Sábado, 20 de Março de 2010
publicado por JN em 20/3/10

A primeira vez que fui para o caminho, tinha talvez uns doze anos. Já não ia cedo. Embora não houvesse uma idade oficial para um miúdo da Terceira começar a ir para o caminho, muitos dos meus amigos o faziam já há vários Verões – e os outros, se se haviam deixado fulminar pelo medo, tinham pelo menos uma boa desculpa para se ocuparem de outra coisa qualquer após o primeiro foguete. Eu não tinha desculpa. Não era filho do dono da venda, como o Roberto – e portanto não podia passar a tarde a vender frescas através dos barrotes verticais que nesse dia substituíam a porta do estabelecimento. Não era da confiança dos mordomos, como o Jorge António – e portanto não podia ficar em cima das gaiolas, ao pé do senhor polícia, a ver os toiros por um buraquinho e a fazer músculos à Popeye. Não estava com um braço engessado, como o Marco – e portanto não podia pôr-me à janela, dando o gesso a assinar às raparigas que aproveitavam o intervalo para mudar de varanda. Quando muito, eu era protestante, como o Rúben e o Ismael – e, sendo-o, podia talvez arguir estar moralmente comprometido com uma visão do mundo que não se compadecia com celebrações de tal mundanidade. Mas isso seria ainda pior – ainda mais miúfa, ainda mais menina. De forma que, no fundo, eu era como o Aurora: um rapaz sem um desculpa condigna para escapar a ir para o caminho. Com uma diferença fundamental: ele ia para o caminho há que tempos, cheio de valentia – e eu, ainda antes do primeiro foguete, já estava gelado de pânico.


Não vale a pena relatar aqui o fracasso por que se saldou esse primeiro dia em que, havendo tourada à corda na minha rua, eu fui para o caminho e corri à frente do toiro. Direi apenas que, desde então, até com o bicho dentro da gaiola sou tomado por um calafrio – e que, se efectivamente acabei por reconciliar-me com a tourada terceirense, foi porque, zé-esperto, me investi a mim próprio no papel de churrasqueiro oficial lá de casa, por onde sempre passam amigos e conhecidos quando a corrida da Terra Chã coincide com a minha presença na ilha. Quanto ao resto, nunca mais deixei de olhar com admiração quem quer que se disponha a enfrentar os galhos de um toiro. Falo dos rapazes que, com samarras e guarda-sóis, abrilhantam as corridas da Terceira cirandando em torno do bicho, seja este bravo ou malão, ágil ou meio manco, com um belíssimo par de cornos ou uma única e triste haste descaída sobre o focinho. E falo, naturalmente, dos toureiros a sério, bandarilheiros ou forcados, matadores ou cavaleiros, que todas as semanas, a partir deste domingo de Páscoa, dançarão à volta de descomunais bisarmas de 600 quilos, armados às vezes de um par de bandarilhas e outras de uma capa de pano apenas, para oferecer-nos um dos mais belos, corajosos, culturalmente distintivos e mesmo filosóficos espectáculos a que ainda temos acesso nos países latinos.

Todos os anos é assim: chegam estes primeiros sóis do ano, rescendendo a coisas antigas – e logo me apetece fazer uma fogueira, saltar uma catarata, caçar um kudu, bailar um chorinho. Desta vez, e por alguma razão, mal posso esperar pela minha primeira tourada da época (cuja versão lusa, de resto, começa precisamente amanhã, em Santarém, com “6 Terroríficos Toiros Guardiola”). Talvez seja das saudades da terra, onde não volto há meses. Talvez seja da exaustão do Inverno, que este ano nos brindou com essa reforçadíssima conjugação de chuva e de crise, de gripe e de vitórias do Benfica. Mas o mais provável é que seja mesmo por causa do próprio bailado entre um homem e um animal que se olham nos olhos, que a qualquer momento se podem matar um ao outro e que apenas triunfarão em absoluto se o público os mandar a ambos viver para sempre. De resto, não espero persuadir os senhores da associação ANIMAL, os tais que arranjaram maneira de a tourada levar bolinha vermelha, das razões por que a tourada me vai encantando cada vez mais. Eles nunca perceberão a diferença entre braveza e bravura – e, aliás, não se explica o que é a galhardia a cavalheiros para quem a igualdade é único valor. Quanto ao mais, já se sabe: eu como bifes, tenho estofos de cabedal no carro e pelo-me por um bom foie gras, apesar de lamentar que os patinhos tenham de ser alimentados por um funil até ficarem com o fígado suficientemente gordo para a degola. Bem vistas as coisas, assistir a uma tourada ainda é a coisa mais mariquinhas que eu faço.


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 20 de Março de 2010

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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