Sábado, 25 de Dezembro de 2010
publicado por JN em 25/12/10

Tenho, do Natal e dos seus presentes, demasiadas memórias acumuladas para poder ficar-lhes indiferente. Não vale a pena contar aqui as histórias, que o que nunca falta a esta coluna é lamechice. Basta dizer que cresci no rescaldo do terramoto que a 1 de Janeiro de 1980 destruiu dois terços das casas da ilha Terceira, obrigando dezenas de milhar de pessoas a viver durante anos em contentores e em tendas de pano e em barracas de madeira – e que, no meio de tal desolação, os esforços dos pais mais diligentes para providenciar um Natal condigno, com refeição e ofertas à medida (nós chamávamos-lhes “ofertas” – nem “presentes”, como em Lisboa, nem “prendas”, como na Margem Sul) eram todos eles comoventes.


Desde então, empenhei-me sempre em dar presentes de Natal àqueles de quem gosto. Tenho sorte: se alguma vez estive desempregado, foi por pouco tempo – e, por outro lado, disponho de mais margem de manobra orçamental do que quem tem filhos. Entretanto, não me esqueço do pandeiro com rebuçados que me deu o meu pai aos sete anos, da mota em miniatura que me deu a minha mãe aos oito ou do saco de desporto que me deu a minha tia Edite aos 14, tudo presentes (e por diferentes razões, que também não vale a pena esmiuçar aqui) de uma generosidade singular. E menos ainda me esqueço de que, hoje em dia, passo o ano ausente, negligenciando família e amigos. O sentimento de culpa é um afrodisíaco poderosíssimo. Normalmente, estouro duas vezes o orçamento.


E, porém, o que logo de início decidi não oferecer a ninguém este ano foi um iPad. E o que logo de início tentei tirar de cogitações quando àquilo que pudessem oferecer-me a mim foi um iPad também. Sempre gostei de bons presentes. Sou um mimadão, não o escondo – e, aliás, nem sempre estou à altura do que me oferecem. Em 2009, recebi um GPS TomTom, uma dock para o iPhone e uma madeira 7 de 24º. Aos primeiros dois, tenho poucas oportunidades de usá-los – e, quanto à madeira 7, prefiro quase sempre o ferro 4. No passado, foi pior ainda. Aqui há uns anos, recebi uma PlayStation, que poucas semanas depois reduzi à condição de leitor de DVD – e poucos dos meus íntimos se esquecerão dos meses que passei a implorar um clarinete, cujas aulas no Hot Clube vim a abandonar e que, aliás, deixei também de tocar em casa, para alívio da vizinhança.


Este ano, fiz ao contrário: passei meses a espalhar a mensagem, mais sub-reptícia aqui e mais declarada ali, de que não queria um iPad. Os jornais chamam-lhe “a estrela deste Natal” – e, sendo há tantos anos um ávido MacUser, daqueles que não perdem uma oportunidade de chamar “uma calculadora grande” aos PCs, cheguei a considerar eu próprio comprar um. Acontece que o iPad, representando o futuro, não faz para já nada que um iPhone não faça. Pelo contrário, e tal como os laptops tradicionais, o iPhone faz uma série de coisas que o iPad não faz. Inclusive telefonemas, essa gaita a que nenhum de nós consegue escapar hoje em dia – e agora até telefonemas gratuitos (via Viber), deliciosa prerrogativa cuja delícia quase chega para compensar o facto de se tratar de um telefonema.


Um dia, vou comprar um iPad. Gosto de livros em papel, mas tenho a casa atulhada, sem espaço para colocar um candeeiro que seja. Mais: considero ler na cama um direito fundamental do homem, com direito a inclusão na Declaração Universal e tudo, mas não consigo ficar indiferente aos constrangimentos de sono que a luz acesa e o barulhinho das páginas virando sempre provoca à minha volta. Só que as aplicações para a leitura online de jornais ainda não estão devidamente optimizadas para tablets – e, pior, a maior parte das editoras literárias não tem sequer uma ideia de quando começará a disponibilizar as novidades em formato digital. Resultado: neste momento, o iPad não passa de uma espécie de iTouch em ponto demasiado grande. Quando muito, poderá substituir as já velhinhas molduras digitais, remetendo-se ao canto da sala, a mostrar fotografias. Por oitocentos euros, quero mais.


Mas será mesmo obrigatório que haja sempre um gadget plantado no nosso Natal?







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 25 de Dezembro de 2010


(imagem: © www.carmoeatrindade.blogspot.com)






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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre o coração de Lisboa e a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002) e “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica e ao comentário, que desenvolve a par da escrita de ficção. O seu novo romance, “Os Sítios Sem Resposta”, sai em Abril de 2012, com chancela da Porto Editora. (saber mais)
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