Sábado, 31 de Julho de 2010
publicado por JN em 31/7/10



Às vezes guardamos as coisas também em função das datas em que elas ocorreram. Por exemplo: se eu me lembro tão bem de que um dia caiu na Terra Chã uma granizada tal que nem os automóveis conseguiam brincar às suas habituais corridinhas, foi porque nesse dia fiz dezassete anos – e porque, para além de apanhar uma daquelas constipações que nunca mais passam, tirei então uma das poucas fotos que vim a resgatar à adolescência. Se eu me lembro tão bem que Carlos Queiroz foi um dia competente, é porque faço anos a 3 de Março – e porque foi precisamente a 3 de Março de 1989, data do meu décimo quinto aniversário, que Abel desferiu aquele petardo com o pé esquerdo que me fez sentir campeão do mundo pela primeira e única vez na vida. E, se hoje me lembro tão bem de Carla, também será, de alguma forma, porque ela morreu igualmente a 3 de Março, mais concretamente no dia em que eu fazia dezasseis anos.


Não éramos amigos. Ela era um pouco mais velha e incomparavelmente mais bonita – e às mulheres bonitas do liceu de Angra, nunca percebi porquê, jamais sobreveio o entendimento sobre os muitos encantos do meu acne. Na verdade, Carla era namorada do meu professor de Educação Física, um malandrim bonito e criativo que hoje vive na Finlândia mas passa dois terços do tempo no Japão, a treinar patinadores olímpicos. Adiante: Carla morreu em cima da sua scooter, abalroada por um condutor temerário que se despistou no viaduto sobre Vale de Linhares. Não sei se o homem estava bêbedo ou não: sei que foi assim que quisemos todos vê-lo – e que no dia seguinte, bem de manhã, a professora de português, uma mulher linda e inteligente que só muito anos depois, quando nos reencontrámos em papéis diferentes, eu percebi que não era tão linda nem tão inteligente quanto eu pensava, lá nos levou todos à sala de espera do tribunal, onde poderíamos ver ao vivo o assassino, que devia ser presente ao juiz.


Mais sensato do que os vários professores que acorreram à comarca com os seus pequenos exércitos atrás, o magistrado nem chegou a deixar sair o homem dos calabouços. Lembro-me de que, de alguma forma, me senti aliviado com isso. Por outro lado, eu levava um murro preparado para dar naquele homem, assim que ele passasse no corredor. Todos o levávamos – e, quando enfim voltámos para as aulas, restaurada a ordem na escola, passou ainda bastante tempo até que conseguíssemos vencer a revolta e a frustração de alguém que se fizera ao caminho com um murro para dar e, afinal, fora obrigado a voltar com ele no bolso. Pois hoje, quando vejo as altercações dos chamados populares em torno de assassinos acabados de capturar pela polícia (como o serial killer de Carqueja, sim, exactamente como fez o povo da Lourinhã com o serial killer de Carqueja), é desse dia que eu me lembro: do dia a seguir ao meu décimo sexto aniversário. O dia em que eu senti revolta e alívio ao mesmo tempo. Uma revolta que não tive nunca dificuldades em compreender e um alívio que só muitos anos mais tarde vim a digerir por completo.


Porque nem tudo nos gestos daquelas pessoas, como nos gestos que nós próprios estávamos prontos a empreender nesse malfadado dia de Março de 1990, é raiva. Há ali raiva, sim. Mas boa parte daquilo é ainda alteridade: apesar de todos os nossos defeitos, vem a verificar-se que há, afinal, alguém pior do que nós – e dar-lhe um belo murro público, no momento em que ele começa enfim a subir o calvário que há tanto merece, é a melhor forma de deixá-lo claro. No fim, tudo se resume de novo à pertença. Mais do que sentir raiva, nós precisamos de demonstrar que sentimos tanta raiva quanto o próximo homem de bem, que somos homens de bem também e que aos homens de bem não resta outra coisa senão aceitar-nos no seu seio e deixar-nos vestir com eles a camisola dos homens de bem. Numa palavra, ainda que composta? Auto-estima. Não me digam que é uma invenção new age, porque não é. Vivemos desesperados por ser o “um dos nossos” de alguém – e é isso que, dentro de nós, transforma a raiva em ódio. Na adolescência como até ao fim.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 31 de Julho de 2010

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De Anónimo a 3 de Agosto de 2010 às 00:34
Concordo em grande parte. As manifestações colectivas de ódio entroncam num desejo de sentir que partilhamos uma raiz comum e que nos podemos reconhecer nos outros, os normais, os nossos pares por oposição aos monstros que, tão ostensivamente, desprezamos.
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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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