Sábado, 1 de Agosto de 2009
publicado por JN em 1/8/09

De todos os meus vícios, as pipocas são o mais antigo. Devoro-as desde a primeira infância, ainda a gula era pecado (e estava para ser). Em trinta e cinco anos, vivi numa série de lugares, entraram e saíram muitas pessoas da minha vida (e eu das delas), concretizei umas quantas obsessões, abdiquei de outras tantas. As pipocas estiveram sempre lá.

Da primeira vez que as comi, chamavam-se “milho frito” (e, aliás, o milho em si chamava-se “milho de freiras”). Entretanto, provei-as de todas as maneiras: fritas em tachos e sintetizadas no micro-ondas, doces e com canela, pequeninas e à americana,  em versão light e até em versão gourmet. Quem vai comigo já sabe: chego a um país novo e tenho de experimentar as pipocas daquela gente.

O próprio nome é ridículo, não é? “Pi”, “pó”, “cas”. Do grego é que não vem, com certeza – parece mais palavra de miúdos. Que digo eu: “é” palavra de miúdos (mesmo se Camilo já falava em “sapatear pipocas das roceiras, com muitos regamboleios de quadris”). Mas foi o primeiro prato que aprendi a cozinhar (“cozinhar”, uma vez mais, à americana, no mesmo sentido em que se pode cozinhar uma sandes de mortadela) e o único gosto de que não abdiquei de ambas as vezes que a balança se pôs aos gritos, pedindo-me medidas desesperadas.

Percebo de pipocas: sei quais são boas e quais são más. Mais do que isso: gosto de pipocas. Vem cá a malta ver a bola e as pipocas nunca faltam (mesmo se eles preferem os pistachos e os cajus). Vem cá o meu editor para um jantar mais aprumado e elas estão lá na mesma, disfarçadas mas não escondidas, entre os acepipes de foi gras e os pimentinhos em cama de queijo chèvre.

Eis o quão superficial se pode ser: eu espero morrer comendo pipocas. Salgadas, se possível (ma non troppo). Terça-feira passada fui a uma feira e comi um saco. Na sexta fiquei a ver televisão e comi uma tigela. Amanhã, como sempre acontece aos domingos, vou ao cinema – e, claro, espero comer um balde.

Que não seja de bom tom comer pipocas no cinema é, para mim, insondável. Ainda na semana passada voltei ao Monumental, esse covil para jovens com declaradas aspirações intelectuais, e fui interpelado à porta da sala quando entrava a mastigar as últimas migalhas do folhado de salsicha com que, na ausência de jantar, tentava enganar a fome. Não: ali não se pode entrar a comer folhados de salsicha. E pipocas, naturalmente, é palavrão.

Quer dizer: o cinema fica num centro comercial piroso. O cinema  não é uma sala só, é um autêntico supermercado delas. O cinema passa as últimas obras de Kiarostami e Kitano, mas nem por isso deixa de passar também as destrambrelhices pirotécnicas do Michael Bay. Nada o aconselha, no fundo, para Santo dos Santos do que quer que seja, muito menos da cultura. E, no entanto, não se pode comer pipocas ali.

Porquê? Porque há lisboetas que têm o direito de ir ao cinema sem ouvir o nhac-nhac-nhac e o rec-rec-rec das pipocas. Mas também por tolice: a avaliar pelo número de circunstantes (e tratava-se de uma noite de fim-de-semana, de um filme mainstream e da respectiva semana de estreia), duas salas do King bastavam para esses lisboetas todos (e ainda mais alguns).

E, então, os restantes de nós poderiam gozar o cinema como ele deve ser gozado: como uma das mais importantes (eu ia dizer “a mais”, mas a música vai à frente) manifestações da cultura pop. Com os seus risos estridentes e com os seus suspiros em coro. Até com os seus cochichos ocasionais e os seus inesperados telefonemas (desde que não para bichanar sobre o que estão a achar do filme, por favor falem de tudo menos do filme). E, se quiséssemos, com pipocas. Assim como assim, as tosses gripais que nos esperam este Outono hão-de fazer bastante mais barulho.

O cinema é uma festa – e as pipocas há muito tempo fazem parte do ritual dessa festa. Não me ocorre comê-las enquanto ouço uma suite de Bach no violoncelo de Rostropovitch. Mas o cinema é cultura popular. E, se alguém tende a sacralizar a cultura popular, é por uma razão muito simples: porque não tem pernas para a cultura erudita.

“Pipoca”, diziam os tupinambás. “Py” de “pele”, “poca” de “quebrada”. “Pele quebrada”. Curiosidade. Perscrutação das entranhas. Profundidade. Âmago. Permitem-me cultivar a ideia de que há algo mais no meu vício do que a simples atracção pelo paladar dos amidos inconsistentes feitos desabrochar pelo sobre-aquecimento de um grão milho?


CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós"). NS', 1 de Agosto de 2009

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De *-Star-* a 7 de Agosto de 2009 às 16:46
Excelente... ainda bem que é um amante de pipocas, também conheço quem o é.
Tem um óptimo meio de expressão. Parabéns!
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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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