Sábado, 27 de Novembro de 2010
publicado por JN em 27/11/10

Aqui há uns tempos, entrevistei um jovem escritor português. Desiludido, há muito que não entrevistava um escritor – e, não fosse anunciar-se desta vez “uma história”, nem me teria ocorrido tal afazer. Acontece que o rapaz foi jantar lá a casa e disse coisas mais interessantes do que eu alguma vez o vira dizer aos jornais, denunciando inclusive as mais caricatas regras de engajamento do establishment que o consagrara. Não resisti. Perguntei-lhe: “Mas porque é que nunca dizes essas coisas nas entrevistas?” E ele: “Porque não mas perguntam.” “E, se eu tas perguntasse, dizia-las?”, tornei. “Claro que dizia”, garantiu-me, todo corajoso (e não foi do vinho, porque ainda o jantar ia a meio e já a entrevista estava aprazada).


Foi uma decepção, claro. Quando propus o trabalho ao jornal em causa, não ouvi do outro lado senão aquilo que já esperava: “O quê? Esse gajo outra vez? Está tudo farto dele – e, além disso, não tem nada para dizer...” Contrapus: “Confiem em mim. Já sabem que não os deixo ficar mal. Isto vai marcar a actualidade literária.” Pois não marcou. É óbvio que não marcou. Enviadas as perguntas por email, para o moço ter tempo de elaborar e tudo, andei a telefonar-lhe como um louco até ao último dia do dealine, lembrando-o da urgência. Na noite em causa, lá chegaram, enfim, as respostas. Eram as mesmas que ele dava em todas as entrevistas, independentemente das perguntas. No corpo do email, uma nota: “Desculpa, mas, pensando bem, é isto que eu acho sobre as coisas.”


Na semana passada, ouvi a escritora francesa Catherine Clément no programa de Carlos Vaz Marques, na TSF – e, ao longo daqueles 50 minutos, não me lembrei de outra coisa senão do meu infeliz comensal. Vaz Marques, que actua no domínio das artes em geral, é o melhor entrevistador português. Sabe que a informação dos nichos se faz assim, doce e coadjuvante – mas, apesar da doçura, tira mais dos entrevistados do que metade dos seus colegas juntos. E, porém, nem ele poderia objectar a tal formatação. Do ponto de vista do espectáculo radiofónico, foi um sucesso: as respostas saíam todas disparadas, como se estivessem na ponta da língua. A tragédia é que estavam mesmo. Clément já as dera noutras entrevistas, com aquelas ou com outras perguntas. Todos os escritores as deram. Todos continuam a dá-las.


Às vezes, e sabendo que acamarado com futebolistas, alguém me diz: “Coitado de ti. Nem sequer sabem falar…” Parvoíce. Quem acha que um futebolista não sabe falar, qualquer que ele seja, é porque não está minimamente atento à forma como se expressam os portugueses em geral (os empregados de café e os funcionários públicos, os advogados e até os ministros) – e menos ainda está atento às entrevistas dos escritores, portugueses ou não. Às entrevistas e, aliás, aos debates, às conferências, aos seminários e ao que mais proporcione o dito establishment para permitir a existência de um escritor para além dos seus livros (até apesar dos seus livros).


Dizem os futebolistas: “Vamos levantar a cabeça e pensar no próximo jogo”, “Perdemos, mas não nos deixamos abater”, “O que eu quero é continuar a trabalhar para convencer o mister”. E dizem escritores: “Quando estava a escrever, perdi a noção do espaço e do tempo”, “Este livro escreveu-se sozinho, eu fui apenas um veículo”, “Não quis dizer nada em particular, o livro dispõe de existência própria e eu não tenho o direito de condicionar a forma como o leitor o lê”. No fundo, vai dar ao mesmo. À mesma falta de subversão. À mesma falta de liberdade de espírito. Ao mesmo medo. Com a diferença fundamental de que os futebolistas querem sobretudo marcar golos, casar com uma loira e ter um descapotável, enquanto os escritores não dispensam ser mensageiros de algo superior, o que é o mais aborrecido de tudo.


Para mim, que gosto de livros, o pior de tudo são quase sempre os escritores. O marketing não é o único valor deste mundo – e, bem vistas as coisas, ainda não conheci um só de cuja obra verdadeiramente gostasse e a quem, ao fim de algum tempo, continuasse a reconhecer o direito de se deixar ver vivo.






CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 27 de Novembro de 2010


(imagem: © www.thingsinmovies.com.com)





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Sexta-feira, 26 de Novembro de 2010
publicado por JN em 26/11/10

Apaixonado pela rádio, tanto quanto escravo do computador, opto às vezes por ouvir relatos, em vez de assistir às transmissões televisivas. Bem vistas as coisas, a rádio é hoje o meio de informação que mais consumo. Escrevo sobre televisão – e, portanto, ver televisão quase sempre se confunde com trabalho. Escrevo para os jornais – e, portanto, ler jornais quase sempre se confunde com trabalho também. Com a rádio, não: é prazer puro. Ouço-a no escritório, ao longo do dia. Ouço-a no carro, quando tenho o privilégio de levantar o rabo do escritório. Ouço-a ao acordar, como despertador – ouço-a até no duche, aos berros, para grande desconforto (estou convicto) dos meus vizinhos.


E, porém, não deve haver outro meio onde o triunfalismo benfiquista se tenha instalado com tal fragor como na rádio portuguesa. Há muitos anos que aprendemos a aceitar a dualidade de tons usados para narrar um golo português ou estrangeiro: um imenso e repetido “Golo!” para os gloriosos feitos nacionais, um tristonho e burocrático “Golo!” para os miseráveis feitos estrangeiros. E, mesmo assim, é de mais, o triunfalismo que este ano tem rodeado o Benfica. Um triunfalismo que talvez até se pudesse explicar pela crise da comunicação social (e pelos benefícios que o mercado sempre contabiliza quando o maior clube português ganha), mas que entretanto atingiu o ponto da verdadeira esquizofrenia.


Ouvi todo o relato da primeira parte do Hapoel-Benfica. Pois, em 45 minutos apenas, o relator anunciou sete vezes o decurso de um enorme festival de bola, identificou nove vezes o imenso azar encarnado e denunciou seis vezes a profunda desonestidade do árbitro. Aos 46, gritou: “Livre directo para o Benfica. E dali, para Cardozo, é quase um penálti!” Deu bola na barreira, claro. Mais um azar? Naturalmente: “O Benfica quase, quase, quase a fazer o empate. Já merecia um golo. Ou mais!” Desliguei. Não há neurónio que aguente. Nem paixão pela rádio que sobreviva. Nem sequer solidariedade-na-crise que resista a um tão cabal favorecimento à equipa nacional que mais declinou da época passada para esta.


Por mim, estou mais ou menos tranquilo. Pedi no início do ano a oportunidade de encontrar o Benfica na Liga Europa, concretizada a eliminação na Liga dos Campeões – e o meu único medo é agora que nem sequer nas competições europeias em geral a equipa de Jesus se aguente. De resto, preocupa-me um bocadinho que, depois de ter dito que pretendia ganhar a Champions, o mister não tenha desde logo prometido ganhar a Liga Europa. O triunfalismo encarnado costuma ser útil aos adversários. Mas não vale a pena perdermos a esperança. Não agora, que isto está tão giro.


CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo").


Jornal de Notícias, 26 de Novembro de 2010


(imagem: © www.a-bracadaver.blogspot.com)

Sábado, 20 de Novembro de 2010
publicado por JN em 20/11/10

A primeira coisa que sentiu foi frio. Acordou com os pés da cama batendo nas portas que delimitavam os corredores, dois estrondos enormes, em catadupa, separados apenas alguns segundos dos dois estrondos seguintes – e, por cima do seu, julgou identificar o rosto fechado de um homem de bigode, empurrando a cama. Tentou dizer: “Tenho frio”, mas nada. Tentou de novo: “Estou a morrer de frio. Por favor, estou a morrer de frio” – e, ainda assim, as palavras não lhe saíam da boca.


Imagens misturavam-se agora à sua frente: noite escura, luzes, rapazes e raparigas, gente dançando, o Pedro. Tentou uma última vez dizer: “Tenho frio. Pelo amor de Deus, tenho frio” – e, no entanto, já apenas o Pedro, no meio das luzes, copo ao alto: “Só mais este, miúdo! Ainda te aguentas?” O Pedro e o Francisco. E a Cátia, sim – a Cátia também, ou então a Andreia, ou as duas, ambas aos gritos entre a gritaria. “Não sejas menino. Aguenta-te!” Era o Pedro ou o Francisco, afinal?


Depois, as têmporas novamente a latejar. Nenhuma luz agora, como se adormecesse.


Tornou a acordar mais tarde, a cabeça muito pesada ainda – e ao fundo tinha, desta vez, uma mulher. Nem sinais do homem de bigode. Era um homem de bigode, há bocado, não era? E antipático, contrariado – não era? De qualquer forma, nenhum sinal dele. E, todavia, antipática a mulher também, a gritar para um telefone. Lá em cima, uma garrafa de plástico, pingando devagar. Tentou mexer a mão direita – doeu-lhe, como se nela tivessem espetado uma agulha. E tinham.


“Como assim, só de manhã?!”, continuava a gritar a mulher. “A senhora não está a perceber. O seu filho bebeu de mais, mas já só tem de dormir. E eu preciso da cama. Faça o favor de vir buscá-lo depressa!” Pausa. “Minha senhora, eu não tenho nada com isso. Tenho a Urgência cheia de gente e preciso das camas! Portanto, ou vem buscar já o seu filho, ou ponho-o a dormir na sala de espera!” E atirou com o telefone.


Ficou quieto. Mais clara, agora, a cronologia. Noite de copos combinada há dias. Sessão de PlayStation lá em casa. Duas da manhã, a hora dos veteranos – e, enfim, eles rodeados de música. Copos. Shots. Mais copos. Mais shots ainda. E o WC – várias vezes o WC. Primeiro o corredor escuro, o Pedro aos melos a um canto. Com a Cátia. Era a Cátia ou a Andreia? Aos melos ou a foder mesmo? Risos, em todo o caso: risos altíssimos, gargalhadas, Pedro gritando agora na sua direcção: “Estás todo escafiado, bebé. Vais ao greg? Tu não me digas que vais ao greg, pá. Menino!”


De novo as têmporas a latejar. Nenhuma luz já, como se adormecesse. E, porém, a mulher sacudindo-lhe agora o braço. “Não, não, não. Nem pensar em dormir na caminha quentinha. Toca a levantar, que vai para a sala de espera como gente grande!” Tentou responder-lhe: “Tenho frio – e desta vez conseguiu-o mesmo: “Tenho frio.” Então, ela estacou. Respirou fundo. Era bonita. Morena, jovem ainda, cabelos aos caracóis. Respirou fundo de novo. Cabelos longos, sim: longuíssimos, encaracoladíssimos.


“Desculpe. Bebi de mais.” Tentou sorrir, mas a sua boca não sorria. “Pois bebeu – e agora estou eu aqui, à espera que os paizinhos venham buscar o querido, enquanto os velhos e os doentes e os estropiados ficam no corredor, a ver se o querido cura a bebedeira e vaga a cama.” Nova pausa. “Mas como é que eu vim aqui parar? Os meus amigos? O Pedro?” Silêncio de novo. E os olhos dela. “Veio de ambulância, claro – e os seus amiguinhos, como fazem os amiguinhos, puseram-lhe um papel no bolso, com o telefone lá de casa.”


Até que se abriu a porta à esquerda, uma voz de homem irrompendo: “Doutora, doutora, a velhota do AVC está em assistolia!” Deixou-se ficar ali um instante, no meio de rebuliço, a cabeça pesada, doendo ainda, os enfermeiros correndo num frenesim. Esticou a mão para o telefone, marcou 1 e tecla verde, viu o nome de Pedro aparecer no visor – e do outro lado: “O número que marcou não está disponível.” Depois, as têmporas de novo a latejar. E, enfim, nenhuma luz, como se adormecesse ainda.


“Amigo não empata amigo” – quem disse que o século XXI não ia ser capaz de criar uma doutrina?






CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 20 de Novembro de 2010


(imagem: © www.taeseah.blogspot.com)





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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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