Como uma bofetada numa criança faz desmoronar um grupo de amigos. Retrato de um subúrbio australiano que se pretende também de um tempo. É o quarto romance do australiano Christos Tsiolkas e ganhou o Commonwealth Writers’ Prize 2009
No momento em que Harry espanca Hugo, já todos nós, leitores, o espancámos várias vezes em pensamento. “Espancar”, na verdade, é um verbo demasiado forte para Harry, que se limita a dar-lhe uma bofetada. Mas não para nós: nós preferíamos tê-lo visto espancado mesmo, tão irritante é o miúdo, tão agressivo é o seu pai alcoólico, tão autoritária e ridícula e insuportável a sua mãe new age. E, contudo, no instante em que é perpetrada, aquela bofetada não apenas se faz ouvir em cada recanto do jardim onde Hector e Aisha recebem os amigos para um churrasco de sábado à tarde, acabando abruptamente com a festa, mas como que ecoa pelos subúrbios de Melbourne, pela Austrália, pelo mundo todo. Hugo não é filho de Harry, e o primeiro drama é esse. E, porém, o desmoronamento daquele grupo de amigos, de imediato dividido entre os que também teriam esbofeteado Hugo, que naquele instante ameaçava outra criança (precisamente o filho de Harry) com um taco de críquete, os que jamais esbofeteariam uma criança, indefesa mesmo quando de trato difícil, e os que agora querem é distância, tão óbvia é a folia colectiva em que os contendores mergulharam, não parece tão resultante da bofetada em si como do desconhecido mas irreprimível desejo de provocá-lo ao primeiro pretexto. E então vem ao de cima tudo o que cada um deles tem de mau, incluindo o classismo, o sexismo, o racismo e todos os demais preconceitos fundamentais, que efectivamente se vem a verificar concentrarem-se todos em Harry, mas na verdade se dispersam pelos amigos em diferentes combinações. Cada um dos oito capítulos tem como centro de consciência um dos convivas presentes no churrasco, o que faz derivar a narrativa para os dilemas pessoais de cada um, que por outro lado passam a funcionar em tensão com as ponderações sobre se Harry é pouco menos do que um assassino ou o mais inesperado dos justiceiros. O pano de fundo é a prosperidade económica do início do século. Ao longe, no entanto, já se fazem ouvir os trovões que anunciam a crise, como Auden dizia que anunciavam a morte em dia de piquenique – e, se o colapso estiver determinado a demorar-se, aqueles gregos, indianos, árabes, aborígenes, latinos e britânicos que ali se reúnem, no churrasco com que o livro começa e a que todos regressam diariamente, inquietos, estão mais do que dispostos a apressá-lo. O romance é de 2008 e chega-nos já com o carimbo de vencedor do Commonwealth Writers’ Prize, que se sucedeu a uma nomeação para o Man Booker. Nem todas as oito narrativas têm a mesma força, nem seria de esperar tal coisa. Há diálogos menos inspirados, imagens pouco conseguidas, figurantes banais, uma certa perda de fôlego com o avançar das páginas – e depois uma perda quase definitiva dele, a seguir ao capítulo centrado no velho Manolis. De resto, o lirismo está muito mais na interioridade das personagens, nos abismos e comoções que vão escorrendo dos seus mal controlados silêncios, do que propriamente naquilo que é expresso, por elas ou pelo narrador. Mas a sátira a uma certa contemporaneidade, incluindo as suas convenções e as suas armadilhas, a sua cultura pop e o seu mainstream, a sua escassa capacidade de amar e a sua imensa culpa – a sátira a um certo tempo, no fundo –, é implacável. E os tipos sociais, embora às vezes forçados, servem-na com diligência. Escasseiam, é verdade, os momentos de contemplação do belo. Mas Christos Tsiolkas, de que este “A Bofetada” é o quarto romance, esforça-se por não ir além daquilo que as pessoas sobre que escreve conseguiriam decifrar – e talvez isso não seja um completo absurdo.
Crítica Literária, Ler, Dezembro de 2011