Não éramos amigos. Ela era um pouco mais velha e incomparavelmente mais bonita – e às mulheres bonitas do liceu de Angra, nunca percebi porquê, jamais sobreveio o entendimento sobre os muitos encantos do meu acne. Na verdade, Carla era namorada do meu professor de Educação Física, um malandrim bonito e criativo que hoje vive na Finlândia mas passa dois terços do tempo no Japão, a treinar patinadores olímpicos. Adiante: Carla morreu em cima da sua scooter, abalroada por um condutor temerário que se despistou no viaduto sobre Vale de Linhares. Não sei se o homem estava bêbedo ou não: sei que foi assim que quisemos todos vê-lo – e que no dia seguinte, bem de manhã, a professora de português, uma mulher linda e inteligente que só muito anos depois, quando nos reencontrámos em papéis diferentes, eu percebi que não era tão linda nem tão inteligente quanto eu pensava, lá nos levou todos à sala de espera do tribunal, onde poderíamos ver ao vivo o assassino, que devia ser presente ao juiz.
Mais sensato do que os vários professores que acorreram à comarca com os seus pequenos exércitos atrás, o magistrado nem chegou a deixar sair o homem dos calabouços. Lembro-me de que, de alguma forma, me senti aliviado com isso. Por outro lado, eu levava um murro preparado para dar naquele homem, assim que ele passasse no corredor. Todos o levávamos – e, quando enfim voltámos para as aulas, restaurada a ordem na escola, passou ainda bastante tempo até que conseguíssemos vencer a revolta e a frustração de alguém que se fizera ao caminho com um murro para dar e, afinal, fora obrigado a voltar com ele no bolso. Pois hoje, quando vejo as altercações dos chamados populares em torno de assassinos acabados de capturar pela polícia (como o serial killer de Carqueja, sim, exactamente como fez o povo da Lourinhã com o serial killer de Carqueja), é desse dia que eu me lembro: do dia a seguir ao meu décimo sexto aniversário. O dia em que eu senti revolta e alívio ao mesmo tempo. Uma revolta que não tive nunca dificuldades em compreender e um alívio que só muitos anos mais tarde vim a digerir por completo.
Porque nem tudo nos gestos daquelas pessoas, como nos gestos que nós próprios estávamos prontos a empreender nesse malfadado dia de Março de 1990, é raiva. Há ali raiva, sim. Mas boa parte daquilo é ainda alteridade: apesar de todos os nossos defeitos, vem a verificar-se que há, afinal, alguém pior do que nós – e dar-lhe um belo murro público, no momento em que ele começa enfim a subir o calvário que há tanto merece, é a melhor forma de deixá-lo claro. No fim, tudo se resume de novo à pertença. Mais do que sentir raiva, nós precisamos de demonstrar que sentimos tanta raiva quanto o próximo homem de bem, que somos homens de bem também e que aos homens de bem não resta outra coisa senão aceitar-nos no seu seio e deixar-nos vestir com eles a camisola dos homens de bem. Numa palavra, ainda que composta? Auto-estima. Não me digam que é uma invenção new age, porque não é. Vivemos desesperados por ser o “um dos nossos” de alguém – e é isso que, dentro de nós, transforma a raiva em ódio. Na adolescência como até ao fim.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 31 de Julho de 2010