Sábado, 29 de Janeiro de 2011
publicado por JN em 29/1/11

No outro dia, deitei um telemóvel para o lixo. Não sei se vocês alguma vez deitaram um telemóvel para o lixo. É impossível. Um telemóvel deitado para o lixo é a mesma coisa que um bumerangue atirado de uma montanha: volta sempre. É que não conseguimos livrar-nos dele. Há sempre alguém que o encontra. Há sempre alguém a mexer no nosso lixo. E então, dois dias depois, telefona-nos lá para casa a nossa mãe, a namorada, um amigo: “Perdeste o telemóvel?” Num rebate de consciência, o respigador decidira tentar devolver o telemóvel ao dono e pusera-se a ligar para todos os números da marcação rápida do aparelho. Afinal, ninguém ia atirar para o lixo um telemóvel ainda em tão bom estado. Provavelmente, o dono perdera-o. É outra coisa com que devemos contar: para além de haver sempre alguém a mexer no nosso lixo, bem pode acontecer que esse alguém tenha coração. Por mim, aprendi a lição: nunca mais deito um telemóvel para o lixo. Quando morrer, espero levá-los a bordo: vinte ou trinta telemóveis ao meu lado no caixão, todos eles representando dois anos diferentes da minha vida. Cada um estraga o dinheiro naquilo que pode.


Adiante. Isto tudo para dizer-vos que, em querendo sentir determinada emoção, um homem sente-a sempre. Se quer chatear-se, é facílimo: algures ao longo dia, alguma coisa há-de oferecer-lhe a possibilidade de chatear-se. Se quer decepcionar-se com alguém, melhor ainda: não há semana em que não nos demos todos mutuamente pelo menos um motivo de decepção. E eu, por aqueles dias em que deitei um telemóvel para o lixo, devia andar ansioso por comover-me. Talvez fosse sentimento de culpa, porque, para além de um telemóvel, havia deitado para o lixo várias coisas: revistas antigas, pares de sapatos, até móveis. De maneira que, quando finalmente a minha mãe ligou: “Perdeste o telemóvel, filho? Um senhor encontrou-o. Fiquei com o número dele, para se encontrarem”, comecei logo a comover-me. Um telemóvel tão velho, caramba – quem haveria de considerar que um telemóvel tão velho, com o monitor tão comprometido e o teclado tão desengonçado, ainda teria algum préstimo? E mais comovido ainda consegui pôr-me quando, enfim, avistei o dito senhor, na verdade um rapaz da minha idade, subindo a rua ao meu encontro, com o seu blusão do Benfica muito apertadinho junto ao pescoço, para se proteger do frio.


Explicou-me (e o seu rosto como que transbordava bondade), erguendo o meu velho telemóvel na mão: “Foi o meu sogro que mo ofereceu. Encontrou-o ali ao pé da drogaria. Ainda o mandámos desbloquear, mas depois começámos a ver os números e pensámos: ‘Eh, pá, é melhor devolver isto ao homem.” Explicava-mo, mas eu já não o ouvia. Imaginava-os aos dois, sogro e genro, ambos benfiquistas, sentados frente a frente na sala de estar, com o Telejornal ao fundo, aguardando o jantar e tentando, em desespero, encontrar a intimidade nunca conquistada. “Tenho aqui um telemóvel. Toma. Ofereço-te”. Depois ocorreram-me as duas mulheres à porta da cozinha, espreitando através do reposteiro, mortificadas por não terem baixado o som da televisão, de forma a ouvirem o que debatiam os seus homens. E, finalmente, vi o sogro apenas, um velho baixo, rubicundo, totalmente fofinho, com o seu boné da Delta Cafés muito enfiado, saindo de casa às seis da manhã e depois subindo para cima do camião, primeiro a marmita e logo ele próprio, a caminho de uma obra.


Guardei o aparelho no bolso e, de tão choroso, mal agradeci, apesar do compasso de espera do rapaz, como se me quisesse dizer mais qualquer coisa. De maneira que, no dia seguinte, voltei a ligar: “Peço desculpa. Nem demonstrei devidamente a minha gratidão.” E do outro lado: “Nada, nada. Se quiser pagar os vinte e cinco euros que foi de desbloquear o telemóvel, está à vontade.” Combinámos no mesmo sítio. Não veio o rapaz, mas o sogro: tinha calças tipo tropa, sweatshirt com capuz amarelo e oculão de surfista – e olhava de lado, metendo estilo. Estava mais em forma do que eu e, pelo ócio do encontro, vivia do RSI. Dei-lhe os vinte e cinco euros, tornei a agradecer-lhe, mandei um abraço ao genro e, como que decidindo-o, comovi-me outra vez. Vinte e cinco euros por uma crónica não é nada caro.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 29 de Janeiro de 2011


(imagem: © www.blog.360dgrs.nl)






tags:
Sábado, 22 de Janeiro de 2011
publicado por JN em 22/1/11

 

 BANDA SONORA PARA

UM REGRESSO A CASA

Porto Editora, 2011

 

“As crónicas sobre embirrações lêem-se com gosto, mas são as elegias açorianas autobiográficas que estão mais perto da literatura, bem como as explorações de temas como o protestantismo, em que o autor foi criado, e o golfe, de que é ávido praticante. (…) Basta a evocação de um clube de infância, o Lusitânia, ou a defesa da tourada à corda ou a memória de mau tempo no canal para que as crónicas se tornem idiossincráticas e mesmo memoráveis.”

PEDRO MEXIA, Expresso

 

“É um prazer ler ou reler as tiradas politicamente incorrectas de Joel Neto contra as 'vacas sagradas' dos meios sociais, culturais e desportivos do continente. Sim, porque, no que toca às ilhas atlânticas, o coração do autor açoriano derrete-se num 'regresso a casa'. A não perder.”

JOÃO CÉU E SILVA, NS'

 

“Habituados que estamos ao tom ardiloso e politicamente correcto de muitos cronistas encartados, peritos na difícil arte de ocultar o que lhes vai na alma, estranhamos sempre, enquanto leitores, quando surge uma voz que, em vez de promover consensos, retira evidente deleite no contrário. Ou seja, na promoção de querelas e discussões que têm o condão de sacudir da letargia mesmo o mais sisudo dos seres.”

SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias

 

“Há na sua prosa qualquer coisa que lembra Raymond Carver, que sabemos ter influenciado outros desta mesma geração portuguesa: a brevidade da frase claríssima na sua simplicidade vocabular, a estranheza de ser e estar no seu próprio meio e tempo.”

VAMBERTO FREITAS, Açoriano Oriental

 

“[Joel Neto] É uma das poucas coisas que valem a pena na nossa imprensa escrita. (...) Não temos petróleo, mas temos tipos como o Joel.

PEDRO BOUCHERIE MENDES, na apresentação

 

Os vegetarianos e os nudistas. Os cães e os escritores vivos. Os telefones, o silicone e o socialismo. As raparigas demasiado magras. O Benfica. As mulheres infiéis. O cinema fantástico, os anos 80 e a bem-aventurança em geral. Joel Neto parece coleccionar inimigos ao mesmo ritmo a que vai escrevendo. E, no entanto, garante que tem coração – e que, no limite, até é capaz de comover-se. Neste volume se reúnem as obsessões e os ódios, os delírios e os afectos daquele que é, hoje, um dos principais cronistas portugueses. Um livro que se lê como quem ouve um disco. A caminho de casa.

 

“José Guilherme. Toda a minha vida foi, a certa altura, uma reprodução em miniatura da vida grande e inalcançável dele. À noite, quando se acabava o jantar e as mulheres queriam ver a Escrava Isaura, refugiávamo-nos na casa-de-despejo – e então ali ficávamos horas a brincar aos carpinteiros, ele com o seu serrote grande e eu com o meu serrote pequenino, ele com a sua plaina grande e eu com a minha plaina pequenina. De dia, íamos ordenhar as vacas, a Bem-Feita e a Estrela – e então lá subíamos os serrados os dois, ele com as suas botas-de-cano grandes e eu com as minhas botas-de-cano pequeninas, ele com a sua bilha de leite grande e eu com a minha bilha de leite pequenina, ele subindo a custo, apoiado no seu bordão grande de pau de roseira, e eu imitando-o atrás, quase rindo, com o meu bordão de fona-de-porca girando no ar e despedaçando às escondidas as rocas-de-velha e as suas flores amarelas que davam um suco adocicado e a que chamávamos ‘chupes’. Até que, enfim, ele se sentava numa pedra e puxava da sua boceta grande – e então eu sentava-me ao lado dele e puxava da minha boceta pequenina. (…) Chamávamos-lhe ‘boceta’ – e é assim que eu continuarei a chamar-lhe, independentemente de também a mim as telenovelas brasileiras e as viagens aos trópicos me terem, entretanto, pulverizado a inocência.  Persistiu até há uns anos no falar do povo destas ilhas uma pureza e uma precisão que não cheguei a encontrar em Lisboa – e ‘boceta’, garantem os dicionários, continua a ser a melhor palavra para definir o objecto. (…) Preciso dela. O corrector do meu MacBook não reconhece a palavra, assim como não reconhece ‘lenço-da-mão’, ‘botas-de-cano’ ou sequer ‘garoupa’ – e só regressar a esta casa, à procura de histórias e de palavras que já não existem, me impede de ceder de vez à sua pressão para que escreva como os outros todos.”

ELE, Prelude

 

“Um casamento pode sobreviver a um homem infiel e pode sobreviver a uma mulher infiel também. Coisa diferente, porém, é o amor. Um homem pode ser infiel à sua mulher e, no entanto, amá-la eterna e incondicionalmente. Uma mulher infiel já não ama o seu marido.”

 

“Para que serve um cão? Para que serve um bicho fundamentalmente estúpido, tantas vezes agressivo, que cheira mal, que ladra alto, que nos rouba duas horas por dia só por causa do cocó – e que, além de tudo, volta e meia está obstipado, fazendo-nos andar, não duas, mas quatro horas a subir e a descer a rua com um saquinho de plástico na mão?”

 

“Já não gosto de futebol. Deste futebol. O meu futebol é o futebol dos golos de bandeira e dos penáltis roubados, dos copos pela noite dentro e das zaragatas à segunda-feira de manhã. No meu futebol, vive-se a mais delirante euforia e a mais miserável angústia. Vivem-se o ódio e o amor em doses iguais – e, quando alguém nos pergunta se é loucura o que isso é, nós erguemos bem alto o copo, citamos Goethe (não citamos nada) e bebemos a Bruno Paixão.”

 

“Sobretudo, não me venha agora perguntar se eu sou efectivamente homofóbico, machista, xenófobo, inimigo dos animais ou mesmo apenas um conservadorão sombrio. Pergunte ao Joel Neto, que pensa mais nessas coisas do que eu. Dizia Alexandre Dumas que a intriga era o prego onde pendurava os seus quadros – e quanto a mim, Joel Neto, se alguma coisa me absolve é a vã-glória de pensar que o menos importante nestas crónicas é aquilo de que elas falam.”

publicado por JN em 22/1/11

Claramente: o verdadeiro criminoso, em todo o processo que levou ao homicídio de Carlos Castro, é Renato Seabra. Em sendo preciso estabelecê-lo – e neste caso parece que é –, a vida é sempre o bem supremo. Mas há no assassinato de Times Square aspectos que o tornam mensageiro de demasiadas urgências contemporâneas para que possamos recordá-lo apenas como a história de um pobre-diabo que matou outro pobre-diabo (ou mesmo apenas de dois turistas portugueses a fazer figuras tristes no estrangeiro, que sei eu).


Carlos Castro aproveitou-se de um débil mental e um débil mental aproveitou-se dele. A ordem dos factores não é tudo, mas tem importância. Renato Seabra supôs que dormir com aquilo que entendia ser um velho repelente haveria de trazer benefícios à sua projectada carreira como manequim. Ao fim de dois meses e meio (dois meses e meio desde a primeira mensagem no FaceBook, note-se), rebentou. E agora, a não ser que entre em cena a mui cinematográfica figura da temporary insanity, vai envelhecer numa prisão norte-americana, a fazer de mulher-aranha para assassinos e violadores da Nova Inglaterra e arredores.


Para trás, fica um romance tórrido. Pelo menos para Carlos Castro, que os amigos viam “mais feliz do que nunca” – e que a estes, aliás, não se cansava de referir que Renato Seabra era, no fundo, um heterossexual desencaminhado, assim reforçando a dimensão da sua conquista.  Renato, por sua vez, tentava esconder o “amigo” – e a quem o questionasse sobre a natureza daquela inusitada relação, insistia: tratava-se de um amigo mesmo, nunca mais do que isso. Os contornos do caso, na sua mente, eram talvez os da prostituição. Mas nem em conversa consigo próprio ele usaria tal palavra.


Não me interessa saber quem mais cedeu e quem mais coleccionou ao longo daquele absurdo romance. Renato Seabra, talvez convicto da sua heterossexualidade, dormiu durante semanas com aquilo que entendia ser um velho repelente e, bem vistas as coisas, não coleccionou com isso qualquer vantagem. Carlos Castro, sabedor de que, aos rapazes bonitos e musculados, já apenas chegaria com recurso a algum grau de coação, cercou o docinho de formigas, mas por outro lado pagou-o com a vida (que perdeu, aliás, depois e antes de longa tortura).


Carlos Castro morreu mais ou menos como esperava: assassinado. A triste ironia é que o homicídio com que sonhara não era este: era um tiro desferido por uma dondoca, em plena Moda Lisboa, com toda a gente a ver, depois de o “jornalista” ter-lhe feito a desfeita de escrever numa revista: “Eu sei que ela vai ficar um bocadinho aborrecida comigo, a minha queridíssima X, mas acho que o vison não encaixava nada bem naquela toilette.” No fundo, era essa a vertigem que Carlos Castro, exacerbando a sua própria importância, julgava existir à sua volta. Tudo o resto, incluindo as predações, eram rotinas. E é esse contra-senso que prova como, apesar de tudo, a debilidade mental não se resumia a um dos lados da equação.


Carlos Castro morreu como esperava e há-de ter vivido como queria. Estava no seu direito. Mas não é por isso que deixa de ter exercido sobre a vida pública portuguesa, sobre a nossa cultura pop, uma influência perniciosa. O mundo que ele ajudou a construir é deplorável: quase tão deplorável como Renato Seabra ele próprio. Renato Seabra é, na verdade, uma co-criação de Carlos Castro. Renato Seabra e tantos como ele, mesmo que sem tendências violentas – foi isso que Carlos Castro e tantos como este, babosos ou não, criaram. Uma geração inteira de gente ociosa e disposta a (quase) tudo por um lugar no coração das massas, via ondas hertzianas.


Carlos Castro era a trash culture, era a reality TV, era quase toda a acefalia do milénio concentrada numa só pessoa. Renato Seabra, sendo talvez mais alguma coisa ainda (e pior), é a trash culture, é a reality TV, é quase toda a acefalia do milénio concentrada numa só pessoa também. E o mais que se pode desejar, agora, é que não chegue a perceber como, afinal, nada na sua vida fazia sentido. No limite, só aquela acefalia original, só aquela ignorância, só a absoluta estupidez que o levou a Nova Iorque poderá, na prisão, protegê-lo de mais sangue ainda. Já chega de sangue.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 22 de Janeiro de 2011


(imagem: © www.homorazzi.com)






tags:
Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
pesquisar neste blog
 
arquivos
livros de ficção

"Os Sítios Sem Resposta",
ROMANCE,
Porto Editora,
2012
Saber mais


"O Citroën Que Escrevia
Novelas Mexicanas",
CONTOS,
Editorial Presença,
2002
Saber mais
Comprar aqui


"O Terceiro Servo"
ROMANCE,
Editorial Presença,
2002
Saber mais
Comprar aqui
outros livros

Bíblia do Golfe
DIVULGAÇÃO,
Prime Books
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Banda Sonora Para
Um Regresso a Casa
CRÓNICAS,
Porto Editora,
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Crónica de Ouro
do Futebol Português",
OBRA COLECTIVA,
Círculo de Leitores,
2008
Saber mais
Comprar aqui


"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)",
CRÓNICAS,
Esfera dos Livros,
2007
Saber mais
Comprar aqui


"José Mourinho, O Vencedor",
BIOGRAFIA,
Publicações Dom Quixote,
2004
Saber mais
Comprar aqui


"Al-Jazeera, Meu Amor",
CRÓNICAS,
Editorial Prefácio
2003
Saber mais
Comprar aqui