada. Em havendo folia, contem comigo. Se é para comer e beber, contem comigo. Se é para ir à bola, jogar 18 buraquinhos, ver uma peça dos Artistas Unidos, chamar nomes aos tipos da Emel – enfim, se é para fazer uma coisa divertida, contem sempre comigo.

Naturalmente, contem comigo também para o cinema. E, em sendo o filme imbecil, pois paciência. Assim como assim, adoro pipocas, como já aqui assumi, de resto num acto não totalmente desprovido de coragem (sobretudo tendo em conta que ainda gostava de vos vender uns livrinhos).

Agora, a filmes em 3D não vou mais. Não vou. Porque o cinema em 3D, seja em que sala for, fale a intriga do que falar, tenhamos nós à volta a equipa de luta greco-romana do Benfica ou  um autocarro de turistas finlandesas em trânsito para Albufeira, é sempre um barrete – e um barrete tão grande que nem para conservar um amigo vale a pena enfiar. Ainda no outro dia li um artigo de Walter Murch, editor oscarizado e responsável pela montagem de “Apocalypse Now” ou “O Paciente Inglês”, em que ele dizia que o 3D não funciona porque cria problemas de perspectiva e de panorâmica. Talvez tenha razão. A mim, faz-me reflexo. E inquieta-me sair de casa para ver um filme, pagar um bilhete ao dobro do preço, comprar uns óculos especiais, passar os primeiros quinze minutos num tira-óculos, põe-óculos, tira-óculos, põe-óculos, tira-óculos, põe-óculos, ao sabor da publicidade e das apresentações – e depois ainda ver o filme todo cheio de reflexos, só por causa de um bocadinho mais de profundidade de campo, que ainda por cima tem alguma expressão com a tecnologia Real 3D, mas não tem quase nenhuma com a tecnologia Digital 3D, que é o que por aí mais há.

Querem a minha opinião? É golpe. É marketing do mau. É banha da cobra. Pelo amor de Deus: onze euros? Por onze euros, e numa economia assim, o mínimo que eu peço é que a Scarlett Johansson saia da tela e se venha sentar ao meu lado, no escurinho. De resto, é só fazer as contas. Uma família de quatro pessoas vai ao cinema. Cada um paga onze euros de bilhete e mais meio euro pelos óculos. Se comerem pipocas, então a conta sobe: mais uns três euros por pessoa, em média, entre as pipocas e as bebidas. Factura (e isto sem gasolina nem hambúrgueres no McDonalds): 58 euros para um cineminha em família. Onze contos e seiscentos, como se dizia no tempo em que o cinema não era quase todo uma bodega.

Eu quero é que o senhor Ridley Scott vá gozar com a cara de outro.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 6 de Agosto de 2011

(imagem: © www.ps3blog.net)

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
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"José Mourinho, O Vencedor",
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"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
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