O primeiro jogo de futebol a que eu assisti ao vivo foi um Lusitânia-Angrense, decorria talvez o ano de 1981 e sentiam-se ainda, um pouco por toda a ilha, os ecos do terramoto que nos dizimara no ano anterior. Não tenho na memória todos os pormenores desse acontecimento épico, mas sei que comi amendoins, que me passeei entre a bancada, o peão e a cabeceira Poente do Campo de Jogos de Angra do Heroísmo, onde os automóveis eram estacionados mesmo atrás da baliza para as senhoras poderem espreitar a festa enquanto faziam renda – e que o Lusitânia venceu, depois um guedelhudo do meio campo do Angrense ter tentado expulsar o árbitro (não me peçam para explicar), acabando ele próprio expulso, com dramáticas consequências para a resistência da sua equipa.
De maneira que os meus primeiros heróis futebolísticos (que digo eu, os meus primeiros heróis, ponto) não foram Meszaros, Manuel Fernandes ou Jordão, os ídolos do Sporting nesses idos de 80: foram Álvaro, Dionísio, Teves, Carlos Alberto, Aristides ou João Medeiros, os esteios daquela simultaneamente humilde e gloriosa equipa que me introduziu ao verde e branco, à atmosfera do peão e à poeira que se erguia da terra batida quando a Providência, distraída, nos brindava com um dia de sol. Fiz deles um hábito, claro. Filho do chefe do policiamento, sob a asa do qual podia assistir de graça à bola, tomei duas decisões: ver tantas jogos do Sport Clube Lusitânia quanto pudesse e, quando enfim tivesse idade, envergar eu próprio a sua camisola linda.
À segunda experiência , redundada nuns quantos jogos, em outros tantos frangos monumentais e numa certa dificuldade em lidar com a intestineira durante os pontapés de canto, já a sublimei por aí, em crónicas de jornal e em contos, em rodas de amigos e em conversas de alcova. À primeira também – mas quero voltar a fazê-lo. Porque, durante anos, eu vi. Vi, comendo amendoins, o Lusitânia vencer o E. Amadora por 3-0, no ano (se bem me lembro) em que mais perto estivemos de chegar à primeira divisão. Vi, vestido de verde e branco, o Lusitânia empatar 0-0 com o Boavista, com João Alves de luvas pretas no meio-campo adversário, num jogo após o qual Álvaro e João Medeiros rumariam ao Bessa. E vi, com o emblema que comprara na Casa Stuart ao peito, o Lusitânia esmagar várias vezes o Angrense, naquilo que era então o meu Benfica-Sporting – e que eu próprio viria a disputar mais tarde, embora sempre com frangos e intestineira.
Pois esse clube, símbolo de um povo, vai acabar, depois do fracasso da enésima assembleia geral destinada a engendrar uma solução para o passivo de três milhões de euros que acumulou enquanto andou a brincar ao basquetebol. Esse clube quase centenário, contemporâneo do Belenenses e do Sp. Braga, mais antigo do que o Rio Ave ou a U. Leiria; esse clube onde jogaram Mário Lino, Moisés (que podia ter sido Rui Barros) e o malogrado Marroco; esse clube que foi 21 vezes campeão dos Açores, 38 vezes campeão da Terceira e o primeiro do arquipélago a chegar aos nacionais; esse clube que encantou a minha geração, que encantou outras quatro ou cinco gerações antes da minha e que ainda hoje tinha mais de 500 atletas em acção; esse clube que era o maior clube dos Açores até o poder socialista perceber que o futebol podia render votos e que, sendo na ilha de São Miguel que os votos mais contavam, mais valia investir no Santa Clara – esse clube a que chamávamos “Lusitana”, ou mesmo “Sténia”, consoante a freguesia de que vínhamos ou as aspirações que cultivávamos, vai acabar. Não vai acabar com o futebol, note-se: vai acabar.
E eu, em vez de limitar-me a perguntar onde estávamos todos enquanto isto acontecia, lamento a vergonha. A vergonha dos lusitanistas, dos terceirenses e dos açorianos. A minha própria vergonha, no papel de cidadão de cada uma dessas três identidades. A vergonha de um povo que se acomodou aos subsídios e perdeu o brio nas suas instituições. A vergonha de um poder político para o qual, se nem tudo são votos, nada interessa mais do que eles. A vergonha de uma modalidade que se centrou nas ligas de campeões, nas selecções nacionais feitas de estrangeiros e nas sociedades desportivas, esquecendo quase tudo o que lhe era essencial – e que agora, um pouco por todo o país, um pouco por todo o mundo vai perdendo aqueles que foram os seus primeiros, mais abnegados e mais agregadores agentes. A vergonha, sim. Que ao menos nos pese a vergonha.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 6 de Fevereiro de 2010