Tenho usado os Açores, neste espaço, como o epítome da terra antiga e decente. Faço-o às vezes por questões racionais, muitas vezes por questões emocionais e uma vez por outra por questões puramente lúdicas, que amiúde são as mais relevantes de todas. O facto é que, enquanto por aqui, no continente, vamos discutindo os solavancos próprios de uma bancarrota evitada in extremis, nos Açores começam a reunir-se as condições ideais para uma golpada política de dimensões latino-americanas. E, como nem sempre a decência geral se tem revelado suficiente para blindar a democracia açoriana dos seus velhos inimigos, é importante que António José Seguro e Francisco Assis, agora que se preparam para discutir o futuro do partido que esteve no poder em Portugal nos últimos seis anos e que está no poder nos Açores há quinze, se definam sobre se pretendem ou não permitir a dita golpada.
Curto resumo dos acontecimentos. A Sexta Revisão Constitucional, publicada em 24 de Julho de 2004, impunha aos Açores e à Madeira a aprovação de um novo Estatuto Político-Administrativo. A Madeira, onde os imperativos da República gozam de pouca popularidade, fez uma primeira investida e deixou cair o processo. Os Açores determinaram que respeitariam a Constituição – e de imediato deram início ao debate. Uma das regras a incluir dizia respeito aos mandatos do presidente do Governo Regional, que passavam a estar limitados a três. Problema: Carlos César já estava no terceiro mandato, pelo que conseguiu levar à aprovação uma norma transitória, redigida por ele próprio, em que se previa que, caso a publicação do novo Estatuto em Diário da República ocorresse durante o terceiro mandato do presidente, então este estaria autorizado a um quarto mandato ainda.
As coisas, como se sabe, acabaram por decorrer aos tropeções. Quando o novo Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores foi definitivamente aprovado, já havia sido alvo de vetos prévios do Tribunal Constitucional e do próprio Presidente da República. Pior: no dia em que foi publicado em Diário da República, Carlos César já não estava no seu terceiro mandato, mas no quarto, começado há pouco tempo. E é precisamente com recurso a esse inesperado sobressalto cronológico que alimenta agora o tabu – o qual vem deixando a própria oposição suspensa – sobre se candidata ou nas eleições legislativas regionais de 2012. Afinal, a ausência de letra da lei sobre um quinto mandato pode ou não permitir a César vinte anos de exercício do poder, incluindo uma maior degradação ainda da sociedade civil, há tantos anos habituada a transaccionar o voto por empregos públicos, subsídios à subsistência ou mesmo apenas passeios de barco?
Não pode. É claro que não pode: a letra da lei não o proíbe, mas o espírito da lei impede-o abundantemente. Só que esse impedimento pode apenas vir a ser decretado pelo Tribunal Constitucional – e, nesse caso, depois das eleições, não antes. Donde resulta que Carlos César vai fazendo a sua parte na construção de um cenário que lhe permita ganhar as eleições para o PS – porque de facto ganharia – e, depois, um pouco à maneira das novas dinastias republicanas, ser obrigado a legar o poder a um dos seus putativos sucessores (Vasco Cordeiro, Sérgio Ávila ou José Contente), qualquer um deles, dizem as sondagens, destinado a ser esmagado nas urnas pela líder da oposição, Berta Cabral. Alguma da comunicação social do arquipélago, de resto, já vem fazendo a sua parte também, dando eco à ideia, não por acaso cada vez mais acarinhada pelo presidente, de que, de qualquer maneira, as legislativas são um sufrágio para a Assembleia Regional, não para a Presidência do Governo. E ademais, como todos sabemos, há manigâncias a que a distância geográfica, ainda que por preguiça, traz uma estranha, difusa, mas ainda assim efectiva legitimidade política.
Ouvir da parte de Assis e Seguro a garantia de que não deixarão os Açores caudilhizar-se, como se calhar a Madeira se caudilhizou, seria tranquilizador para os açorianos que persistem ciosos da sua democracia. Mais do que isso: seria uma garantia de que as eleições de 2012 decorreriam em ambiente respirável, sem as chantagens emocionais e as habilidades políticas que começam a insinuar-se no horizonte. Bem basta que no actual programa do Governo da República não conste uma palavra sobre as regiões autónomas, não?