Sábado, 17 de Abril de 2010
publicado por JN em 17/4/10

Entre a muitas razões por que detesto falar ao telefone, a primeira é de natureza (digamos) tecnológica. Hoje em dia, temos máquinas para tudo – e máquinas boas. Temos GPS que nos indicam a farmácia mais próxima ao fim de uma noitada bem-sucedida. Temos bimbys que cozinham sozinhas no caso de nem sequer ser preciso fazer a noitada. Temos até robôs que fazem as vezes no caso de tudo o mais ser fantasia. O que não temos é um telefone com que se possa ligar no dia seguinte à robôa sem que a chamada esteja sempre a cair.


Cidadão no meu estado, então, está mesmo à morte. Não, não falo das noitadas: estou retirado desse mercado há anos. Para dizer verdade, só recorro a graçolas brejeiras como as do primeiro parágrafo a ver se consigo prender-vos por mais umas linhas, que ando a precisar bareme. Por outro lado, sou freelancer, vivo entre dois lugares diferentes, tenho duas casas e contas a multiplicar. Basicamente, relaciono-me com muitas pessoas, com várias empresas, com imensos fornecedores. Todos eles passam a vida rodeados de computadores e de emails e de messengers e de skypes e de facebooks e do diabo. Quando é mesmo importante, porém, nunca ninguém escreve: telefona, que é muito mais giro.


A minha vida é um suplício de telefonemas. Há outras assim, eu sei – mas eu divirto-me menos. Quando o rei faz anos, passa-se um dia em que me telefonam pouco (embora seja certo que, no instante em que eu encher as mãos de gel da barba, subir a um escadote para trocar uma lâmpada ou me fizer à bola para bater um tee shot, alguém vai telefonar). A maior parte das vezes, porém, é aquilo: telefonemas o dia inteiro, chamadas a cair umas atrás das outras, o interlocutor aos gritos que já não consegue falar mais alto – e, entretanto, eu pendurado na varanda, no beiral, no pára-raios, com os pezinhos a dar a dar, à procura de rede e sem perceber que há já uns dois minutos estou a falar sozinho.


Nada a fazer: no dia seguinte vai ser preciso esclarecer mais qualquer coisa – e, pronto, telefone a tocar de novo. Os portugueses pelam-se por telefones. Comparam aparelhos, experimentam toques durante uma tarde inteira de esplanada – e, naturalmente, não perdem uma oportunidade de telefonar (desde que não sejam eles a pagar a conta). Se atendo, estou tramado: são cinco minutos para salamaleques, cinco minutos para aprovar a ordem de trabalhos da conversa e outros cinco minutos para combinar quando poderemos afinal tê-la, que entretanto já se faz tarde. Se não atendo, é pior ainda.


Tenho no telefone um pedido expresso para que me mandem mensagens escritas, em vez de mensagens de voz. Nada feito. Português que é português não vai em impessoalidades de tal categoria. Na melhor das hipóteses, deixa uma longuíssima mensagem falada em que nunca mais se dirige ao ponto. Na pior, amua e fica à espera que eu telefone (coisa que eu, fraco, inevitavelmente venho a fazer). E, então, a conversa é sempre a mesma. “Olá, engenheiro, está bom? O que é que me conta?”, pergunto eu, já concedendo no cumprimento inicial. Pois, enquanto faço toda essa conversa, ele ainda vai, absolutamente surdo, na primeira palavra do seu solilóquio: “Olááááá”, a que inevitavelmente se segue um simpático “ora viiiiiva”, o obrigatório “como estááááá?”, o tradicional “há que teeeeempos” e a sempre interessante descrição (sem isso, aliás, nem se tratava de um telefonema) de todas as vezes que pensou ligar-me e, por uma razão ou por outra, a coisa passou-lhe.


Sim, eu também tenho um telefone. E, porém, a última coisa que me ocorre fazer com ele é telefonar. Uso-o para  receber e enviar emails. Uso-o para ouvir música e para tirar fotografias. Uso-o para fazer contas e para ver as horas. Uso-o para mandar bocas no FaceBook e para confirmar os horários do cinema. Uso-o para saber os últimos resultados do Tiger Woods e para ler o New York Times à borla, para conferir a previsão meteorológica e para ver os últimos vídeos da Lady Gaga. Uso-o para fazer entrevistas, para escrever crónicas e até para alumiar a calçada à noite, usando a função lanterna (sim, lanterna). Na verdade, passo o dia agarrado ao telefone. Telefonar, em si, é um suplício. Em Portugal, os telefonemas são como as reuniões: não se resolve rigorosamente nada com eles.


De maneira que os únicos telefonemas que tolero vagamente são os da minha mulher, da minha família e dos meus amigos (sei que alguns lêem estas crónicas, não tenho alternativa senão deixá-lo expresso). De resto, gostar mesmo, só os dos call centers e dos operadores de telemarketing. Com esses posso ser mal-educado à vontade. Quem é que lhe deu o meu número, pá?


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 17 de Abril de 2010

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De Nêta a 18 de Abril de 2010 às 23:15
O que é uma «hermita»?
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De
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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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