Sábado, 18 de Dezembro de 2010
publicado por JN em 18/12/10

Houve uma altura em que talvez se lhe pudesse chamar “um roubo”. Agora, é outra coisa. A situação dos moradores dos bairros históricos de Lisboa, essa cidade encantadora, cheia de sol e de colinas, é neste momento insustentável. Em causa está, mais uma vez, o estacionamento dos automóveis.


No momento em que escrevo, acabamos de pagar, eu e mais uma série de vizinhos mal estacionados, noventa euros de multa cada um. Discutimos um bocado, mas apenas para desabafar: já sabíamos que, mesmo contactado pelos próprios funcionários, o supervisor voltaria a recusar-se a visitar-nos. Cinco minutos depois, puxámos das carteiras e organizámo-nos em fila. Pagámos as coimas, desbloqueámos os carros e fomos à procura de outro lugar ilegítimo qualquer, na esperança de que entretanto os tipos da Emel fossem almoçar, com  ordens para visitar um bairro diferente durante a tarde.


De qualquer forma, estamos avisados: esta é a nossa semana. Virão cá todos os dias. Ordens superiores. De maneira que já tratámos todos de requisitar mais cheques: até sexta-feira (escrevo na segunda), vamos precisar de pelo menos mais quatro. No total, e na mais benigna das hipóteses, teremos pago quatrocentos e cinquenta euros cada um. Para alguns, noventa já eram suficientes para dar cabo do Natal.


Um de nós arriscou: “Portanto, a Câmara precisa de dinheiro para pagar os subsídios de Natal, não é?” E o pobre-diabo a quem cabe vir detonar diariamente a bomba (e que antes era forçado ao arrastão): “Não. Os subsídios de Natal foram pagos no mês passado.” A frase seguinte, só a disse com os olhos: “Deve ser para outra coisa qualquer.”


Já aqui escrevi sobre isto. Depois de uma centena de multas por estacionar o carro em lugares ilegítimos, estacionara-o, em desespero de causa, num lugar que, para além de ilegítimo, dificultava a passagem do carro do lixo. Resultado: os senhores da recolha espetaram-lhe uma sovela em cada um dos quatro pneus, certificando-se de que eu não voltava a fazê-lo. E eu não o fiz mais.


Mas contei aqui a história. António Costa, sob cujas ordens superiores actuam tanto a Polícia Municipal como a EMEL, escreveu-me um e-mail: tinha acabado de mandar abrir um inquérito interno, para apurar a veracidade do crime que eu denunciava, e ao mesmo tempo instaurara-me um processo a mim, para despistar a possibilidade de denúncia mal intencionada. Passaram-se dois anos – nenhuma notícia, nem do inquérito, nem do processo.


Entretanto, a situação piorou. Cada bairro de Lisboa tem os seus problemas (crescentes, todos eles). No meu, o Bairro Alto, continua a haver cento e cinquenta lugares de estacionamento para quatrocentos e cinquenta moradores com carro. Ao contrário do que acontece noutros bairros, a nossa zona (“Zona 11”, tive de aprendê-lo) tem um raio de quatro ou cinco ruas apenas, pelo que estacionar cem metros ao lado dá multa também.


Agora, porém, não só os lugares legítimos escasseiam, como os lugares ilegítimos escasseiam também. Apesar da crise, o bairro está todo em obras, com andaimes e contentores e camiões de recolha de cascalho bloqueando ruas, passeios e recantos. Quem encontra um lugar para deixar o carro não volta a tirá-lo de lá durante três semanas. Se tira, o simples gesto de ir dormir a casa torna-se um sufoco. No dia seguinte, os contabilistas do senhor Costa estarão de volta.


Os meus amigos (bom, os meus “colegas) riem-se do meu desespero: “Morar num bairro fino dá nisso.” Eu gostava de saber o que há de fino num bairro com as ruas esburacadas, cheias de merda de cão, cobertas por uma cama de garrafas de cerveja  e em cujas esquinas há gente a urinar a noite inteira. Mas, sobretudo, gostava de saber o que há de fino num verdadeiro campo de batalha, onde pobres-diabos são enviados todos os dias, a troco de um ordenado de seiscentos euros por mês, para detonar bombas no quintal de gente desesperada.


Em Lisboa, não há limites para a prepotência. E se a vós, leitores do Porto e de Coimbra e de Castelo Branco e dos Açores, isto parece não dizer nada, sugiro que vos prepareis. Quem é que acham que o partido anda a preparar para meter em São Bento?






CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 18 de Dezembro de 2010


(imagem: © www.carmoeatrindade.blogspot.com)






 

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Sábado, 11 de Dezembro de 2010
publicado por JN em 11/12/10

Não é preciso consultar os sociólogos, basta ir ao Eurostat: os portugueses não gostam de trabalhar. Trabalham que nem condenados quando emigram, mas porque se imbuem a si próprios de um certo espírito de missão. Assim que regressam a casa, não demoram a deixar-se contaminar pela indolência. Não sou eu que o digo: são os índices oficiais de produtividade. Regra geral, trabalhamos pouco e mal. Mas nem por isso deixamos de compreender a ética do trabalho – e é então que nos tornamos verdadeiramente divertidos.


Num dia típico, a primeira coisa que um trabalhador português faz é chegar atrasado ao trabalho. Se a hora de entrada é às oito, chega às oito e meia. Se é às nove, chega por volta de um quarto para as dez. Só o fazem aqueles que podem, mas por outro lado esses são os melhores: os que não podem hão-de arrastar-se o dia inteiro, ressentidíssimos por não poderem. Entretanto, a meio da manhã, há a pausa para o café. Os que não fumam têm azar: tiram só um quarto de hora. Os fumadores tiram meia hora inteira: quinze minutos para o café e quinze para o cigarro. Por esta altura, está quase a chegar a hora de almoço – e, como está quase a chegar, mais vale começá-la já. Em vez da uma da tarde, começa-se ao meio dia e vinte. Em vez do regresso às duas, regressa-se às duas e quarenta. E é se não for época de Natal, de Páscoa ou de Carnaval, dia da Mãe, do Pai, da Criança, de São João, de São Pedro, de Santo António ou de Pão Por Deus. Nesse casos, chega-se às três e quinze – e o café da tarde, aliás, também demora um pouco mais. Depois, e se for dia de levar os miúdos ao dentista, sai-se mais cedo. Em jogando o Benfica, nem vale a pena regressar do café.


Se pensam que caricaturo, têm razão: caricaturo. Se pensam que descrevo um cenário datado, não têm razão nenhuma: este Portugal continua a existir. Escapam os profissionais liberais, os recém-licenciados (ou seja, todos os licenciados até aos 40 anos, tanta deles a trabalhar em call centres ou a servir de escravos a analfabetos) e alguns ditos operários não qualificados. Mas nem estes escapam todos. Uns quantos têm a sorte de trabalhar para a administração pública. Esses trabalham menos ainda – e, se puderem, não deixam nunca de meter baixa (normalmente, por depressão), de meter “um artigo” ou, na primeira oportunidade, de se desenfiar, palavra sobre todas as outras portuguesa (mais do que saudade, podem ter a certezinha).


E, no entanto, não é isso que me diverte. O que me diverte é aquele momento em que o trabalhador português efectivamente trabalha. Porque é nele que, de repente, toda a sua ética de trabalho vem ao de cima. O momento em que um trabalhador português efectivamente trabalha é especial – e, quando esse momento milagroso ocorre, não deixa nunca de haver no semblante do trabalhador aquele ar compenetrado de quem está a fazer a coisa mais séria do mundo, mas entrecortado com disfarçadas bispadelas à volta, em tom de: “Olhem para mim a trabalhar. Não gostam de me ver trabalhar?” E os outros trabalhadores portugueses olham mesmo. Primeiro, porque percebem que se está ali, de alguma forma, a fazer história. Depois porque, quando for a sua vez de trabalhar, também quererão testemunhas. Uns aos outros, chamam-se “artistas”. Um é um artista na canalização. O outro, mecânico, é um artista também. Em bielas e pistões, não há pai para ele.


Um normal dia de Lisboa, por esta altura, é feito de sete tipos à volta de um buraco, a ver trabalhar o artista a quem coube descer para reparar o ralo entupido. Dois têm ferramentas na mão, mas para se apoiarem. Um terceiro está atento – é o engenheiro. O quarto foi buscar as minis. Os restantes três são sobretudo testemunhas. Entretanto, chega mais um, este ao volante de um furgão de distribuição. Apita como um louco: “Mas interromperam a rua?! Não há direito. Eu estou a trabalhar, pá!” Até que uma das testemunhas lhe revira os olhos: “Nós também estamos a trabalhar!” Então, o distribuidor apeia-se, fecha o automóvel à chave, grita lá para trás, para a fila que se acumula: “Nada a fazer, os homens estão a trabalhar…” – e vai, enfim, beber uma mini com eles.






CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 11 de Dezembro de 2010


(imagem: © www.sidemission.com)





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Sábado, 4 de Dezembro de 2010
publicado por JN em 4/12/10

 


Há pessoas que acreditam em Deus. Algumas, desprovidas de fé, acreditam noutras pessoas – e umas quantas até preferem acreditar em si próprias, o que é talvez o mais deprimente de tudo. Eu acredito no jogo. Sempre acreditei. Na infância, e quando descia sobre nós o nevoeiro, ensombrando o carácter dos homens e amalgamando o mundo todo numa só massa informe, pardacenta e desesperançada, confortava-me a ideia de que no dia seguinte, chovesse, fizesse sol ou permanecesse nevoeiro, tinha treino de futebol. E, entretanto, toda a minha vida tem sido vivida sob esse signo.


Ao longo dos anos, experimentei de tudo. Joguei ténis, fiz corridas, aprendi o snooker inglês, mudei para o bilhar às três tabelas, apaixonei-me pelo golfe. Nunca acreditei no jogo de casino, porque não há como acreditar nele: no fim, a casa ganha sempre mesmo. De resto, um casino tem poucas potencialidades nos domínios da superação. Aquilo em que eu acredito, na verdade, é na dimensão metafórica do jogo. Na brincadeira, sim (porque não?) – mas sobretudo na superação. Mesmos nos anos mais sombrios, em que a minha actividade desportiva se reduziu a pedalar numa bicicleta entre as quatro paredes de um ginásio, não deixei nunca de tentar pedalar mais do que o ciclista do lado. E o objectivo nunca foi propriamente pedalar mais do que ele: foi levar-me a mim próprio a pedalar mais do que ele – foi levar-me a mim próprio a superar-me  mais do que qualquer outro conseguisse superar-se.


E, porém, mesmo a mim, jogador inveterado, esta crescente infantilização da vida adulta incomoda. Até porque ela não se limita ao exercício do jogo, de que vem tantas vezes disfarçada: alargou-se a verdadeiramente a todos os domínios do nosso quotidiano. Liga-se a televisão para ver um jogo de futebol (cá está o jogo) e, no intervalo, é-se metralhado com quinze minutos de publicidade a joguinhos de computador, a filmes do Harry Potter e a discos do Tony Carreira. Vai-se ao cinema e, para além do Harry Potter, o cartaz resume-se a filmes de animação, a histórias fantásticas com elfos e dragões e a filmes de acção em que os protagonistas fazem corridas com carrinhos cheios de ailerons e de kits. Liga-se a rádio e as estações estão divididas em duas categorias apenas: aquelas que passam Tony Carreira e aquelas que passam “música dos anos 80”, toda ela muito divertida. Sai-se à rua e as raparigas estão todas vestidas com roupa brincalhona, com bolinhas e lacinhos e sapatinhos e sei lá mais o quê.


Resultado: brincadeira com fartura, superação nenhuma. Ainda no outro dia, e ao parar circunstancialmente num café ao lado de um jornal, surpreendi duas jovens jornalistas falando de Tony Carreira. Conhecia uma delas, mas muito vagamente, pelo que nem sequer as fui cumprimentar. E, no entanto, ali estavam elas: falando de Tony Carreira – e no seu tom nem sequer havia a velha sabedoria de redacção, do tipo: “Vá, vamos lá enganar o povo com mais uma peça ou duas sobre o Tony, que de alguma forma temos de vender as notícias verdadeiramente importantes.” Não: elas efectivamente gostavam de Tony Carreira. Achavam-lhe piada, pelo menos. Divertiam-se com a sua música. Da mesma forma que, nos tempos de faculdade, se divertiam com Quim Barreiros, talvez: rindo-se dele – mas, em todo o caso, rindo-se cada vez menos.


E eu acho que um jornalista não pode ouvir Tony Carreira. Dir-me-ão (dizem-me sempre coisas deste tipo): “Gostos não se discutem.” Era o que faltava. Gostos discutem-se, sim senhor. Não vejo mesmo, aliás, nada de mais discutível do que o gosto. E um jornalista não pode gostar de Tony Carreira. Um adulto não pode gostar de Harry Potter. Um homem não pode passar as noites de sábado a jogar ao PES com os amigos ou os domingos à tarde a fazer corridas com outros homens na Ponte Vasco da Gama, fugindo à polícia. E, se pode, então está explicado porque é que este mundo virou uma espécie de grande coutada para tunas e claques de futebol, juventudes partidárias e associações académicas. Infantilizámo-nos de vez – e, naturalmente, jogando no campo deles, perdemos por K.O..



Há anos que vimos apregoando todos, os supostos inteligentes: um homem não se pode levar muito a sério. Pois talvez devesse. Já era altura de pararmos com essa coisa do “explorar a criança que há em nós”, não?






CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 4 de Dezembro de 2010


(imagem: © www.sidemission.com)






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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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"José Mourinho, O Vencedor",
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